sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL



ESTA É UMA DAS MELHORES TESES DE DOUTORADO QUE EU ORIENTEI. NEUZA, INFELIZMENTE, JÁ FALECIDA. (ROGEL SAMUEL)

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL






NMACHADO

RIO DE JANEIRO
2006



NEUZA MACHADO



DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

(1a edição)



NMACHADO

Rio de Janeiro - 2006
Ó Neuza Machado

Todos os direitos reservados e protegidos por lei.
Proibida a duplicação e/ou reprodução deste volume ou parte dele,
sob quaisquer meios, sem a autorização expressa da autora e/ou herdeiros diretos.


ISBN  85-904306-1-8

Editor(a)
NEUZA MACHADO

Capa
ALEXANDRE MACHADO

Foto da Capa


Diagramação
ALEXANDRE MACHADO

Revisão
NEUZA MACHADO


CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SNEL – SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ


____________________________

                Machado, Neuza,    1946-
                      Do pensamento contínuo à transcedência formal. 1. ed. – Rio de Janeiro: NMachado, 2006 

                Bibliografia e Notas
1 . Teoria Literária   -  Crítica Literária   -   Sociologia da Literatura   -  Filosofia   - Literatura Brasileira
I .  Machado, Neuza,  1946-       II .




2006


EDITORA NMACHADO
Rua Ana Silva, 124 / 10 – jacarepaguá
22740-300 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: (21) 3392 6136 / Celular: (21) 99965492

Impresso no Brasil
Printed in Brazil



SUMÁRIO


I -.............. INTRODUÇÃO ...............................................................................          11



II -............. UM SERTÃO INESQUECÍVEL  .............................................................          33
II.1 -............. Sertão: Casa da Infância .........................................          33
II.2 -............. O Artista e suas Máscaras ......................................          50
II.3 -............. Sertão: Cenário da verdadeira representação
                        do Eu Ficcional do ArtistA..............................................   60
II.4 -............. Aprendendo a administrar
Conflitos ........................................................................          74
II.5 -............. Resgatando Lembranças .........................................          85
II.6 -............. O Tempo suspenso entre o antes
e o depois ........................................................................          93
II.7 -............. A Filosofia do Vazio em
contraposição à do Cheio .......................................          96
II.8 -............. Passagem dos Cogitos ...............................................        104
II.9 -............. O Sonho do Artista: Elo de Ligação
com o Cogito(4) .............................................................        127
II.10-............ Psicanálise da Criação .............................................        132
II.10.1  Da reprodução à autêntica criação ........................................        132
II.10.2  Uma perspectiva dialética .....................................................        152
II.10.3  Mudanças no discurso narrativo ..........................................        161
II.10.4  Sob a influência do fogo ......................................................        169
II.10.5  Da agitação ao conflito .........................................................        182
II.10.6  O colorido do sertão roseano ...............................................        191
II.10.7  Uma perspectiva maravilhada ..............................................        200
II.10.8  Sertão: sofrimento e conflito ................................................        210
II.10.9  Os graus da imaginação na obra roseana ..............................        219
II.10.10 A temática da água ..............................................................        225
II.11-............ Ascensão ao Concreto ..............................................        244
II.11.1  Uma perspectiva substancial infinita ....................................        244
II.11.2  O narrador perde a vez .........................................................        255
II.11.3  O elemento Ar: a um passo do infinito .................................        263
II.11.4  Além do cogito(3) ................................................................        272
II.11.5  Conclusão: Recriando o passado ..........................................        282



III -............ CONCLUSÃO .................................................................................        285



IV -............ BIBLIOGRAFIA ..............................................................................        297



V -                 NOTAS .......................................................................................................        301






Quer queira quer não, o romancista revela o fundo de seu ser, ainda que se cubra literalmente de personagens. Em vão ele se servirá "de uma realidade" como uma tela. É ele que projeta essa realidade, é ele sobretudo que a encadeia.

*Gaston Bachelard


Nasci no ano de 1908. (...). Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito; o momento não conta. Vou revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que vivi antes. E para estas duas vidas um léxico apenas não me é suficiente.

Nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais, sou mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo: Cordisburgo.

Eu sou antes de mais nada um "homem do sertão"; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo menos eu acredito firmemente, que ele, esse "homem do sertão", está presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa.

Este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo.

Fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida. (...). Estas três experiências formaram até agora meu mundo interior; e, para que isto não pareça demasiadamente simples, queria acrescentar que também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com os cavalos, vacas, religiões e idiomas.

É impossível separar minha biografia de minha obra.

Tudo isto é curioso, mas o que não é curioso na vida? Não devemos examinar a vida do mesmo modo que um colecionador de insetos contempla os seus escaravelhos?

**GUIMARÃES ROSA







I - INTRODUÇÃO

I - INTRODUÇÃO


Nestas páginas iniciais, em diálogo com Gaston Bachelard, o meu objetivo é demonstrar a possibilidade de se alcançar o cogito(4) da realidade espiritual por intermédio da Arte Literária, sem que, com isto, o indivíduo (orientado por exigências do intelecto) se desequilibre no plano das atitudes de vida socialmente aceitas.
           
Neste caso específico, nos capítulos seguintes, estarei a dialetizar e a reinterpretar algumas narrativas de Guimarães Rosa, seguindo uma provável cronologia, intencionando provar que o Artista brasileiro, nato do sertão, conseguiu elevar-se ao referido cogito no plano da Literatura-Arte.

O cogito(4), na filosofia bachelardiana, é um estágio de pensamento de difícil ascensão, já ligado ao plano do Espírito, o qual possibilita ao ser humano projetar-se para fora da linha vital. Por este ângulo, Bachelard admite a possibilidade de vários cogitos superpostos, inclusive a possibilidade de cogitos desconhecidos acima do cogito(4). Porém, visando o equilíbrio mental/social do homem, destaca apenas três potências do pensamento (cogito(1), cogito(2) e cogito(3)), afirmando que estas forças são as únicas que ainda oferecem uma particular felicidade ao indivíduo (conhecedor do cogito(3) do pensamento puro), além de proporcionarem a aceitação de idéias elevadas por parte dos representantes dos cogitos um e dois.

Por este ponto de vista, aqueles que alcançam o cogito(3) não se desprendem totalmente dos cogitos um e dois, vivendo numa interação salutar com os outros membros da sociedade, no plano do cogito ao cubo (plano vital), e recebendo desses uma respeitosa reverência. Em outras palavras, os que recebem a marca da individualidade são aceitos como excepcionais, mas não são considerados totalmente excêntricos pelo grupo social a que pertencem, ao contrário, suas idéias são bem recebidas e imitadas.

Enquanto os cogitos um e dois são lineares — cogito(1): primário / cogito(2): transitivo —, o cogito(3) é lacunar, pois é propriedade exclusiva do indivíduo que pensa além dos pensamentos instituídos. O cogito(3) seria assim o plano mental do ser humano possuidor da chamada consciência pura (ou consciência singular). A consciência pura seria a consciência daqueles que não se deixam envolver pelos valores vitais.

A ascensão ao cogito(4) (plano espiritual), segundo Gaston Bachelard, oferece perigos ao pensador, pois se situa fora das exigências vitais. Entretanto, poderá ser pressentido por estudiosos capacitados, por intermédio de insólitos textos ou de estranhos desenhos das chamadas pessoas iluminadas.

No que diz respeito ao reconhecimento do cogito(4) nas narrativas de Guimarães Rosa, as quais serão aqui realçadas, e certamente nos capítulos a elas destinados, apresentarei a minha posição de teórico-crítica exclusivamente ligada à Teoria Literária, uma vez que dialogarei com as teorias filosóficas de Gaston Bachelard pelo ponto de vista da interdisciplinaridade, reivindicando, sempre que for necessário, a minha condição dual de analista e intérprete do texto literário, de acordo com os preceitos da interdisciplinaridade. Centralizando meus argumentos interpretativos no cogito(4), procurando provar que o referido cogito pode ser detectado no plano da Literatura-Arte, intenciono desvincular-me das tradicionais barreiras dos modelos críticos formalistas/cientificistas, por meio da contribuição de pensamentos oriundos da filosofia assinalada, admitindo assim novas possibilidades de incursão crítica no universo literário.

Entretanto, uma importante advertência devo aqui salientar: esta teoria não é bachelardiana como parece ser. Utilizo-me de alguns pensamentos de Bachelard, aproprio-me de algumas de suas idéias e estarei aqui em permanente diálogo com seus textos, mas o argumento que me orienta relaciona-se com a hermenêutica (a renovada hermenêutica do final do século XX e início do século XXI), proporcionando-me distinguir no texto alheio o reflexo de meus próprios conhecimentos. Por tais motivos, hermeneuticamente estarei dialogando com a filosofia de Bachelard, uma filosofia ligada à razão, à sabedoria, às origens do pensamento do homem e suas causas posteriores; uma orientação filosófica que tem por base uma fenomenologia que imerge na mais profunda raiz do pensamento ocidental. E, de certo modo, conscientemente poderei dizer que este é o meu Bachelard, isto é, tenho de Bachelard uma certa leitura e aproximação muito mais literária do que filosófica.

