O
processo de mudança narrativa que gerou, por exemplo, as ficções insólitas das
décadas de 60 e 70 teve o seu início no Brasil a partir de 1930 com a chamada
Narrativa de Acontecimento, marca do discurso ficcional modernista. De acordo
com os postulados semiológicos de Anazildo Vasconcelos da Silva, há três
padrões narrativos: Narrativa de Personagem (discurso romântico), Narrativa de
Espaço (discurso realista/naturalista) e Narrativa de Acontecimento (discurso
modernista). A Narrativa de Acontecimento por sua vez se subdivide em quatro
modalidades: Narrativa de Acontecimento Simples, na qual se insere a obra de
Guimarães Rosa; Narrativa do Absurdo, por exemplo, as narrativas de Murilo
Rubião; Narrativa Fantástica e Narrativa do Real-Mágico, sendo esta última a
forma literária preferida do escritor colombiano Gabriel Garcia Marques.
Assimilando
conhecimentos semiológicos à filosofia bachelardiana do tempo instantâneo, penso nas narrativas de acontecimento como produtos do escritor modernista,
inserido em uma realidade caótica, ou ainda produtos do sonhador-escritor já prestes a recriar o estado de caos de seu repouso ativado, direcionando
verticalmente seu olhar e movimentando destramente a mão que escreve.
As
horas de repouso fervilhante,
aparentemente inativas, devem ser intuídas e posteriormente registradas, se o
Artista assim o quiser. Falei páginas atrás dos tempos superpostos, inclusive
destaquei os diversos aspectos do tempo, suas diferentes caracterizações,
ajustando-os à criação literária de Guimarães Rosa. Estudando as questões da
duração, pela ótica de Bachelard, descobri, por exemplo, as inquietações existenciais dos
pensadores, inquietações nascidas no
plano espiritual e profundamente dialetizadas no plano vital. Percebi também
que o pensamento transmutativo revela o espaço amorfo do espírito naquele
simples momento esvaziado que liga
uma questão a outra questão, um argumento a um outro argumento, uma reflexão a
uma outra reflexão, e assim sucessivamente. É o espaço sem limites do espírito
que se capta no intervalo de duas ações dialéticas combinadas. Pensando estas
questões, redescobre-se as palavras
do próprio Guimarães Rosa ao crítico alemão Lorenz, quando se autodenominou um
escritor paradoxal399.
Guimarães
Rosa, em suas narrativas finais, procurou ascender até o plano espiritual e,
com esta atitude, atingiu o espaço sensível de suas mais íntimas contradições,
descobrindo por fim a sua condição de Ser falível ante a grandeza do Nada.
Mesmo assim, predispôs-se a criar um mundo literário distante dos valores
objetivos da vida. Sua inquietude existencial proporcionou-lhe o vislumbre
desse espaço fora dos limites vitais e a criação de pequenas narrativas
repletas de contribuições metafísicas.
Se
o pensamento estiver em conformidade com Bachelard, na lição metafísica de
Hegel, será possível perceber que Guimarães Rosa se deu o ser ao se recusar o
ser na Literatura e, com isto, obteve a certeza de repouso íntimo
restabelecido, já que sua alma o obrigou, na fase final, a recusar os valores
objetivos, pelo menos em sua criação literária. Detecto assim um Guimarães Rosa
inquieto em sua fase final de criação literária. Por esta razão, observa-se um
discurso de difícil compreensão nas narrativas de Primeiras
estórias, Estas estórias, Tutaméia e, volto a reafirmar, em algumas narrativas de Ave, Palavra. Na verdade, não posso interagir reflexivamente com todas as narrativas de Ave,
Palavra pelo mesmo
prisma, já que a coletânea é um apanhado de textos sem datas, reunidos depois
da morte do escritor.
O
que se observa, então, nas citadas obras é o tempo espiritual enrodilhado nele mesmo, é a realidade espiritual
do escritor se obrigando a ser visível, ante o olhar profano de leitores pouco
atentos às questões do espírito. O Artista Guimarães Rosa adquiriu a nítida
consciência de suas inquietudes existenciais e espirituais e conseguiu
sublimá-las, revelando-as no espaço ainda aceitável das condições sociais, sob
o patrocínio da Arte.
