quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

III - CONCLUSÃO

III - CONCLUSÃO

O processo de mudança narrativa que gerou, por exemplo, as ficções insólitas das décadas de 60 e 70 teve o seu início no Brasil a partir de 1930 com a chamada Narrativa de Acontecimento, marca do discurso ficcional modernista. De acordo com os postulados semiológicos de Anazildo Vasconcelos da Silva, há três padrões narrativos: Narrativa de Personagem (discurso romântico), Narrativa de Espaço (discurso realista/naturalista) e Narrativa de Acontecimento (discurso modernista). A Narrativa de Acontecimento por sua vez se subdivide em quatro modalidades: Narrativa de Acontecimento Simples, na qual se insere a obra de Guimarães Rosa; Narrativa do Absurdo, por exemplo, as narrativas de Murilo Rubião; Narrativa Fantástica e Narrativa do Real-Mágico, sendo esta última a forma literária preferida do escritor colombiano Gabriel Garcia Marques.

Assimilando conhecimentos semiológicos à filosofia bachelardiana do tempo instantâneo, penso nas narrativas de acontecimento como produtos do escritor modernista, inserido em uma realidade caótica, ou ainda produtos do sonhador-escritor já prestes a recriar o estado de caos de seu repouso ativado, direcionando verticalmente seu olhar e movimentando destramente a mão que escreve.

As horas de repouso fervilhante, aparentemente inativas, devem ser intuídas e posteriormente registradas, se o Artista assim o quiser. Falei páginas atrás dos tempos superpostos, inclusive destaquei os diversos aspectos do tempo, suas diferentes caracterizações, ajustando-os à criação literária de Guimarães Rosa. Estudando as questões da duração, pela ótica de Bachelard, descobri, por exemplo, as inquietações existenciais dos pensadores, inquietações nascidas no plano espiritual e profundamente dialetizadas no plano vital. Percebi também que o pensamento transmutativo revela o espaço amorfo do espírito naquele simples momento esvaziado que liga uma questão a outra questão, um argumento a um outro argumento, uma reflexão a uma outra reflexão, e assim sucessivamente. É o espaço sem limites do espírito que se capta no intervalo de duas ações dialéticas combinadas. Pensando estas questões, redescobre-se as palavras do próprio Guimarães Rosa ao crítico alemão Lorenz, quando se autodenominou um escritor paradoxal399.

Guimarães Rosa, em suas narrativas finais, procurou ascender até o plano espiritual e, com esta atitude, atingiu o espaço sensível de suas mais íntimas contradições, descobrindo por fim a sua condição de Ser falível ante a grandeza do Nada. Mesmo assim, predispôs-se a criar um mundo literário distante dos valores objetivos da vida. Sua inquietude existencial proporcionou-lhe o vislumbre desse espaço fora dos limites vitais e a criação de pequenas narrativas repletas de contribuições metafísicas.

Se o pensamento estiver em conformidade com Bachelard, na lição metafísica de Hegel, será possível perceber que Guimarães Rosa se deu o ser ao se recusar o ser na Literatura e, com isto, obteve a certeza de repouso íntimo restabelecido, já que sua alma o obrigou, na fase final, a recusar os valores objetivos, pelo menos em sua criação literária. Detecto assim um Guimarães Rosa inquieto em sua fase final de criação literária. Por esta razão, observa-se um discurso de difícil compreensão nas narrativas de Primeiras estórias, Estas estórias, Tutaméia e, volto a reafirmar, em algumas narrativas de Ave, Palavra. Na verdade, não posso interagir reflexivamente com todas as narrativas de Ave, Palavra pelo mesmo prisma, já que a coletânea é um apanhado de textos sem datas, reunidos depois da morte do escritor.

O que se observa, então, nas citadas obras é o tempo espiritual enrodilhado nele mesmo, é a realidade espiritual do escritor se obrigando a ser visível, ante o olhar profano de leitores pouco atentos às questões do espírito. O Artista Guimarães Rosa adquiriu a nítida consciência de suas inquietudes existenciais e espirituais e conseguiu sublimá-las, revelando-as no espaço ainda aceitável das condições sociais, sob o patrocínio da Arte.

Consciente da dificuldade em se fixar no plano espiritual, já que isto acarretaria total exclusão do mundo vital, transportou sua inquietude para as difíceis páginas de suas narrativas da última fase. Assim, por exemplo, a narrativa "A simples e exata estória do burrinho do Comandante"400, primeira narrativa do corpus de Estas estórias, é uma retomada inconsciente (ou consciente?) da estória do burrinho pedrês, primeira narrativa do corpus de Sagarana, sob a orientação de uma apreensão literária mais elevada do pensamento. Os espaços em branco assinalados por números romanos revelam os vazios de uma narrativa singular, obrigando o leitor a preenchê-los com a abundância dos próprios pensamentos vitais. Enfim, era um burro diferente dos burros comuns,