Restabelecendo um importante juízo de Bachelard, registrado em seu livro A DIALÉTICA DA DURAÇÃO, no qual admite a possibilidade de intervalos temporais propiciando o surgimento de obstáculos, desvios, impedimentos, que poderão ou não quebrar as cadeias causais (ou seja, entre causa e efeito há sempre uma intervenção de acontecimentos possíveis que não estão ligados ao dado causal), colocarei aqui em evidência meus pensamentos dialetizados, situando-os exatamente nesse plano de probabilidades. Este meu ponto de vista teórico-crítico, interagindo aqui com a filosofia bachelardiana, é uma teoria não-causal no plano da Arte, uma vez que estarei buscando novas argumentações críticas (transmutando pensamentos já avaliados, aspirando a uma renovação nos atuais estudos da literatura brasileira), próximas de nossa realidade cultural, objetivando desenvolver um intercâmbio de idéias comunitárias com nossos artistas literários.

Não estarei presa simplesmente à causa, mas interessada em ultrapassar os obstáculos, visando muito mais o que poderá surgir como novidade no âmbito da Teoria ou da Crítica Literária, neste início de Terceiro Milênio. Penso assim movimentar-me para um novo início teórico-crítico, que abarque a realidade literária da qual faço parte, como leitora-intérprete consciente da urgência de invenção de uma variante crítica autóctone que acompanhe a criação literária de nossos escritores. Uma teoria causal, objetivando um fim imediato, por ora, seria impossível, devido aos inevitáveis obstáculos, mas nada irá impedir-me de aventurar-me nas veredas das probabilidades quantificadas, probabilidades estas que darão conta posteriormente dos resultados que procuro obter.

Nestas páginas iniciais, é necessário esclarecer que o meu envolvimento intelectual com a filosofia bachelardiana surgiu de uma íntima recusa em seguir fielmente os modelos europeus, analítico-cientificistas, de como se desenvolver um estudo literário. É importante realçar que esses modelos foram projetados para o estudo de obras literárias voltadas para a realidade européia, as quais, em absoluto, não se ajustam à nossa realidade. As pesquisas acadêmicas, sobre a literatura brasileira, deveriam pautar-se por um conhecimento teórico-interpretativo próprio, um direcionamento crítico que se identifique mais com as idéias criativas de nossos narradores e poetas. Por tais motivos, repito: As teorias e críticas literárias européias foram inventadas para suprirem as necessidades de análise e/ou compreensão de textos literários europeus. É preciso enfatizar que essas teorias não abrangem o todo de nosso universo literário, uma vez que não foram pensadas em função de nossas vivências. Entretanto, mesmo afirmando a minha intenção de dialogar com os conceitos bachelardianos (conceitos filosóficos oriundos da Europa), quero reafirmar que, ao longo desta sondagem interdisciplinar, o meu ponto de vista sobre a ficção roseana desenvolver-se-á sob uma particular interpretação dessas idéias.

Para a compreensão de minhas posteriores argumentações, ao longo dos capítulos deste livro, faz-se necessário repetir e explicar (por um processo de abordagem nitidamente tautológico) que o cogito(4), segundo Bachelard, não se liga ao plano vital (de causa e efeito), mas ao plano espiritual de difícil ascensão, e o meio racional para reconhecê-lo seria pensar o intervalo vazio entre ambos.

Por esta via, se repenso a literatura-arte brasileira do século XX, dou-me conta de que ela é originária do Mundo do Silêncio (também conhecido por Vazio Criador ou Vazio Bashoniano). Os escritores das estéticas modernistas e pós-modernistas e os atuais estudiosos de teoria literária são os venturosos conhecedores desse mundo sem formas estabelecidas. Os Artistas — ficcionistas e poetas — dessas estéticas (íntimos dessa realidade insólita) iniciam suas criações no auge de suas oposições aos hábitos inveterados da realidade que os cerca. Rejeitando os limites vitais, chocam-se com a vida ordinária e tentam, literariamente, fazer o tempo refluir sobre si mesmo, racionalizando e, ao mesmo tempo, sentimentalizando em um grau superior, distanciado dos sentimentos telúricos (esteticamente), suas próprias realidades subjetivas, procurando renovar velhos conceitos ou criando novas substâncias. É necessário ressaltar que, no que se refere aos modernistas e pós-modernistas brasileiros, o ato de sentimentalizar intimamente e esteticamente é bem diferente do sentimentalizar romântico, é um sentimentalizar que passa pelo crivo da razão.

Ao invés de se originar do plano histórico (contínuo, linear), a autêntica criação ficcional brasileira do século XX (incluindo as narrativas sertanejas de Guimarães Rosa a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, obras literárias reconhecidamente verticais) tem sua origem no mundo do Vazio Criador (o já nomeado Mundo do Silêncio). Originária deste mundo informe, ela só fará parte do plano dos fenômenos já conceituados depois do repouso ativado do escritor, quando o sentimento inicial, telúrico, tornar-se parte integrante da duração pela razão, transformando-se, como já foi dito, em um sentimento renovado.

Para demonstrar esta transformação literária nos textos ficcionais de Guimarães Rosa, busquei a contribuição da filosofia de Bachelard. A partir deste auxílio, poderei reafirmar a minha proposta teórico-crítica, seguindo evidentemente um roteiro previamente elaborado, no qual destacarei alguns temas importantes, consciente de que os mesmos contribuirão para reforçar o desenvolvimento de minhas argumentações, unindo as idéias que formarão o alicerce de meu objetivo. Assim, verificarei, em primeiro lugar, a relação do escritor com a obra, considerando que as narrativas têm com o sertão da infância, da adolescência e das recordações uma relação interna indissolúvel, já que foi dito que este sertão em especial é o inventor da obra literária roseana, e o contrário também vale: o texto ficcional  criou o sertão roseano.

Na primeira parte de minhas assertivas, falarei do sertão mineiro propriamente dito, o sertão sócio-cultural, atavicamente preso à infância do escritor Guimarães Rosa, evidentemente, revelador do aspecto paradoxal de sua personalidade, por um lado, comprometida com os valores da modernidade (ao vivenciar cotidianamente essa modernidade), entretanto, por outro lado e ao mesmo tempo, muito mais comprometida com os valores sertanejos. É lícito observar que o escritor de origem sertaneja, em sua ficção poética (conceituação do próprio Guimarães Rosa, na Entrevista ao crítico alemão Günter Lorenz), procura ressaltar um determinado sertão, aquele de sua infância, que se encontra distanciado, temporal e socialmente, da realidade sócio-geográfica do sertão do Estado de Minas Gerais, realidade esta refletora da deterioração de uma sociedade brasileira mal-edificada.

Partindo do princípio de que a questão é importante, já que se liga aos temas tempo e espaço, e conseqüentemente ao tema dos cogitos superpostos, observarei, em um pequeno capítulo, pela ótica poético-filosófica de Gaston Bachelard, a obra ficcional de Guimarães Rosa, vigilante à possibilidade de ver (ou perceber) no referido sertão a casa inesquecível e seus recantos secretos, da qual fala o filósofo-camponês (nascido em França, na região vinícula da Champanha) em sua POÉTICA DO ESPAÇO.

Referindo-me ao escritor Guimarães Rosa e ao seu lugar de origem, tratarei do tema das máscaras sociais, no intuito de demonstrar a sua ascensão socio-intelectual de brasileiro, do sertão do Estado de Minas Gerais, lugar que ainda resguarda anteriores vivências primitivas, no mundo moderno das cidades, e o seu retorno às origens sob o predomínio da Arte Literária.

O tema das máscaras sociais privilegiará uma reflexão sobre esse homem incomum, herdeiro das experientes normas de seus ancestrais, em face da moderna e intelectualizada cultura das metrópolis e magalópolis. Esse homem, socialmente e intelectualmente reverenciado, entrará na primeira parte desta propedêutica, quando verificarei a relação do Ficcionista, superior, culto, integrado à sociedade elitista, com o sertão da infância, espaço este lingüisticamente criticado e socialmente rejeitado pelas camadas urbanas mais elevadas.

A seguir, destacarei a intermediação entre este processo inicial e o princípio da verificação do conteúdo narrativo-ficcional repleto de matéria de procedência poética. Neste capítulo, estarei dialogando com os pensamentos filosóficos de Gaston Bachelard sobre o tempo suspenso entre o antes e o depois, tempo este que não se adéqua às exigências vitais, lineares, do tempo histórico. Esclarecendo melhor, retomarei reflexivamente o entendimento bachelardiano sobre a questão do repouso fervilhante (diferente da idéia de repouso como descanso das preocupações cotidianas), propiciador de um juízo de descoberta, ondulatório, o qual leva à realização de uma possibilidade; no caso específico, à realização da possibilidade de existência literária de um sertão insólito, oriundo das recordações do passado (recordação: matéria lírica invadindo o espaço ficcional). Esta intermediação mostrará a temática dos cogitos, propiciando o direcionamento de minhas idéias transmutativas, para a elaboração e fechamento de meu objetivo preferencial.

A conceituação do tempo, ou da duração, pela ótica de Bachelard, é uma conceituação ainda inovadora no âmbito filosófico, porque não se tem notícia de novidades filosóficas que rejeitem ou ultrapassem as idéias do filósofo francês. Essas idéias diferenciadas tiveram, como ponto de apoio, as teses de Einstein e Gaston Roupnel, além de uma reavaliação dos pensamentos de Henri Bergson sobre o tempo.

Reavaliando os pensamentos de Henri Bergson, preocupados apenas com o aspecto linear e pleno do tempo vital, Bachelard procura provar que, acima desse tempo vital (contínuo), há o tempo do pensamento (descontínuo) e o tempo espiritual (totalmente lacunar). O tempo vital (cogito(1)) e o tempo do pensamento (cogito(2) e cogito(3)) estariam situados exclusivamente no plano vital, e o tempo espiritual (cogito(4)), restrito ao plano espiritual de difícil ascensão.