Consciente
da dificuldade em se fixar no plano espiritual, já que isto acarretaria total
exclusão do mundo vital, transportou sua inquietude para as difíceis páginas de
suas narrativas da última fase. Assim, por exemplo, a narrativa "A simples
e exata estória do burrinho do Comandante"400, primeira narrativa do corpus de Estas
estórias, é uma retomada inconsciente (ou consciente?)
da estória do burrinho pedrês, primeira narrativa do corpus de Sagarana, sob a orientação de uma apreensão literária mais elevada do
pensamento. Os espaços em branco assinalados por números romanos revelam os vazios de uma narrativa singular,
obrigando o leitor a preenchê-los com a abundância dos próprios pensamentos
vitais. Enfim, era um burro diferente
dos burros comuns,
Um mensageiro, personificação do deus do minuto
oportuno, que os gregos prezavam (...) Ainda hoje, quando penso nele, me animo
das aragens do largo. Apareceu-me num dia vivido demais, quase imaginado. (...)
Eu comandava o Amazonas. Sabe o que é
um contratorpedeiro, um destróier? Era — uma lata. Pequenino, bandoleiro e
raso, sem peso o casco, feito de reduzida matéria e em mínima espessura — só
alma —, seu signo tem de ser todo o da debilidade em si e da velocidade
agressiva. O destróier: feito papel.401
Submetida
aos vagos clarões do tempo espiritual, a descrição do Amazonas não o favorece em absoluto, apenas ressalta com a curta
expressão só alma a capacidade do
Artista de se projetar ficcionalmente para fora das expressões corriqueiras. Se
a descrição do contratorpedeiro estivesse restrita aos limites vitais, o
narrador certamente teria preenchido páginas e páginas para mostrar ou não a
grandiosidade e fortaleza da embarcação.
No
que diz respeito ao burrinho do Comandante, está claro que ele foi idealizado
ficcionalmente nas aragens do largo, num
dia vivido demais, quase imaginado. O burrinho
imaginado nasceu da necessidade de aprofundamento espiritual, vertical, e
da ruptura com os valores vitais, notadamente lineares. A perspectiva
verticalizante, projetada do patamar superior dos pensamentos em direção ao
plano inferior vital, engrandece o burrinho e diminui o valor material da
embarcação, ao mesmo tempo em que assinala a sua grandeza espiritual: o
destróier pequenino, feito de reduzida matéria, era só alma.
Graças
à linha perpendicular ao eixo temporal da simples vitalidade, o Artista
Literário do século XX se evade para o tempo imanente, ou por outra, abandona o
tempo do mundo externo, para criar, na forma concreta da Arte Literária (único
plano visível da Literatura-Arte402), a estória de um burrinho diferente,
resgatado dos instantes dinamizados, ou seja, do repouso fervilhante do escritor transmutativo.
Segundo
Bachelard,
Para fazer o tempo imanente andar, são necessários,
assim, ritmos particulares do tempo transitivo. É bem interessante, sob esse
aspecto, o caso (da) doente de Straus que "não sentia o tempo avançar a
não ser quando estava tricotando".40
Sob
a imposição do tempo imanente, mas
necessitando dos ritmos particulares do
tempo transitivo, para o desenrolar da narrativa, o narrador da fase final entretece a narração dos acontecimentos,
misturando conhecimentos históricos, náuticos, experiências filosóficas, mitos
e invenções, enfim, desengrenando
sonhadoramente os tempos superpostos, mas propenso a avançar temporalmente até o final da narrativa.
Eis
aqui alguns trechos esclarecedores:
Sabe o que é um contratorpedeiro, um destróier? (...)