Um mensageiro, personificação do deus do minuto oportuno, que os gregos prezavam (...) Ainda hoje, quando penso nele, me animo das aragens do largo. Apareceu-me num dia vivido demais, quase imaginado. (...) Eu comandava o Amazonas. Sabe o que é um contratorpedeiro, um destróier? Era — uma lata. Pequenino, bandoleiro e raso, sem peso o casco, feito de reduzida matéria e em mínima espessura — só alma —, seu signo tem de ser todo o da debilidade em si e da velocidade agressiva. O destróier: feito papel.401

Submetida aos vagos clarões do tempo espiritual, a descrição do Amazonas não o favorece em absoluto, apenas ressalta com a curta expressão só alma a capacidade do Artista de se projetar ficcionalmente para fora das expressões corriqueiras. Se a descrição do contratorpedeiro estivesse restrita aos limites vitais, o narrador certamente teria preenchido páginas e páginas para mostrar ou não a grandiosidade e fortaleza da embarcação.

No que diz respeito ao burrinho do Comandante, está claro que ele foi idealizado ficcionalmente nas aragens do largo, num dia vivido demais, quase imaginado. O burrinho imaginado nasceu da necessidade de aprofundamento espiritual, vertical, e da ruptura com os valores vitais, notadamente lineares. A perspectiva verticalizante, projetada do patamar superior dos pensamentos em direção ao plano inferior vital, engrandece o burrinho e diminui o valor material da embarcação, ao mesmo tempo em que assinala a sua grandeza espiritual: o destróier pequenino, feito de reduzida matéria, era só alma.

Graças à linha perpendicular ao eixo temporal da simples vitalidade, o Artista Literário do século XX se evade para o tempo imanente, ou por outra, abandona o tempo do mundo externo, para criar, na forma concreta da Arte Literária (único plano visível da Literatura-Arte402), a estória de um burrinho diferente, resgatado dos instantes dinamizados, ou seja, do repouso fervilhante do escritor transmutativo.

Segundo Bachelard,

Para fazer o tempo imanente andar, são necessários, assim, ritmos particulares do tempo transitivo. É bem interessante, sob esse aspecto, o caso (da) doente de Straus que "não sentia o tempo avançar a não ser quando estava tricotando".40

Sob a imposição do tempo imanente, mas necessitando dos ritmos particulares do tempo transitivo, para o desenrolar da narrativa, o narrador da fase final entretece a narração dos acontecimentos, misturando conhecimentos históricos, náuticos, experiências filosóficas, mitos e invenções, enfim, desengrenando sonhadoramente os tempos superpostos, mas propenso a avançar temporalmente até o final da narrativa.

Eis aqui alguns trechos esclarecedores:

Sabe o que é um contratorpedeiro, um destróier? (...) É também a sede das maiores incomodidades. Já para se estar ali dentro; quanto mais para os trabalhos de bordo. De apertadinho espaço, nem tem convés de madeira. Por ser uma caixa de ferro é quentíssimo; e frio, à noite. Frio duro no inverno, se ensopando de umidades: mina água nas chapas, folhas de aço, sem proteção alguma. No verão, calor feroz, suam até os canhões. (...) Não se janta de uniforme branco, como nas demais belonaves; em viagem, usa-se só a roupa mescla em cima do corpo, sem camisa; boné, só a capa e pala. Sopra uma moinha de carvão, por toda a parte, invade o navio, como numa locomotiva, titica palpável e impalpável. Sendo que, em marcha, dá um trotar e sacudir-se, infinito. (...) A popa do destróier principalmente quando a velocidade aumenta, vibra como uma lâmina de faca... Esse animalzinho agilíssimo, destinado para serviços perigosos, olhos e garras das esquadras. Assim, é de se ver que sua função consiste em tirar a segurança da mesma insegurança; seu lema a "prudência da serpente", sua filosofia. (...) O Amazonas foi praticamente o meu navio. Modéstia adiada, eu o manejava como se fosse uma lancha, um escaler. De boa construção inglesa, fora um dos da flotilha de dez, vindos em 1909, em longa travessia do Atlântico, do Clyde às nossas águas. (...) Sua velocidade, com as duas caldeiras: 27 nós; com uma só: 20 milhas horárias; no comum, velocidade de cruzeiro: 13 milhas. (...) Os amarelos sempre bem limpos (...), digo, as curvas de metal, etc. Cor? A de destróier (...) O Amazonas, saiba que com ele a qualidade da minha gente dera de se mostrar. (...) Releve-me bordejar com o assunto, mas entende o que é "formatura de linha"? Veja cada navio do lado seguinte, par a par em par. E "formatura em coluna" é uma nau filando atrás de outra, popa com proa.404

Um simulacro de combate: é um instante que emociona.

(...) viramos, noventa graus, justo juntos, ameaçando abalrôo — foi num abrir e fechar de ostra... —, a maruja a dar hurras. Ah, a guinada, é um instante que emociona.405

No plano exclusivo da ficção, o elemento ar se faz presente, comprovando a sua contribuição para a incursão do Artista nos planos superiores do pensamento.