Bachelard postou-se contrário à tese da continuidade temporal bergsoniana, passando a postular criticamente a existência de lacunas na duração, argumentando que, se há em Bergson uma filosofia do tempo pleno, positivo, teria de existir, em contrapartida, uma filosofia da negatividade. Postulando a idéia de um tempo negativo, o filósofo descobriu a possibilidade de se realizar uma incursão-excursão no espaço intermediário entre as duas realidades temporais. Esta negatividade, baseada na ritmanálise, levaria os esforços de dissociação até ao tecido temporal, ativando o ritmo da criação e da destruição, da obra e do repouso, retendo o tempo reconquistado, conhecendo o tempo, aceitando e compactuando com a idéia do princípio da negação.

A respeito de uma conceituação do pensamento, este não é privilégio apenas do tempo vivido (tempo linear), faz parte na verdade do tempo pensado (superior), em estado nascente, e se caracteriza por uma tentativa de vida nova, um desejo de viver de outro modo, de superar os obstáculos do cotidiano. Pensar sobretudo o tempo, pelo ponto de vista de Gaston Bachelard, é enquadrá-lo, localizá-lo no interior da própria vida; é propôr-se, também, a uma vida diferente e rica.

O conhecimento estaria, por este aspecto, em relação direta com o pensamento. A sua grandeza seria determinada no enriquecimento interior do ser que pensa. O desenrolar desse conhecimento seria simplesmente uma conseqüência da vontade do pensador, a elevação de uma aprendizagem constante, feita de preenchimento de mensagens provenientes do exterior, sustentada por forças exteriores, mas reconstruída, ordenada e novamente sustentada pelo desejo de saber.

A vontade do pensador se origina do repouso fervilhante. Há uma grande diferença entre o repouso, ato de descansar a mente das paixões cotidianas, e o repouso fervilhante do pensamento (repouso ativado), algo ainda meio vazio, em suspenso, oscilando entre o antes e depois do tempo do pensamento. O indivíduo, consciente de seus pensamentos, adquire o direito de colocar sua inteligência a serviço de fervilhantes questionamentos ou reflexões, os quais poderão ou não renovar as formas ideológicas já instituídas socialmente.

Ao momento que sucede o repouso ativado, início de novas e originais formas de pensamento, Bachelard denomina de juízo de descoberta.

O repouso fervilhante do pensamento (ou repouso ativado) traduz-se, em princípio, por um esvaziamento da mente em relação aos conceitos usuais, uma reflexão que induz a uma breve imobilidade mental, na qual se acrisolam pensamentos díspares, os quais serão reordenados inversamente em seguida e direcionados para novas e surpreendentes descobertas mentais.

O juízo de descoberta, originário desse repouso ativado, é diferente também do juízo afirmativo, juízo este postulado por Henri Bergson e reavaliado por Gaston Bachelard. O juízo afirmativo, juízo das formas já institucionalizadas, apenas acentua o caráter de uma afirmação. Por exemplo, dois juízos em que o primeiro afirma que uma mesa é branca, apenas deixa transparecer o caráter determinado e direto do juízo exposto; quando se afirma o contrário, ou seja, que a mesa não é branca, observa-se simplesmente o caráter indeterminado e indireto do segundo juízo. O juízo de descoberta modifica os valores da verificação sobre a mesa branca. Ao invés de repetir a cor ou não da mesa, propicia a descoberta de uma singular mesa branca, especialíssima; suscita um debate positivo sobre uma diferente e polêmica mesa branca, gerando espanto, exclamações, discussões, fundados em dúvidas preliminares. Descobre-se enfim a existência de uma especialíssima mesa branca, em meio a tantas e tantas mesas brancas ou não. Galileu, por exemplo, descobriu o movimento da Terra e foi castigado por seu atrevimento.

Ainda acompanhando o raciocínio de Bachelard, as afirmações do juízo afirmativo nem sempre demonstram conhecimento positivo. Tal conhecimento deverá ser observado nas ondulações das argumentações geradas pela dúvida preliminar (polemizada), tal conhecimento poderá ser constantemente destruído e reconstruído, às vezes nunca terminando a construção, mas, sobretudo, deverá aspirar ao impulso renovador do pensamento transmutativo.

Sobre a filosofia de Henri Bergson, quero esclarecer que Bachelard não a rejeita, em absoluto; apenas utiliza-se dela para desenvolver suas reformulações sobre a questão da duração, reformulações que têm também uma ligação reflexiva com Albert Einstein e Gaston Roupnel, como já foi dito antes. De minha parte, o que apreendi da filosofia de Henri Bergson, sobre a duração, evolou-se de uma reflexão rápida do quarto capítulo de seu livro L'Évolution Creatrice, “Le Devenir Réel et le faux Évolutionisme; a contra-argumentação é genuinamente de Gaston Bachelard, realçada em suas adesões e críticas ao pensamento do filósofo da metafísica do pleno. Não darei profundidade aos estudos de Bergson por razões estratégicas. Com isto, evitarei uma provável introdução de um elemento novo em minhas teorizações, o que dificultaria o objetivo de meus juízos diferenciados sobre uma entre inúmeras formas de o estudioso da literatura se envolver com o texto literário. Entretanto, as atuais exigências acadêmicas, relativas à interdisciplinaridade, estarão aqui realçadas. Esta inovadora orientação crítico-pedagógica traduz-se como um alerta em face deste recente momento de transição histórico-social-literário para o terceiro milênio.

Depois da intermediação, refletirei sobre a temática dos cogitos propriamente dita, ligando-a, num processo interativo, ao universo literário de Guimarães Rosa, ressaltando os quatro elementos que sustentam a vida (terra, água, fogo e ar), os quais estão presentes na obra roseana sob o predomínio da imaginação criadora ativada, alicerçando-a e propiciando, seletivamente, a ascensão do escritor aos cogitos superiores.

Os quatro elementos agirão como degraus e serão eles os responsáveis pela mudança de pensamento do ficcionista de ascendência sertaneja, desde Sagarana (pequenas narrativas experientes, ligadas aos aspectos exteriores do sertão) até a fase final, na qual se detectam a sua ascensão ao plano intermediário (entre o cogito(3) e o cogito(4)) e a posterior concretização de seus pensamentos criativos singulares, originários desse plano incomum. A esta parte intermediária, ligada à temática dos cogitos e aos elementos vitais, chamarei Psicanálise da Criação.

Sobre este título, Psicanálise da Criação, quero esclarecer que o termo surgiu em minhas incursões teóricas ao universo filosófico-psicológico de Bachelard, já que ele se auto-define como psicólogo de livros. Adotei esta terminologia para explicar o terceiro momento da atividade criativa de Guimarães Rosa. Psicanálise da Criação passará a ser, aqui, exclusivamente, o título de um capítulo de minhas explanações teóricas, sem um compromisso interdisciplinar com a Psicanálise do Texto Literário propriamente dita, representando apenas o meu particular método de abordagem, unindo a Ciência da Literatura à filosofia bachelardiana. Este título se fez necessário, porque, procurando desvendar as desordens mentais do moderno (ou pós-moderno?) narrador roseano das últimas fases (Primeiras estórias, Tutaméia e Estas estórias), atingi teoricamente a vida psíquica consciente e inconsciente do Artista ficcional brasileiro do século XX, independente de ser ele Guimarães Rosa ou não, preso ao seu próprio tempo histórico desordenado. (Observação: É importante afirmar e reafirmar sempre que a palavra desordem, realçada aqui e em algumas páginas dos capítulos seguintes, não possui caráter depreciativo. A palavra em questão deverá ser compreendida pelo seu significado etimológico).

Recapitulando a temática dos cogitos, no cogito(1) (cogito primário) percebe-se que todo pensamento gera uma representação no mundo físico, uma causalidade eficiente. Quando o pensamento não é concretizado imediatamente, gera um impasse (uma argumentação), e esse impasse obriga a uma busca de novas formas de concretização do pensamento inicial. Este momento de impasse (reflexões, questionamentos) localiza-se no cogito(2).

No cogito(2), o pensamento ativado, nascido de um primeiro pensamento, gera uma reflexão (ou uma interrogação, quando não há a possibilidade de concretizar o pensamento), que poderá ou não levar a uma causalidade final (cogito(2)) ou a várias causalidades díspares (cogito(3)). Este impasse é uma interrupção, um desvio, na cadeia causal. Entre causa e efeito há intervenções que modificam o fim esperado, intervenções essas que preparam a renovação do probabilismo de acontecimentos, os quais não estão em absoluto ligados à determinação causal. Se a causalidade final (cogito(2)) não for alcançada, propiciará uma nova lacuna, possibilitando uma nova busca, que poderá ou não atingir ao plano do cogito(3) da consciência pura.