É também a sede das maiores incomodidades. Já para se estar ali dentro; quanto
mais para os trabalhos de bordo. De apertadinho espaço, nem tem convés de
madeira. Por ser uma caixa de ferro é quentíssimo; e frio, à noite. Frio duro
no inverno, se ensopando de umidades: mina água nas chapas, folhas de aço, sem
proteção alguma. No verão, calor feroz, suam até os canhões. (...) Não se janta
de uniforme branco, como nas demais belonaves; em viagem, usa-se só a roupa
mescla em cima do corpo, sem camisa; boné, só a capa e pala. Sopra uma moinha
de carvão, por toda a parte, invade o navio, como numa locomotiva, titica
palpável e impalpável. Sendo que, em marcha, dá um trotar e sacudir-se,
infinito. (...) A popa do destróier principalmente quando a velocidade aumenta,
vibra como uma lâmina de faca... Esse animalzinho agilíssimo, destinado para
serviços perigosos, olhos e garras das esquadras. Assim, é de se ver que sua
função consiste em tirar a segurança da mesma insegurança; seu lema a
"prudência da serpente", sua filosofia. (...) O Amazonas foi praticamente o meu navio. Modéstia adiada, eu o
manejava como se fosse uma lancha, um escaler. De boa construção inglesa, fora
um dos da flotilha de dez, vindos em 1909, em longa travessia do Atlântico, do
Clyde às nossas águas. (...) Sua velocidade, com as duas caldeiras: 27 nós; com
uma só: 20 milhas horárias; no comum, velocidade de cruzeiro: 13 milhas. (...)
Os amarelos sempre bem limpos (...), digo, as curvas de metal, etc. Cor? A de
destróier (...) O Amazonas, saiba que
com ele a qualidade da minha gente dera de se mostrar. (...) Releve-me bordejar
com o assunto, mas entende o que é "formatura de linha"? Veja cada
navio do lado seguinte, par a par em par. E "formatura em coluna" é
uma nau filando atrás de outra, popa com proa.404
Um
simulacro de combate: é um instante que emociona.
(...) viramos, noventa graus, justo juntos, ameaçando
abalrôo — foi num abrir e fechar de ostra... —, a maruja a dar hurras. Ah, a
guinada, é um instante que emociona.405
No
plano exclusivo da ficção, o elemento ar se faz presente, comprovando a sua
contribuição para a incursão do Artista nos planos superiores do pensamento.
Recordo, o mar, no grátis dia de sol, estava de só sua
vez, extra azul, do ferrete, como só no alto; e plano, tranqüilinho um lago. Os
fios de uma brisa razoável afagavam os ouvidos da gente, o ar quase de
montanha. Deadejavam drapes pares de gaivotas, um pássaro rajado de preto e
branco voou muito tempo à nossa proa. (...) Em certas horas de incertos dias,
todo o mundo é romântico. Eu, também. A beleza e disciplina, o que serve para
ensinar a não se temer a morte. Para não temer a vida, não tanto; porque, isto,
é aqui a outra coisa.406
Vê-se
também a intromissão do tempo imanente
no sempre presente João: o joão-de-barro, o João Mongolô, o Seu Joãozinho
Bem-Bem e, agora, o joão-vaga-lume:
No que, no ouvir as canções de carnaval e amor,
cantigas, modinhas de antiga praxe, nas sedes desse estilo a gente entendia
melhor — que eram para pôr em cofre — os raios da lua cheia no mar, ondas e
ondas e reflexos: faiscaria, luminária, artifício de fogos, pirilampos pulando,
o noivado deles, de joão-vaga-lume...407
Sobre
a arte de viver:
Sabe? Hoje, penso que a arte de viver deve ser apenas
tática; toda estratégia, nessa matéria particular, é culposa.408
O
conhecimento dos clássicos; o conhecimento das falíveis leis vitais: "Ah, a gente navega na vida servido por
faróis estrábicos”. O
conhecimento da História; o conhecimento filosófico: "Recordei o pensador:
“Os homens em geral são mais inclinados a
respeitar aquele que se faz temer, do que ao que se faz amar...”;
conhecimentos geográficos; conhecimento das próprias aflições existenciais:
Por quê? Porque tudo o que vem, vem a invisível
relógio, como os alísios e as trombas, como as calmarias. (...) Ah, a gente tem
de mover-se entre homens — os reais fantasmas, e de partilhar das dúvidas e
desordens, que, sem cessar, eles produzem. (...) A dúvida, figuro mal? — vem
feito enorme lagosta subindo uma escadinha de ferro de quebra-peito.409
Conhecimento
espiritual, sob a proteção do elemento ar:
Subi um tempo ao passadiço, para me reconciliar com os
espíritos da brisa, abandonar-me aos meus próprios meios.410
Conhecimento
do instante temporal:
A-tchim! — o que conto. O tempo dá saltos, trai a
todos.411
Conhecimento
do juízo de descoberta:
(...) risquei o fósforo de um pensamento. Só em certas
horas é que a gente tem tino para tirar do que é corriqueiro juízo novíssimo.412
Conhecimento
de quem já alcançou o plano máximo da criação e poderosamente pode resumir imagens literárias grandiosas em
pequeninas frases (O sol feria tudo, com
reflexos de faca); ou então, descrevendo a forma como o burrinho foi salvo
pelos marinheiros:
Nem sei se pensei que fosse possível. Mas o burrinho
era marítimo: optou rumo, escolhendo o nosso lado, perdera o medo aos vultos, e
fez-se, se fez, remanisco, numa só braçada que o esticou até ao Amazonas.413
O
burrinho pedrês da coletânea Sagarana
trasladou-se do cogito(1), ou seja, daquele plano em que o Artista
se extasiava com a descoberta de um sertão pitoresco e sedutor, para os cogitos
superiores da consciência pura;
transformou-se num burrinho diferente,
inventado, pois que era "apenas a imagem de um burro (...) e transcendia,
fresco, ousado, quase uma criança, não obstante o imperfeito da
fotografia"414.
