O repouso103 para Bachelard não se traduz por um estado de
quietude, é antes um direito do pensamento, ou seja, é um direito e condição
que adquire o indivíduo que tem consciência de seus pensamentos. Desse modo, ao
invés de se deixar dominar por momentos distensos, este indivíduo coloca sua
inteligência singular a serviço de fervilhantes
e intensas especulações. O repouso
fervilhante acrisolaria pensamentos díspares, que seriam posteriormente
ordenados e julgados pela consciência
pura.
Em estado de repouso fervilhante
(repouso este sentido no nível da realidade temporal), Bachelard pensou a
questão da duração das coisas e seres dentro do tempo. O filósofo, em estado de
repouso fervilhante, reexaminou
inicialmente a questão do espírito, lembrando-se de que, ao lado dos que
afirmam (acreditam) as ações do espírito, há também os que as negam. Repensando
a questão do espírito, pensou a questão da duração: a idéia de um tempo
positivo, pleno, linear, cheio, completo não o satisfazia. Se ele podia
considerar as ações negativas e positivas do espírito como igualmente
importantes, poderia considerar também as ações negativas e positivas do tempo
como igualmente importantes. Com base em tais questionamentos, passou a admitir
a necessidade de fundar uma dialética do ser (existência) na duração.
Exercitando-se filosoficamente, sob o predomínio da meditação ativa,
esvaziou o tempo vivido dos excessos, seriou os diversos planos de fenômenos
temporais e percebeu posteriormente (depois do repouso fervilhante) que esses fenômenos temporais não duravam todos do mesmo modo. A idéia de
um tempo único correspondia a uma visão de conjunto imperfeita à diversidade
temporal dos fenômenos. Percebeu a ausência de sincronismo entre a passagem das
coisas e a fuga abstrata do tempo e, examinando a fenomenologia da duração
internamente, observando todos os seus planos temporais por um único ponto de
vista analítico, apreendeu uma dualidade de acontecimentos e intervalos e
concluiu, depois da meditação, que uma duração não é plena e contínua, ao
contrário, fervilha de lacunas, se observada no detalhe de seu curso.
Evidentemente, Bachelard rejeita a tese da continuidade temporal,
desenvolvida por H. Bergson. E aproveitando-se do fato de que Henri Bergson
postulou a idéia do nada em contraponto ao pleno, procurou recuperar o
equilíbrio (uma espécie de plano de interseção) entre a passagem do ser ao nada
e vice-versa.
Essa procura de recuperação do equilíbrio originou uma tese de base
indispensável para alicerçar a alternativa entre o repouso e a ação, ambos em
oposição. Para que esta tese obtivesse crédito, baseou-se numa concepção
dialética da duração, solucionando com isto, inclusive, e além do esperado,
sérios problemas colocados pela causalidade psicológica, ou seja, a origem ou
motivo de problemas psicológicos.
Por tais princípios, repensando inicialmente a questão do espírito,
pensou posteriormente a questão da duração e a questão do psiquismo. Observou
que o psiquismo possui camadas e percebeu planos descontínuos em sua produção.
Por exemplo, percebeu que a tão comentada continuidade
na eficácia das motivações intelectuais, continuidade
esta sempre reforçada pelos psicólogos radicais, não residia exatamente no
plano intelectual. A continuidade intelectual estaria no plano das paixões, dos
instintos, dos interesses, já que a continuidade, e se há realmente tal
continuidade, "não existe nunca no plano em que um exame particular
incide"104.
A continuidade psíquica, para Bachelard, coloca um problema, já que os
encadeamentos psíquicos geralmente são hipóteses. A vida complexa é composta
por uma pluralidade de durações díspares: ritmos diferentes, durações sólidas e
insólitas em seu encadeamento, com potências desiguais em seus segmentos. A
continuidade psíquica não seria nunca um dado específico e pleno, ao contrário,
comporia sempre uma obra, construída
pela pluralidade de durações, sob o lento ajuste das coisas e dos tempos, sob a
ação do espaço sobre o tempo e a reação do tempo sobre o espaço e, em tal obra,
permaneceria (historicamente) apenas a duração pela razão, tão diferente da
duração pelas coisas.
Para Bachelard, a duração verdadeira possui várias formas: a ação real
do tempo necessita da riqueza das coincidências, da sintonia dos esforços
rítmicos. O ritmo promove um repouso garantido, possibilita o reencontro com os
impulsos primeiros; seria, no caminho do ser, a noção temporal fundamental.
Assim, os chamados fenômenos da duração seriam construídos com ritmos, ou seja,
sistemas de instantes ou acontecimentos excepcionais, que marcam profundamente
a vida temporal. Esses sistemas de instantes ou acontecimentos excepcionais
sustentariam a regularidade da vida, os aspectos harmoniosos da vida, gerados
por pensamentos estáveis e seguros. Por esta ótica, o repouso, como o quer
Bachelard, seria uma vibração feliz, curando e desembaraçando a alma das
durações malfeitas.
Opondo-se ao pleno
bergsoniano, Bachelard sustenta a filosofia
da negatividade, provando que uma vida rítmica, sustentada por pensamentos
rítmicos e racionais (observar que Bachelard não está preocupado com o aspecto
sentimental ou passional da questão), desembaraça a alma das falsas
permanências, desorganizando-a temporalmente sob a égide da razão. A filosofia
da negatividade direciona os esforços de dissociação até o tecido temporal e,
com isto, ilude os ritmos malfeitos, aquieta os ritmos forçados, excita os
ritmos langorosos, enfim, busca a síntese do ser no ajustamento do que está por
vir, movimentando a vida sensatamente ritmada pelos sons equilibrados da livre
intelectualidade.
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