Sobre o cogito(3): Quando se chega a este estágio de repouso ativado (ou repouso fervilhante), o ser, aquele já desenvolveu tais capacidades de pensamento, poderá conseguir quase tudo o que necessita no plano da vida consciente. Por isto, Bachelard (A DIALÉTICA DA DURAÇÃO) afirma que o indivíduo que alcança esse nível de conhecimento de sua atividade psíquica passa a ter uma particular felicidade. No cogito(3), plano lacunar, quase espiritual (abeirando-se do espiritual), o que o indivíduo imaginar, em termos de idéia, já toma uma forma definida, que poderá adquirir vida no mundo dos fenômenos, se ele assim o desejar. O que este indivíduo imaginar, no plano do pensamento puro, ao nível do cogito(3), tem tanta força, aparece tão bem definido, que ele saberá como dar forma a essa imaginação no mundo real. O ser especial, singular, o que consegue alcançar o cogito(3), não tem necessidade da representação (primária) da realidade vital — ordinária, linear —, pois a representação desse cogito se basta da forma que foi alcançada no tempo do pensamento, que é tão definida quanto seria se ela fosse representada no plano do tempo vital. É nesse espaço do pensamento (ainda nos limites da realidade vital, mas acima do tempo vital) que a vida espiritual (cogito(4)) torna-se estética pura, vida esta que só se tornará possível dentro do tempo descontínuo. Penso, revigorada por tais idéias, na literatura do século XX e início do século XXI, especificamente, como oriunda do cogito(4), plano da espiritualidade, descontínuo, mas formalizada esteticamente no cogito(3), plano do pensamento puro e inovador.

A instantaneidade das formalizações bem ordenadas do tempo do pensamento não admite sucessão de níveis; os níveis ficam juntos numa ordem própria, tendendo para fora do eixo horizontal. É por causa dessa tendência para fora que existe a percepção intuitiva de uma sucessão de níveis. Em cada nível, existe uma qualidade psicológica que, em nível um, por exemplo, por estar preso à realidade, preenche as lacunas, para manter a idéia linear de continuidade. Para quem está no cogito(1), ou mesmo no cogito(2) (cogito este já propenso ao pensamento lacunar), a vida temporal de quem se encontra no cogito(3) denota a presença de espaços mentais vazios. Nesse estágio, o pensamento transmutativo (privilégio do cogito(2), mas poucas vezes reativado) se evidencia com maior riqueza. Toda a vida do pensador (pensador singular, original) será fundamentada na força das formas (pensamentos) ainda não conceituadas, as quais darão coerência a sua vida mental, dissociada das razões corriqueiras.

Por estas razões, invadi esta dimensão particular do ficcionista Guimarães Rosa, impulsionada pelos estudos de Bachelard sobre a duração, desenvolvendo o que chamarei aqui de Psicanálise da Criação. Da filosofia bachelardiana retirei a minha idéia de uma consciente ascensão do escritor aos últimos estágios do pensamento, próximos ao cogito(4) da espiritualidade, plano totalmente lacunar, consentindo assim, a si mesmo, uma continuidade psíquica de suas origens, no âmbito da  Arte.

A força das formas desconhecidas (não conceituadas, intuídas), força que oferece coerência à vida lacunar, dissociada das razões corriqueiras, é o que Bachelard chama de estética pura, usando outras palavras, a transcendência formal/material, a ultrapassagem do tempo (sucessivo) das formas reais. O que se intui no cogito(3), para ter coerência, para ter duração e representação no mundo vital, terá de ser justificado por razões (juízos, conceitos), as quais passaram antes por atitudes psicológicas formalizadas e diversificadas. A razão, proveniente da definição psicológica, dará apoio (consistência) às intuições vislumbradas pelo pensador.

Fundamentando-me na idéia da transcendência dos pensamentos formal e material (o além do cogito(3)), desenvolvi a tese da sobrecarregação dinâmica dos significados, ou seja, quando se sobrecarrega a dinâmica dos significados, a linguagem transcende o discurso numa dimensão novamente inicial (do Desconhecido, do Abismo, do Silêncio, do Não-dito, do Amorfo), e esta transcendência, ao contrário de esconder o seu significado, como enigma, dá às claras o seu sentido como Arte, realizando uma transformação que impulsiona o Leitor ao exacerbamento da realidade, ultrapassando a Loucura e efetivando depois uma ascensão ao concreto da forma literária, isto é, na recriação literária dos três cogitos socialmente aceitos.

Quero realçar, aqui, a minha própria leitura sobre esta ascensão ao concreto da forma literária, realizada primeiramente pelo Artista literário, ao formalizar seus pensamentos criativos, e em seguida pelo Leitor, ao compactuar e colaborar com o texto lido. Depois de ter conhecido a escalada dimensional do escritor Guimarães Rosa, brasileiro, nascido em um pequeno burgo incrustado no Sertão das Gerais, até o último estágio do pensamento permitido pela razão, o Leitor conseguirá também alcançar o mundo do imaginário-em-aberto, aproximando-se, por intermédio da leitura, do plano descontínuo da espiritualidade.

O ficcionista moderno, preso a seu momento estético, alcança a região limítrofe que separa o plano vital do plano da espiritualidade, mas não se afasta do cogito(3), cogito vital, ao contrário, reafirmo, equilibra-se entre os dois cogitos (cogito(3) e cogito(4)), concretizando o que vislumbrou no mundo amorfo e descontínuo, sob a forma ficcional.

Quero afirmar que não é o texto (literatura-arte), mas é o Artista ficional brasileiro Guimarães Rosa, inserido em uma realidade insólita, lacunar, de país terceiromundista (décadas de 50 e 60), que ultrapassa o terceiro cogito, aproximando-se do tempo espiritual (cogito(4)). Por sua ligação vital com a História do século XX, ele adquiriu o privilégio de intuir e recriar, literariamente, os descontínuos de sua própria vivência de brasileiro, desde a infância no sertão até aos mais elevados cargos sociais. Na verdade (não seria incorreto afirmar), quem ultrapassa o terceiro cogito é a realidade brasileira, além do narrador e de suas narrativas. A nossa lógica não se identifica completamente com o racionalismo europeu. No Brasil, mesmo nas cidades, nas camadas primárias, é a lógica do Sertão (Mitos, Ambigüidades, Imagens, Símbolos) que completa o imaginário da população e o seu mundo referencial.

No que se refere a minha distinção entre sujeito e indivíduo, penso que alguns esclarecimentos serão necessários. Os termos sujeito e indivíduo farão parte do desenvolvimento de minhas reflexões, significando cada um os cogitos que compõem a vida emocional-racional do ser. O sujeito, simbolizando o ser adstrito às leis e normas (conformado e limitado ao cogito(1)), e indivíduo, simbolizando o ser possuidor de idéias próprias, particulares, componente de um pequeno grupo que busca a evolução do pensamento, cada um a seu modo, possuidor, enfim, de uma consciência singular.

O conceito de imaginação, recuperado nestas páginas para uma compreensão teórico-filosófica da obra de Guimarães Rosa, prende-se à orientação bachelardiana, que a vê como faculdade de deformar imagens, ao invés de formar imagens. (A faculdade de deformar imagens não poderá ser avaliada ou interpretada, aqui, depreciativamente. Bachelard não desenvolveu suas idéias filosóficas submetido a juízos preestabelecidos). A formação de imagens liga-se mais à percepção do sujeito integrado ao Mundo (seja ele representante de qualquer segmento da Arte), e sua imaginação seria simplesmente evasiva, aberta, submetida às substâncias sociais. A imaginação dinâmica do Artista literário brasileiro do século XX (literatura-arte), poderosamente deformadora, ao contrário, é um convite a uma incursão-excursão (evidentemente, submetida ao racionalismo da consciência singular) rumo ao Desconhecido (imaginário-em-aberto, mundo do silêncio, mundo do Vazio Criador, ou qualquer denominação oriunda das inúmeras nomenclaturas teórico-críticas já existentes).

Ainda dialogando com Bachelard, reflito nas duas linhas distintas de imaginação destacadas em seus estudos filosóficos: a imaginação que dá vida à causa formal e a imaginação que dá vida à causa material. Essas duas imaginações classificam, separadamente, as forças imaginantes da mente. A imaginação que dá vida à causa formal se submete ao impulso do pensamento que tem desejo de novidade, buscando nas formas exteriores da realidade apenas os aspectos pitorescos e primaveris. A imaginação que dá vida à causa material, ao contrário, escava o fundo do ser, procurando encontrar o primitivo e o eterno. É portanto a imaginação que busca o aprofundamento na substância.

A imaginação que dá vida à causa material (imaginação material) é própria da matéria terrestre. Repleta de imagens estáveis e tranqüilas, poderá ser modelada, uma vez que se atém aos aspectos perceptíveis/palpáveis da realidade.

Essas duas linhas da imaginação estão presas à realidade concreta. A imaginação formal se prende à forma exterior da matéria. A diferença é que, enquanto uma (a imaginação formal) se diverte com o inesperado, a outra (a imaginação que dá vida à causa material) quer aprofundar-se na história e buscar na natureza o princípio de tudo, o princípio da própria matéria.

Paralelamente a essas duas imaginações da matéria terrestre, há também as imaginações falada e criadora:

A imaginação falada é a imaginação que reproduz a realidade, submetida à percepção e à memória e não pode ser modelada pelas mãos. Ela é modelada pela fala e pela percepção do impalpável. Esse tipo de imaginação não se aplica à matéria terra: é a imaginação das matérias inconsistentes e móveis (a água, o fogo, o ar), composta por imagens instáveis.