As
criaturas do sertão das fases iniciais já estão distantes temporalmente na fase
final, porque já não pertencem ao juízo
valorizado do escritor; entraram no plano dos juízos de descoberta, singulares, plano este no qual o criador
apenas risca o fósforo de um pensamento para perceber que é só em certas horas
de incertos dias que se tem tino para tirar das coisas corriqueiras um juízo
novíssimo.
No
plano do transcurso das coisas é
impossível descobrir juízos novíssimos.
Os juízos de descoberta surgem depois
do repouso fervilhante, no âmbito do
descontínuo temporal, próximo das inconseqüências
quânticas.
Se queremos que o pensamento de pura estética se
constitua, será necessário transcender, pelas formas, através do apelo às formas,
a dialética temporal. Se mantivéssemos ligação com a vida e com o pensamento
corriqueiros, a atividade de estética pura seria puramente ocasional. Ela não
teria coerência, não teria "duração". Para durar na terceira potência
do cogito, é preciso pois procurar razões para restituir as formas
vislumbradas. Não se poderá chegar até lá sem aprender a formalizar atitudes
psicológicas bastante diversas.415
Procuramos
mostrar aqui, de acordo com a orientação bachelardiana, que o Artista, nato de
uma região sertaneja de Minas Gerais, alcançou na fase final de sua trajetória
ficcional, pensamentos de transcendência formal. O Artista transcendeu seus
limites pelas formas, através do apelo às
formas; transcendeu seus limites ficcionais, utilizando-se da dialética temporal.
Mas,
é preciso que se realce aqui as contribuições dos elementos vitais, que sem
dúvida propiciaram, no âmbito literário, a força revigoradora que estimulou tal
transcendência. O fogo transformador, verticalizante (Grande Sertão: Veredas), foi
o elemento que proporcionou inicialmente esta elevação espiritual. O elemento
ar, elemento tão frágil, segundo
Bachelard, recebeu o impulso do fogo e abrigou os pensamentos do Artista em sua
última fase. O pensamento da pura
estética obteve assim o patrocínio do ar. O pensamento da pura estética necessitou das imagens
aéreas dinâmicas para demonstrar os vigorosos movimentos da imaginação
criadora. Os incidentes do burrinho do Comandante foram produzidos na viagem
aérea do escritor, assim como os incidentes daquele senhor, temporariamente impoluto, da narrativa
"Darandina" e os incidentes de todos os personagens dos contos de Primeiras estórias, estas estórias e Tutaméia.
Os
pensamentos da pura estética se
constituíram, porque o escritor transcendeu-se e transcendeu seus escritos. O
escritor vivenciou uma maneira rara de ascensão, ou seja, fez uma viagem
aéreo/literária ao plano concreto da forma ficcional. É esta viagem insólita que denominamos aqui
como ascensão ao concreto. O escritor transcendeu
pela forma, através do apelo às formas literárias: a forma como as palavras
foram usadas; ele dialetizou aquele espaço neutro que se localiza entre o antes
e o depois, entre o tudo e o nada, entre o real e o irreal. Ele recusou uma
ligação ativa com as imposições da existência e abandonou os pensamentos corriqueiros que nada
revelam. Seus escritos finais são grandiosos e pouco valorizados, porque os
intelectuais que avaliam sua obra estão presos aos valores vitais e só sabem enxergar os, sem dúvida alguma, belíssimos
conceitos de Grande Sertão: Veredas. Seus escritos finais vão durar
na avaliação dos pósteros, porque foram idealizados na terceira potência do cogito. O escritor procurou razões, juízos novíssimos, para restituir à matéria ficcional as formas vislumbradas, naqueles
raros clarões do espírito, para adequá-las ao plano concreto da forma
literária.