A imaginação criadora, ao invés de simplesmente reproduzir, duplica — ou recria — a realidade, produzindo uma nova realidade. Ela não é apenas formada, materializada, falada; ela ultrapassa a realidade, já que, poderosamente criadora, vigora em função do irreal, reconhecendo os valores da solidão. Na imaginação criadora, as imagens são imaginadas, fazem parte do imaginário-em-aberto do indivíduo, pois que se originam do fundo do ser que imagina. O ser, possuidor da imaginação criadora, produz em seu íntimo as imagens que formarão posteriormente uma realidade (literária) diferente da realidade substancial. Assim, a imaginação criadora está indissoluvelmente ligada à imaginação literária (falada/escrita). Há a separação, porque nem sempre os possuidores da imaginação criadora desenvolvem seus talentos literários.

Por último, um esclarecimento sobre as quatro perspectivas do pensamento, assinaladas por Bachelard e recuperadas transmutativamente nestas argumentações, para o embasamento de meu particular reconhecimento da obra roseana. São elas as perspectivas anulada, dialetizada, maravilhada e de intensidade material infinita, as três últimas ligadas aos aspectos materiais do pensamento, valendo-se, cada uma, numa ordem hierárquica, dos pensamentos formal, material, falado e criador.

A perspectiva anulada estaria simplesmente ligada ao pensamento formal: linear, sintagmático, descritivo. A adjetivação anulada não significa depreciação, significa apenas a forma correta que o filósofo encontrou para nomear a perspectiva do sujeito que olha sempre horizontalmente, sem questionamentos existenciais. A perspectiva anulada reproduz os reflexos exteriores da realidade (as cores e as formas de uma natureza encantadora e sem máculas).

A perspectiva dialetizada, apesar de ainda estar presa ao plano sintagmático, já direciona o olhar questionador, oscilante, para a descoberta do que se oculta na natureza, em outras palavras, é uma perspectiva ligada aos aspectos materiais da realidade (presa oscilatoriamente à imaginação material), caracterizada apenas pelo elemento terra. A visão dialetizada torna-se aguçada, penetrante, propensa a movimentos pendulares, transformando o que se deseja ver em objeto, ou mesmo se colocando no interior desse objeto, para ver com maior nitidez.

A perspectiva maravilhada está intimamente unida à perspectiva dialetizada. Depois do olhar inquisidor e oscilante, ainda linear (perspectiva dialetizada), surge um novo olhar maravilhado, propenso à verticalização do pensamento criador. O sujeito se extasia diante da grandeza que descobre. As minúcias da realidade se dilatam indefinidamente, porque a visão do sujeito começa o seu processo de elevação em direção a um olhar paradigmático, próximo ao individualismo. A perspectiva maravilhada propõe-se então a descrever o interior da matéria observada. Nesse estágio, o observador/sonhador não pára mais de observar/sonhar. Ao alcançar esse estágio, Rosa premiou-nos com a sua grande obra GRANDE SERTÃO: VEREDAS.

Posteriormente, submetido à perspectiva substancial infinita, o olhar do sonhador/ intérprete se desprende totalmente do plano horizontal, porque o sujeito já se transformou em indivíduo e já alcançou o estágio da pura intuição. O olhar agora não se prende apenas à descrição das formas da matéria (exteriores e interiores), prende-se à descrição dos movimentos da matéria, detectando imagens novas, criando imagens dinâmicas a partir das imagens estáveis. O olhar móvel e paradigmático propiciará então uma descrição minuciosa das qualidades voláteis da matéria, ou melhor, das matérias que compõem a realidade vital, já que observará, por vários ângulos interativos, as formas antes indefinidas: o fogo, a água e o ar. As obras finais de Guimarães Rosa, a começar de PRIMEIRAS ESTÓRIAS, adquiriram forma ficcional através dessa perspectiva.

Fechando minhas considerações sobre as perspectivas, já poderei afirmar, conscientemente, que as perspectivas dialetizada, maravilhada e a substancial infinita necessitam, no plano narrativo, da contribuição do pensamento formal. No âmbito da ficção, este plano formal do pensamento exigirá do estudioso muita atenção, uma vez que o cogito(1) (pensamento formal, linear), será sempre a base que sustentará os outros patamares dos cogitos verticais. Um texto ficcional vertical, por mais elevado ou profundo que seja, necessitará sempre da sedução das formas, do encanto que emana do pitoresco, para que possa realizar seu objetivo final: receber a atenção do Leitor.

Realçando mais uma vez minhas premissas, limitarei a minha proposta para um novo posicionamento crítico, brasileiro, a quatro módulos, para o desenvolvimento e fecho de meu objetivo: (a) falar do Artista ficcional Guimarães Rosa e suas faces sociais, de sua obra e matéria eleita; (b) de seu momento de repouso ativado (estado reflexivo situado num tempo suspenso entre o antes e o depois), momento de intermediação que projeta ou não o pensador para uma ascensão aos cogitos superiores; (c) abordar a problemática da psicanálise da criação (os cogitos e os elementos que marcaram a produção literária de Guimarães Rosa, além de sua própria introjeção no seu universo ficcional), problemática esta dialetizada ad infinitum pelo ficcionista, o qual não se desprende em absoluto dos cogitos dois e três, (d) mesmo constatando-se a sua familiaridade com o cogito(4) (a facilidade em transformar o ilógico em lógico, no universo da Ficção-Arte).

O além do cogito(3) fechará minhas elucubrações teóricas sobre o escritor e sua Obra, momento em que procurarei provar que o cogito(4), mesmo sendo um plano de difícil acesso (fora dos limites vitais, no qual poderiam ser incluídos os Loucos e os Visionários), é uma dimensão que foi alcançada, criativamente, pelos escritores brasileiros do século XX. Na impossibilidade de desenvolver um reconhecimento crítico globalizante sobre esses escritores, destacarei  um singular intérprete ficcional da realidade interiorana de Minas Gerais, Guimarães Rosa, independente das teorias que o avaliam como narrador de estórias sertanejas.

Para reforçar minhas convicções teóricas, as quais levaram-me a pensar e repensar a forma correta de como sustentar a defesa de meu objetivo central, contei, evidentemente, com a contribuição filosófica de Gaston Bachelard, sobre a duração e sua positividade/negatividade e vice-versa e suas providenciais argumentações sobre as matérias que compõem a vida. Além de Bachelard, assinalarei, também, as contribuições sociológicas de Max Weber e Walter Benjamim, e de outros pensadores e teóricos que preencheram, ao longo de minha vivência acadêmica, as lacunas de meu Conhecimento. Deste modo, pelo ponto de vista da interdisciplinaridade, será possível detectar tais contribuições sociológicas e, diluídas ao longo destas páginas, as contribuições de vários estudiosos da hermenêutica do texto literário, além de se apreender com clareza minha formação de base semiológica, alicerce analítico para os demais paradigmas críticos da atualidade. Todos os pensadores e teóricos que auxiliaram-me, direta e indiretamente, por intermédio de seus escritos, serão discriminados na Bibliografia.

Finalizando, o que se busca nesta PROPOSIÇÃO é reconhecer a escalada sócio/mental do Artista brasileiro Guimarães Rosa, nato do sertão e cidadão do mundo, aos cogitos superiores da mente. Depois do reconhecimento, passarei a evidenciar a sua incursão/excursão ao plano intermediário entre o mundo vital e o mundo espiritual e o seu retorno ao plano do cogito(3) do pensamento puro, representado, nas suas últimas fases criativas, por um discurso insolitíssimo (vazio criador), beirando os limites frágeis da sanidade.



II – um sertão inesquecível

II – um sertão inesquecível

II.1 - Sertão: Casa da Infância

A poética da casa de Gaston Bachelard (cf. A ÁGUA E OS SONHOS) possibilita ao teórico da literatura, possuidor de um razoável conhecimento de como se interpretar um texto literário pelos princípios da fenomenologia, uma incursão/excursão ao Sertão Ficcional de Guimarães de Rosa. Suas primeiras narrativas, escritas sob o impacto da descoberta de um mundo sertanejo incomum, apresentam a parte externa, pitoresca, de um espaço geográfico, memorável, resgatado das impressões da infância. Entretanto, o sertão mineiro, como representação legítima da casa inesquecível do escritor, só começa a ser recuperado criativamente a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, revelando seus recantos secretos, seus refúgios, seus abrigos. O narrador, nesta narrativa, já evidenciando uma mudança de perspectiva (saíndo da perspectiva horizontal para a perspectiva interativa, questionadora), recordando o sertão, auxiliado pela contribuição da matéria lírica, recorda a casa da infância daquele que o concebeu ficcionalmente, e é por isso que o escritor sertanejo, num determinado trecho, liberta-se do jugo do narrador experiente, para recordar a antiga morada. É seu passado inesquecível que se sobressai, quando se descontrola discursivamente, em sua narração dos acontecimentos que pautam a volta de Nhô Augusto ao Arraial do Murici. A volta do personagem representa o retorno das recordações de uma infância privilegiada. Por esta razão, observa-se o tom poético, o discurso estranho, diferente, o qual se verifica a partir da decisão de Nhô Augusto de regressar a seu arraial de origem. O ficcionista, sob a influência da consciência fervilhante, obriga o seu narrador do momento a partilhar de suas próprias emoções, nomeando os pormenores da caminhada e interagindo com os sentimentos inerentes a seu personagem ficcional.

O narrador informa que Nhô Augusto não percebia os rumos que tomava. Ouso afirmar, desvinculando-me (com inovadora consciência interativa) da constantemente modificada orientação analítico-estruturalista: o Artista literário do século XX não percebia os rumos que a narrativa tomava. Bachelard orienta-me: a casa — o sertão — faz o ficcionista devanear, faz seu narrador poetizar. Sertão inesquecível. Narrador já agora pós-moderno, que não consegue esquecer o castelo intrigante e misterioso de seu heróico passado sertanejo, o qual permanece vívido em suas recordações. Valores verdadeiros de uma antiga realidade imaginosa. Não são os valores objetivos que contam. Contam mais os momentos marcantes da infância e adolescência vividos naquele lugar, os quais permaneceram indeléveis no íntimo do Artista. Narrador-Poeta ou Poeta-Narrador, ou simplesmente Poeta? Os poetas não delegam poderes, apenas sentem, recordam, devaneam, não transitam entre dois mundos diferentes, se encontram além da objetividade histórica. Por tais motivos, centralizei minha investigação sobre a poética da casa, ao interagir interpretativamente com a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, nos trechos que reproduzem a interferência da matéria lírica na criação poético-ficcional do narrador.

Bachelard cita Jung em sua Introdução:

Temos que descobrir uma construção e explicá-la: seu andar superior foi construído no século XIX, o térreo data do século XVI e o exame mais minucioso da construção mostra que ela foi feita sobre uma torre do século II. No porão descobriram fundações romanas e, debaixo do porão, acha-se uma caverna em cujo solo se descobrem ferramentas de sílex, na camada superior, e restos de fauna glaciária nas camadas mais profundas. Tal seria mais ou menos a estrutura de nossa alma.1

O sertão literário de Guimarães Rosa está nas bases da estrutura de vida do narrador, extensivo portanto às bases de estrutura de vida do ficcionista. O andar superior foi construído no século XX; o térreo (ligado ao sertão mineiro) data do século XVI, início da História do Brasil; mas, se houver uma observação minuciosa, será possível compreender que esse Sertão tem seu alicerce cravado na Era Medieval. Observando as camadas mais profundas, apreende-se uma origem sueva localizada numa fase pré-medieval de Portugal, em um tronco familiar bárbaro, cujo apelido (sobrenome) de família era Guimaranes.

Eis o depoimento de Guimarães Rosa ao crítico Lorenz:

Para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais: sou mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo: Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele.2

O Sertão ficcional roseano simboliza a casa inesquecível do Artista Literário. Dentro desta casa íntima há um determinado Sertão que não se esquece, por isto ele diz a Lorenz, na Entrevista, que leva o sertão dentro dele e que o mundo em que vive é também o sertão3. Sua literatura nasceu de sua vida íntima e sua verdade existencial se orienta através das recordações do sertão. A memória (matéria épica) é insuficiente para transmitir sentimentos que remontam a pré-fase da humanidade, inserida na alma de um único homem. Pelo prisma psicológico/filosófico de Gaston Bachelard (POÉTICA DO ESPAÇO), a primeira morada será sempre a base de futuras recordações.

As primeiras vivências, mesmo aparentemente esquecidas, permanecem alojadas, armazenadas em íntimos compartimentos secretos. O interior desse sertão (sua intimidade, sua primeira morada) transparece por meio do olhar nostálgico de seu narrador. Se a narrativa, nas últimas seqüências, se processa mediante um discurso diferente do comumente usado para reproduzir a realidade, isto se dá graças à complexidade de se recordar de quem narra. A recordação (matéria lírica) é caótica e, pelo ponto de vista da criação, valiosa. Por estas razões, as imagens finais se encontram dispersas e, ao mesmo tempo, há um corpo de imagens4, fervilhante, que as legitima no âmbito da ficcionalidade.

Seguindo ainda as teorizações de Bachelard, percebe-se que esse acúmulo de imagens (ou imaginação além dos limites) aumenta os valores da verdadeira realidade do sertão mineiro no sentido material. O sertão mineiro foi a primeira morada do escritor Guimarães Rosa, o Sertão literário roseano concentra as imagens dessa casa. No sertão da infância, antes de tomar para si as rédeas de sua própria proteção, ele foi um ser protegido. Foi ali que conheceu o calor do fogão a lenha e o aconchego do afeto familiar. Depois o mundo o envolveu.

Bachelard diz que "a casa é o nosso canto do mundo"5. Guimarães Rosa adquiriu inúmeros talentos, projetou-se, transformou-se em cidadão do mundo, mas o sertão permaneceu como seu canto do mundo no Mundo.

Eu sou antes de mais nada um "homem do sertão"; e isto, não é apenas uma afirmação biográfica, mas também e nisto pelo menos eu acredito firmemente, que ele, esse "homem do sertão", está presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa. (...) Este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim um símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo.6

O sertão foi seu primeiro universo e seu verdadeiro universo, e o que veio depois não o satisfez realmente. Não se encontra satisfação interior em um mundo refletor de hipocrisias, e o mundo que circunda o Sertão roseano, sem afetá-lo inteiramente, reflete a degradação do homem moderno (desde o século XVI), distante temporalmente dos valores irretocáveis da Antiguidade. O narrador roseano (já transitando para o pós-moderno) de A hora e vez de Augusto Matraga transporta-se, ao longo de sua narrativa, até "o país da Infância imóvel"7, de onde recupera, por meio da nostalgia, os tesouros de um espaço verdadeiro, porque suas lembranças são verdadeiras. Sua antiga felicidade sertaneja é verdadeira. As histórias de grandes homens ou de violentos senhores-de-terra são verdadeiras, porque se encontram registradas nas recordações, não fazem parte da memória. São a verdade dos sentimentos, não são a verdade da memória histórica, replena de falsos testemunhos.

Bachelard, como filósofo, procura interpretar as imagens da casa, tendo "o cuidado de não romper a solidariedade da memória e da imaginação"8, aspectos racionais da realidade. Os teóricos da literatura poética dignificam mais as recordações do Poeta. Bachelard diz que "a casa abriga o devaneio, protege o sonhador, permite sonhar em paz"9; a casa-Sertão de Guimarães Rosa só se faz verdadeira graças ao devaneio, ao sonho do sonhador somado às recordações (de novo ao coração). Bachelard diz que "os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade"10. O objetivo do narrador roseano não é a aprovação dos valores sertanejos (matéria épica), é mais importante realçar os valores que marcaram esse povo em sua profundidade. Por isto, o Artista sonha em paz, quando sonha o Sertão, porque esse sonho valoriza um espaço que lhe é caro, vivenciado dentro de um clima de sonho (Sonho dentro do sonho). Suas recordações se encontram ancoradas nesse Sertão de sonho ou ficção poética, matéria que integra pensamentos, lembranças e imagens literárias. Nessa integração se sustenta o retorno de Nhô Augusto, pautado por um discurso intrincado, no qual a realidade se encontra modificada pelo crivo de sentimentos interiorizados. Nesse discurso, vale mais a criatividade poética, mesmo que esta criatividade apareça dentro dos moldes ficcionais. Nesse discurso, o universo sertanejo aparece fragmentado, subjetivo, singular, porque o narrador se enreda em seus próprios devaneios e circunlóquios, alheio à matéria focalizada. O Sertão emerge instantâneo, imobilizado e complexo, do ponto de vista mágico do Poeta, não do Ficcionista.

É Guimarães Rosa quem fala: "Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade"11. Em suas narrativas, se unem a criação poética e a realidade, simplesmente porque o Sertão roseano (Sertão que passou pelo selo do devaneio a partir da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, que teve seu momento de alta inspiração em Grande Sertão: Veredas, e que foi imaginado criativamente nas obras posteriores do autor) é um recanto de pura poesia. Sertão poético, espaço poético12, onde as recordações (interferência lírica) suplantam a objetividade da memória. Se a casa abriga o devaneio, o Sertão abriga o devaneio de quem recorda. Sertão imperecível.

O Sertão das Gerais foi a força do indivíduo Guimarães Rosa, sustentando-o "através das tempestades do céu e das tempestades da vida"13. O sertão mineiro como "corpo e alma"14: corpo, como realidade de vida; alma, enquanto realidade poética. Sertão-berço, sertão-casa, sertão-mundo; sertão fechado, agasalhado, protegido no seio de uma outra casa: seu próprio interior. Ele vivenciou inúmeras fases/faces de vida, "jogado no mundo"15, mas não perdeu o contato com o bem-estar primitivo do colo. Enfrentou a separação, saindo "fora do ser da casa"16; aceitou mudanças de valores, tornando-se citadino e moderno, mas negou-se a romper definitivamente com os valores da antiga e primeira morada. Eis a força de sua temática poético-narrativa.

As reminiscências do passado, em forma de ficção poética, mostram que o aconchego do berço mantiveram a infância do Artista imóvel em seus braços. O Sertão roseano (segundo segmento da narrativa em questão) como compartimento de recordações: todos os cantos e recantos bem caracterizados; uma vida de interiorização e resgate poético de um passado que se faz presente, quando se quer paralisar o tempo que passa. Lugar que "retém o tempo comprimido"17, prelúdio de silêncio que antecede o instante de poesia.

As imagens do texto recuperam esse tempo: são imagens conotativas, são a percepção do sertão poético, espaço opaco e gratuito, pelo qual se vislumbram os questionamentos sócio-existenciais de um escritor paradoxal (sertanejo e citadino), obrigando-se a transferir para seu personagem Nhô Augusto seus espantos e descobertas supra-reais. Ele retoma o passado, ou seja, recorda sua antiga morada, mas camufla esse retomar, ao transferir para Nhô Augusto, personagem aparentemente central, o privilégio de nascimento e glória, o privilégio de ser nato de um mundo imaculado. Narrador paradoxal, Artista paradoxal, porque não é somente a história de Nhô Augusto que se sobressai; sobressai-se um discurso narrativo insólito, ou melhor, uma narração, uma enunciação, em que as palavras pesam mais; sobressai-se mais a expressividade da narração, a declaração subentendida de que o narrador da estória não se encontra longe da matéria focalizada; sobressai-se mais o fato de o Artista ter muita intimidade com aquele espaço, e, assim, a narração o representa no aspecto profundo de seu próprio ser.