Por
esta ótica, como já afirmamos antes, poderíamos revisitar todas as outras
narrativas da fase final do Artista. Ele conseguiu mostrar a seus leitores eleitos416 "a diferença que vem-vai do cabível ao
possível"417.
Em
"Os chapéus transeuntes", por exemplo, recriando a estória do Vovô
Barão, o muito chefe da família dos
Andrades Pereiras Serapiães, que se preparava para falecer, ele mostra o
alto estágio de aprofundamento psicológico/mental de seus últimos anos de vida.
Idealizando a vida ficcional do Vovô Barão, ele pode escavar o fundo de seu
próprio ser sertanejo, ele pode encontrar nessa escavação o primitivo e o
eterno; pode, enfim, dominar sua própria história pessoal, sua própria época, a
história de seus ancestrais mineiros, e alcançar a síntese criadora de imagens,
que proporcionariam, por exemplo, a um escritor comum páginas e páginas de
redundâncias imagísticas que pouco revelam. É importante observar essas
pequenas frases, reveladoras de imagens grandiosas:
Sobre
a família de Vovô Barão:
(...) nós outros, os Dandrades Pereiras Serapiães,
anchos em feliz fortuna e prosápia, como as uvas que num cacho se repimpam.418
Sobre
a narrativa do neto-narrador, comentando a chegada de outros familiares, para a
iminência de morte do Vovô:
Vínhamos, pois, não pro nobis, mas por respeitos temporais. Vão ver. Aquilo, aliás,
preenchia uma lacuna. (...) A família é uma transação de olhos e retratos,
frise-se; nem de leve se dê que, eu, da minha eu zombe. Se é, não será; como
não digo. Supro-me em simpatia e responsável solidário com todos os seus
jeitos; até mesmo, e de mui modo particular — dado certo vultoso acontecimento
do meu coração, de que pronto falarei e já por isso ardo — com tio
Nestòrionestor, herói meu de ingrata causa, postiça, cediça. Se possível,
então, fixe-se, daqui, o sério, de preferência — no querer crer. Que o mais,
normal também, decorre tão-só do espírito-falso da gente, por mais e menos: reside
na mentira essencial dos seres personagens. A gente não vê quando vai à lua.
Quem sabe a letra da música do galo? Oh espantosa vida. Coisa vulgar é a morte.419
Sobre
a figura do Vovô Barão:
(...) solitário intacto e irremissivo, ainda que de si
dando o que falar: como é destino das torres sobressair, e dos arrotos. Supremo
no arrogar-se suma primazia, ferrenho em base e hastes, só aceitava, mesmo a
nossa presença — de nós, os parentes, os descendentes, digo — quando com
solenidade ou cachaça. Aproximar-se dele era a calamidade sem causa. (...)
Seguro, absoluto, de si, esquecido demais do caos original e fechado aos
evidentes exemplos do invisível, não sabia o que, no fundo, temia tanto; de
modo que, por isso, se estuporava todo em integrado e graúdo. A poesia caíra
dele, para sempre, como o coto de seu umbigo dessecado. Era um homem
pronominal. Fazia questão de história e espaço.420
O
discurso anormal, insólito, estranho, seja que denominação queiramos dar às características
discursivas de Guimarães Rosa, nesta sua última fase criadora, é o discurso de
quem já se transportou para os domínios da pura imaginação. A estória do Vovô
Barão e de seu incaricaturável criado
Bugubu, chamado também o Ratapulgo,
é uma estória que produz profundas comoções na alma do leitor. O elemento ar dinamiza as figuras do Vovô e seu
criado, sublima-as, trazendo a lembrança de outros seres idênticos, que
povoaram a própria existência do leitor. Quantos Vovôs e quantos Ratapulgos
cruzaram caminhos vitais e não houve sequer como dar-lhes forma biográfica.