A narração, discurso das palavras, expressa o ficcionista no plano das probabilidades de vida; a narrativa, que reproduz o personagem, é a ficção enquanto reprodução da realidade, ligada ao discurso das coisas. Por isto, as imagens do texto são também paradoxais: imagens imitativas (o referencial, a percepção dos objetos reais) mesclam-se e se opõem às imagens conotativas (a percepção do literário)18.

Se há paradoxos narrativos e existenciais, em virtude das inúmeras vivências do Artista, não se observa nenhum paradoxo na apreensão literária dos valores do sertão. No desenrolar da narrativa roseana, o espaço do Sertão anula as imperfeições da memória, não admite o paradoxal, a mácula, quando o assunto diz respeito a ele mesmo, porque o espaço desse dito Sertão é totalizador, não se deixa pensar dentro de um tempo abstrato e fluídico. Esse espaço comanda o fluir da narrativa, tornando-se, o Sertão, o sujeito da ação; espaço vivo, graças à paixão que o Artista lhe devota; espaço vivo de um solitário indivíduo que alcançou o cogito(3) da consciência pura.

Apenas alguém para quem o momento nada significa, para quem, como eu, se sente no infinito como se estivesse em casa, (...), somente alguém assim pode encontrar a felicidade e, o que é ainda mais importante, conservar para si a felicidade. Au fond, je suis un solitaire.19

Espaço vivo, refletor de uma infância rica e solitária; espaço que permaneceu intacto nas recordações do homem, na recusa de apagá-lo do presente; Sertão endeusado e retomado sob forma de ficção poética; Sertão sempre revisitado nos sonhos e nas recordações; Sertão labiríntico, onde apenas se encontra à vontade o personagem-narrador, dentro de seu narrar. Ao Artista não interessa ser ou não entendido; as aventuras de Nhô Augusto são narradas para si mesmo, porque Nhô Augusto é apenas uma justificativa de enredo narrativo. Interessa-lhe mais poetizar o espaço do sertão, trazer novamente ao coração as lembranças do passado, nas quais se misturam verdades e poesia.

O Sertão de Rosa é o reduto da volta e da busca permanentes, mesmo que, em realidade, este Sertão já não exista; é o reconforto das lembranças de um lugar aconchegante, onde as minúcias daquele mundo, visíveis e invisíveis, estão recolhidas em seu íntimo. São lembranças fragmentadas transformando-se em acontecimentos dignos de relato. Nessa superabundância de pensamentos que se entrechocam e se ajustam, observa-se o discurso retórico, característica do literário, segundo Lefebve20, e é justamente esse discurso retórico que impõe as diretrizes da narrativa, a partir do retorno do personagem ao Arraial do Murici.

De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. mais outro. E ainda outro, mais abaixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gargalhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro. (...) E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra.. E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido — rrrl, rrril, rrrl-rrril!...21

O personagem está em vias de retornar ao Arraial do Murici, mas, antecipando-o, o Artista já iniciou seu processo de retorno à antiga morada, por intermédio do devaneio poético. "As regras do código retórico são sempre suspeitas, susceptíveis de serem contestadas, transgredidas, repudiadas"22. As regras da narrativa roseana transgridem as normas, para não se transformarem em letra morta. Por isso, há desvios, desestruturações, que violam o código ordinário, e, graças a esses desvios, o discurso ganha vida, e é como se realmente o leitor estivesse assistindo ao alarido dos periquitinhos, à algazarra dos tuins chovendo nos pés de mamão. Recordando o sertão em sua ficção poética, o Artista interroga uma realidade (o conteúdo dessa realidade) e exige a presença física dessa realidade, mesmo que, para que isto aconteça, seja necessária a adoção de um discurso inventivo, criador de novos meios de expressão. Assim, apreende-se o estranhamento pós-moderno do discurso textual: os fonemas r, i, l, agrupados de forma a caracterizarem o alarido dos tuins. Por que a manhã gargalhou com a revoada de pássaros?

Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás.23

Os estranhamentos do discurso textual, indicando "uma intenção literária e um efeito literário comuns à prosa e à poesia"24. O narrador, em alguns trechos da narrativa, encontra-se sob as exigências do mundo poético, onde todas as contribuições imagísticas são bem-vindas. Nas últimas seqüências da narrativa, o discurso é poético, repleto de metáforas, antíteses e estranhamentos. O narrador faz seu personagem sertanejo cantar velhas cantigas e se encantar com a Natureza. É o insólito irrompendo do texto. São os estranhamentos de um Sertão de sonho, que jazem no inconsciente de quem recorda. Sertão estranho, porque representa o passado, espaço que protegeu uma felicidade que já não existe. O narrador (um prestigioso alter ego) não pensa o caminho para a frente, o ver passar a vida, porque as veredas do passado foram muito mais amadas e jazem intactas dentro de seu espaço interno. Sertão atraente, recantos e veredas atraentes, saídos das camadas profundas do ser.


O excesso de pitoresco de uma morada pode ocultar a sua intimidade. Isso é verdade na vida; e mais ainda no devaneio. As verdadeiras casas da lembrança, as casas aonde os nossos sonhos nos conduzem, as casas ricas de um fiel onirismo, rejeitam qualquer descrição. Descrevê-las seria mandar visitá-las. Do presente pode-se talvez dizer tudo; mas do passado! A casa primordial e oniricamente definitiva deve guardar sua penumbra. Ela pertence à literatura em profundidade, isto é, à poesia, e não à literatura eloqüente, que tem necessidade do romance dos outros para analisar a intimidade. Tudo o que devo dizer da casa da minha infância é justamente o que preciso para me colocar em situação de onirismo, para me situar no limiar de um devaneio em que vou repousar no meu passado.25

O Sertão é pitoresco e íntimo, é verdadeiro, se houver crédito para a verdade das recordações. Buscando a etimologia da palavra recordação, encontra-se o sentido poético, que se traduz por novamente ao coração. O que se aninha no coração é verdadeiro e íntimo, mais verdadeiro ainda no devaneio, segundo Bachelard. Assim, Sertão verdadeiro, produzindo um discurso poético verdadeiro, avesso a qualquer descrição. Nas seqüências finais de A hora e vez de Augusto Matraga, o sertão está imobilizado, porque este narrador detém o tempo (já está íntimo de um cogito especialíssimo), "destrói (momentaneamente) a continuidade simples do tempo encadeado"26. Coloquei acima uma ressalva momentaneamente, porque a narrativa seguirá seu curso normal até o final, submetendo-se às exigências da continuidade da ficção.

A ressalva se justifica, mas não deixarei de ressaltar o trecho da seqüência final, porque é a partir dele que visualizo o insólito na narrativa, e o insólito em Guimarães Rosa se faz presente apenas no discurso. Por estas razões, o discurso é poético, vertical, fugindo intermitente do pensamento explicado; assim, o referido trecho é mais verdadeiro: representa o Sertão do narrador-poeta, antitético, contínuo e descontínuo, alheio às exigências do mundo; representa o eu profundo de um Artista de dupla orientação: preso a um tempo másculo e valente que se arroja e despedaça (Nhô Augusto seria o representante desse tempo), mas, ao mesmo tempo, preso a "um tempo doce e submisso que lamenta e chora"27; representa implicitamente, apaixonadamente, o Sertão-casa, edificado depois do repouso fervilhante do tempo do pensamento, perdido no tempo histórico. Neste segundo instante, "instante poético"28, o personagem verdadeiro não é Nhô Augusto, é o narrador, alter ego do Artista do século XX. Nhô Augusto simplesmente empresta sua fisionomia, assume o lugar do verdadeiro personagem.

Os valores do sertão estão enraizados no inconsciente do Artista Ficcional Guimarães Rosa e são evocados por intermédio do devaneio e dos estranhamentos do discurso do narrador, não por meio da descrição minuciosa. O Sertão roseano reflete a pureza das antigas comunidades e é mais verdadeiro do que o verdadeiro Sertão das Gerais. É verdadeiro, porque está preso às recordações. Não há como descrever esse Sertão, de acordo com as regras tradicionais da narrativa, e o recurso é se valer de uma descrição que se submeta às variações mentais de quem narra, à mistura de estilos, à interrogação da própria realidade do texto. Graças ao devaneio poético, há os estranhamentos lingüísticos, o insólito irrompendo do texto.

E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado: "Eu quero ver a moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo o pote na lagoa..." Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.29

Asas conotando pássaros. Asas impondo ao leitor a visualização da grandiosidade do espetáculo do bando de maitacas, maracanãs, tuins e outros diversos pássaros voando em direção ao sul, em períodos cíclicos.

Outro estranhamento: depois que os pássaros passam, Nhô Augusto raciocina: Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem estar longe daqui... Logo a seguir, observa-se a perplexidade do próprio narrador, induzido evidentemente pelo Artista: Longe, onde?, se não há distâncias no mundo ficcional.