Guimarães Rosa, em sua última fase, violenta
o leitor criativamente, desnudando suas próprias inquietações existenciais, ao
revelar seus personagens nascidos de suas íntimas inquietações.
O
escritor do ar não observa as coisas triviais da existência; observa a
existência suspensa no tempo do
pensamento. Sua imaginação deforma as
imagens ficcionais, para que a ação
imaginante do leitor dê uma formalização ao que foi intuído no decorrer da
leitura. O elemento ar, ligado ao imaginário, abre o psiquismo para a
experiência da novidade que vem dos raros clarões do espírito. Mas, nas
narrativas de Guimarães Rosa, o elemento ar não produz imagens evasivas,
ligadas ao devaneio de quem se deixa levar à deriva. O elemento ar, ao contrário,
adquire uma vivacidade diferente, mostra o dinamismo de uma imaginação
singular, os matizes imperceptíveis
do colorido da vida.
A verdadeira viagem da imaginação é a viagem ao país
do imaginário, no próprio domínio do imaginário. Não entendemos por tal uma
dessas utopias que nos dão de uma só vez um paraíso ou um inferno, uma
Atlântida ou uma Tebaida. É o trajeto que nos interessaria, e o que nos
descrevem é a estrada. Ora, o que queremos examinar (...) é na verdade a
imanência do imaginário no real, é o trajeto contínuo do real ao imaginário.421
O
Vovô Barão e seu criado são criação literária, não representam biograficamente
pessoas que nasceram, viveram e morreram, mas conduzem a realidade da narrativa. A estória do Vovô se submete à
lenta e produtiva deformação da imaginação criadora, porque o criador adquiriu
muitos talentos em sua vida, viajou pelo mundo, conheceu diversos costumes e
tradições. O homem que nasceu em uma região sertaneja contemplou o seu próprio trajeto de vida, ascensional, e pode renovar
seus sonhos, reelaborar as velhas tradições que pautaram a sua educação.
No reino da imaginação, o infinito é a região em que a
imaginação se afirma como imaginação pura, em que ela está livre e só, vencida
e vitoriosa, orgulhosa e trêmula. Então as imagens irrompem e se perdem,
elevam-se e aniquilam-se em sua própria altura. Então se impõe o realismo da
irrealidade. Compreendemos as figuras por sua transfiguração. A palavra é uma
profecia. A imaginação é, assim, um além psicológico.422
A narrativa "Os chapéus transeuntes" projeta um Vovô inteiro, visto de longe, do alto, de um
presente que resgata um passado histórico e distante temporalmente da realidade
do momento. É um Vovô transfigurado o
que é apresentado pelo neto-narrador. Ele fazia questão de história e espaço,
não de copiosidade biográfica, já que ele vivia no tempo das pirâmides, isto é,
de tão egocêntrico, ele se colecionava. O ficcionista sertanejo materializa um
Vovô imaginário, porque ele conseguiu subir os degraus do tempo do pensamento e ascender ao cogito(3)
da consciência pura; conseguiu enfim
sublimar a própria realidade ficcional criada por ele, ou seja, passar o sertão
das matérias sólidas para uma matéria gasosa. A ascensão ao concreto da forma
literária saiu de sua própria realidade íntima e fez parte de um princípio e de
uma ordenação renovadas pelo juízo de
descoberta; ligou-se às leis de sua infância e experimentou as sensações
ímpares que só uma sensibilidade ímpar pode experimentar. O homem do sertão
renovou seu rosto primitivo e suas máscaras existenciais no mundo da ficção, ou
melhor, no mundo repleto de dinamismo positivo do elemento ar. O narrador do
sertão subiu os degraus do tempo do pensamento e cresceu psiquicamente para além das fronteiras vitais e, em sua
ascensão ao concreto da forma literária, vivenciou verdadeiramente as imagens e
palavras de suas últimas narrativas. Não pode experimentar a transcendência,
porque seria impossível abandonar em vida o plano vital da existência
ordinária, mas conseguiu descobrir as
idéias renovadas que saem dos vagos
clarões do espírito. Esse narrador do sertão,
De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro
pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o
lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias...423
Ele conseguiu
sobretudo compreender o espaço vazio situado entre o plano da vida e o plano
espiritual.
Nenhum comentário:
Postar um comentário