Longe, onde? O Sertão não se encontra imobilizado no passado, como algo que já sofreu um processo de transformação e ficou para trás. O Sertão é um lugar em permanente movimentação no íntimo do narrador, porque está vivo. Os pássaros passam em bandos, agitados, barulhentos, presentes, habitantes de uma região insólita, onde o tempo não estacionou, mas também não se delimita em passado, presente e futuro. Não são as experiências do homem que contam nesta evocação, são as experiências da infância (Sertão: casa da infância); são as recordações da infância que mantêm vivo esse espaço de sonhos, onde o tempo permaneceu intocável nos subterrâneos de uma memória privilegiada. Não é o passado como uma soma de acontecimentos diversos, repositório de atitudes éticas e de normas de vida para os pósteros. É o passado comunitário, resgatado como antítese de um presente que se movimenta rapidamente em direção à futura desintegração do mundo moderno.

Quero ir namorar com as pequenas, com as morenas do Norte de Minas...
Mas, ali mesmo, no sertão do Norte, Nhô Augusto estava. Longe, onde, então?30

Longe, onde? Não há uma ordem pré-estabelecida, não há tempo e espaço detectáveis. A linguagem roseana transgride o curso e equilíbrio da realidade padronizada, obrigando o leitor a aceitar valores temporais embaraçados, superposições espaciais; artifícios imagísticos só percebidos sob a égide de uma leitura direcionada e especulativa. Espaço e tempo diferentes, elementos anticonvencionais de uma estrutura sem medidas, que não possuem vínculos com o relógio do tempo vital. Assim, o narrador se surpreende com suas próprias confusões temporais e espaciais. Seu personagem se encontra no sertão do Norte e, graças à cantiga muito velha do capiau exilado, deseja ir para o Norte, para namorar as morenas do Norte de Minas.

Pois não aconteceu que, um belo dia, eu simplesmente decidi me tornar escritor. Não veio por si mesmo; cresceu em mim o sentimento, a necessidade de escrever e, tempos depois, convenci-me de que era possuidor de uma receita para fazer verdadeira poesia.31

Os pássaros voando; os espaços superpostos; o aqui e o acolá do Norte de Minas; a sobrevivência de instantâneos mágicos da infância; a sustentação do devaneio, evocações; o olhar poderoso do Artista de transição para a pós-modernidade (técnica do olhar), expressando uma visão diferenciada do sertão; uma linguagem estranha, propiciando uma ininterrupção temporal e espacial, insolitamente decalcada nos subterrâneos das recordações.

O Artista manipula o resgatar dos sentimentos que saem de si. Por isto, a superabundância de símbolos, de imagens, invenção de novas palavras, retomada de valores léxicos que não condizem com as normas estabelecidas. O passado acabado é resgatado pelo presente inacabado, sem sofrer desgastes, emanando uma luminosidade gerada pelo poder das líricas evocações.

Não sou romancista; sou um contista de contos críticos. Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade.32

Prosa repleta de Poesia, porque "a poesia é uma metafísica instantânea"33. Somente a poesia transcende os limites da realidade vivida. Prosa que almeja recuperar segredos poéticos, seguindo o tempo e, ao mesmo tempo, imobilizando-o por meio do devaneio criador. Não há somente métodos e provas que ressaltem o aspecto ficcional; há muito mais, porque há a "necessidade de um prelúdio de silêncio"34, sustentando a poética do narrador. A narrativa encadeada não revelaria as minúcias De um lugar idealizado; o narrador, valendo-se da ficção poética, impede que se duvide da veracidade dessas lembranças, impõe um Sertão imaculado, localizado nas impressões da infância, guardando segredo absoluto das imperfeições que existem no sertão mineiro, já deteriorado pelos males da modernidade.

Por estas razões, os pássaros voam permanentemente dentro do devaneio criador do Artista, enquanto seu narrador faz longos questionamentos verticalizantes. Os pássaros voando estão dentro do tempo psicológico e perceptivo do tempo do pensamento, e as perguntas sem sentido narrativo são na verdade palavras ocas, reveladoras de "instantes poéticos", que "fazem calar a prosa e os trinados que deixariam na alma do leitor uma continuidade de pensamento ou de murmúrio"35. Não há padrões narrativos que impeçam o decalque no texto desse tempo interior e diferente. A memória é insuficiente para resgatar velhos valores sertanejos, e há vazios imensos, necessitando de preenchimentos que sustentem a verdade das recordações. Os pássaros da casa-Sertão voam permanentemente dentro das lembranças do Artista, fazem alaridos e brincadeiras, porque as sensações felizes da infância impõem continuidade ao tempo imobilizado do passado, incoerentemente móvel dentro da imobilidade do instante poético. Não há métodos e provas, porque o Artista destruiu as ligações com a objetividade da História, para construir uma narrativa poética e complexa, presa a um tempo que se encontra dentro de uma idealizada subjetividade. Tempo detido, tempo que não segue a medida, tempo vertical, segundo as concepções filosóficas bachelardianas, mas também tempo fluídico e abstrato e, paradoxalmente, em permanente movimento.

As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta.36

O Artista ficcional vive a aventura de vagar no infinito, dentro da ilimitação da criatividade poética. Entre o mundo objetivo e seu universo interiorizado, há a força da arte de escrever, exibindo palpavelmente o hiato criador que se encontra entre a aparência e a essência de uma realidade idealizada. Sua meta, unindo à narrativa linear o instante poético, é fixar a eternidade da arte num texto que, em princípio, apenas reproduziria o sertão. Para um escritor que vive no infinito e o momento não conta é fácil transformar o sertão em ficção poética. Quem vive no infinito são os Poetas.

O instante poético é, pois, necessariamente complexo: emociona, prova — convida, consola —, é espantoso e familiar. O instante poético é essencialmente uma relação harmônica entre dois contrários. No instante apaixonado do poeta existe sempre um pouco de razão; na recusa racional permanece sempre um pouco de paixão. As antíteses sucessivas já agradam ao poeta. Mas para o arroubo, para o êxtase, é preciso que as antíteses se contraiam em ambivalência. Surge então o instante poético... No mínimo, o instante poético é a consciência de uma ambivalência. Porém é mais: é uma ambivalência excitada, ativa, dinâmica. O instante poético obriga o ser a valorizar ou a desvalorizar. No instante poético o ser sobe ou desce, sem aceitar o tempo do mundo, que reduziria a ambivalência à antítese, o simultâneo ao sucessivo.37

Os paradoxos expressam o instante poético de quem narra, aquele que um dia disse ao crítico Lorenz:

Como romancista tento o impossível. Gostaria de ser objetivo, e ao mesmo tempo me olhar a mim mesmo com os olhos de estranhos. Não sei se isso é possível, mas odeio a intimidade.38

Os dois aspectos do romancista: os paradoxos que caracterizam o caráter ambivalente do Poeta. Sua ficção poética valoriza o sertão mineiro e desvaloriza a modernidade. O escritor não está comprometido com seu momento histórico e, no entanto, é íntimo desse tempo, ao vivenciá-lo em seu cotidiano; mesmo assim, não pensa ideologicamente, de acordo com os padrões modernos, porque sua ideologia é autenticamente sertaneja.

O narrador, por exemplo, não enuncia mandamentos de vida, não emite sentenças ideológicas, apenas sonha o Sertão que se encontra dentro do sonho daquele o idealizou. O narrador de A hora e vez de Augusto Matraga adota a ideologia dos contos infantis, ao punir seu personagem, fazendo-o expiar seus pecados de homem rude e poderoso, mas, ao mesmo tempo, reserva para ele um final que transcende os limites da realidade substancial. Submetido ao sonho do artista, não pune Nhô Augusto com a severidade da justiça humana, ao contrário, transporta-o para uma realidade idealizada, poetizando o desenlace e redimindo-o por meio de uma morte glorificada. Portanto, é o Artista que valoriza os instantes finais de Nhô Augusto, ao invés de puni-lo com a dureza da razão.

No trecho narrativo que registra o retorno do personagem até o momento de sua morte, há a paixão superior da matéria lírica, impedindo o domínio total da razão ordenadora. Conseqüentemente, há o resgate de velhas frases convencionais, insolitamente inseridas num contexto caótico; o arroubo do narrador vivenciando cada pormenor narrativo na transmissão das minúcias de um sertão poético; o êxtase final, ao narrar a morte de Nhô Augusto, transportando-o para o plano da santificação. O narrador é, indiscutivelmente, representante do Artista literário, ou seja, expressa os sentimentos de um indivíduo paradoxal: sertanejo e moderno. Escrevendo sobre a vida e morte de Nhô Augusto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, escreve sobre si mesmo, narra as aventuras que correm dentro de seu universo interiorizado e sertanejo, sem deixar de ser um homem estabilizado dentro de seu núcleo social citadino.

O Artista é escritor e "pensa em eternidades", pensa sobretudo "na ressurreição do homem"39. Nhô Augusto ganhou, pelas mãos do narrador, sua hora e vez, ganhou o privilégio de morrer redimido, porque, pensando na ressurreição do homem (do personagem), o Artista pensa na sua própria ressurreição, consciente que está dos vários estágios de ressurreição que existem no plano espiritual. Transformando o final de sua narrativa, demonstra não aceitar o tempo do mundo, produzindo um outro tempo, tempo verticalizante, tempo do pensamento, que busca as profundezas da alma, a ascensão ao cogito(4), por entre o devaneio e o infinito da realidade idealizada, por intermédio das recordações poéticas da infância.