Recordo, o mar, no grátis dia de sol, estava de só sua vez, extra azul, do ferrete, como só no alto; e plano, tranqüilinho um lago. Os fios de uma brisa razoável afagavam os ouvidos da gente, o ar quase de montanha. Deadejavam drapes pares de gaivotas, um pássaro rajado de preto e branco voou muito tempo à nossa proa. (...) Em certas horas de incertos dias, todo o mundo é romântico. Eu, também. A beleza e disciplina, o que serve para ensinar a não se temer a morte. Para não temer a vida, não tanto; porque, isto, é aqui a outra coisa.406

Vê-se também a intromissão do tempo imanente no sempre presente João: o joão-de-barro, o João Mongolô, o Seu Joãozinho Bem-Bem e, agora, o joão-vaga-lume:

No que, no ouvir as canções de carnaval e amor, cantigas, modinhas de antiga praxe, nas sedes desse estilo a gente entendia melhor — que eram para pôr em cofre — os raios da lua cheia no mar, ondas e ondas e reflexos: faiscaria, luminária, artifício de fogos, pirilampos pulando, o noivado deles, de joão-vaga-lume...407

Sobre a arte de viver:

Sabe? Hoje, penso que a arte de viver deve ser apenas tática; toda estratégia, nessa matéria particular, é culposa.408

O conhecimento dos clássicos; o conhecimento das falíveis leis vitais: "Ah, a gente navega na vida servido por faróis estrábicos”. O conhecimento da História; o conhecimento filosófico: "Recordei o pensador: “Os homens em geral são mais inclinados a respeitar aquele que se faz temer, do que ao que se faz amar...”; conhecimentos geográficos; conhecimento das próprias aflições existenciais:

Por quê? Porque tudo o que vem, vem a invisível relógio, como os alísios e as trombas, como as calmarias. (...) Ah, a gente tem de mover-se entre homens — os reais fantasmas, e de partilhar das dúvidas e desordens, que, sem cessar, eles produzem. (...) A dúvida, figuro mal? — vem feito enorme lagosta subindo uma escadinha de ferro de quebra-peito.409

Conhecimento espiritual, sob a proteção do elemento ar:

Subi um tempo ao passadiço, para me reconciliar com os espíritos da brisa, abandonar-me aos meus próprios meios.410

Conhecimento do instante temporal:

A-tchim! — o que conto. O tempo dá saltos, trai a todos.411

Conhecimento do juízo de descoberta:

(...) risquei o fósforo de um pensamento. Só em certas horas é que a gente tem tino para tirar do que é corriqueiro juízo novíssimo.412

Conhecimento de quem já alcançou o plano máximo da criação e poderosamente pode resumir imagens literárias grandiosas em pequeninas frases (O sol feria tudo, com reflexos de faca); ou então, descrevendo a forma como o burrinho foi salvo pelos marinheiros:

Nem sei se pensei que fosse possível. Mas o burrinho era marítimo: optou rumo, escolhendo o nosso lado, perdera o medo aos vultos, e fez-se, se fez, remanisco, numa só braçada que o esticou até ao Amazonas.413

O burrinho pedrês da coletânea Sagarana trasladou-se do cogito(1), ou seja, daquele plano em que o Artista se extasiava com a descoberta de um sertão pitoresco e sedutor, para os cogitos superiores da consciência pura; transformou-se num burrinho diferente, inventado, pois que era "apenas a imagem de um burro (...) e transcendia, fresco, ousado, quase uma criança, não obstante o imperfeito da fotografia"414.

As criaturas do sertão das fases iniciais já estão distantes temporalmente na fase final, porque já não pertencem ao juízo valorizado do escritor; entraram no plano dos juízos de descoberta, singulares, plano este no qual o criador apenas risca o fósforo de um pensamento para perceber que é só em certas horas de incertos dias que se tem tino para tirar das coisas corriqueiras um juízo novíssimo.

No plano do transcurso das coisas é impossível descobrir juízos novíssimos. Os juízos de descoberta surgem depois do repouso fervilhante, no âmbito do descontínuo temporal, próximo das inconseqüências quânticas.

Se queremos que o pensamento de pura estética se constitua, será necessário transcender, pelas formas, através do apelo às formas, a dialética temporal. Se mantivéssemos ligação com a vida e com o pensamento corriqueiros, a atividade de estética pura seria puramente ocasional. Ela não teria coerência, não teria "duração". Para durar na terceira potência do cogito, é preciso pois procurar razões para restituir as formas vislumbradas. Não se poderá chegar até lá sem aprender a formalizar atitudes psicológicas bastante diversas.415

Procuramos mostrar aqui, de acordo com a orientação bachelardiana, que o Artista, nato de uma região sertaneja de Minas Gerais, alcançou na fase final de sua trajetória ficcional, pensamentos de transcendência formal. O Artista transcendeu seus limites pelas formas, através do apelo às formas; transcendeu seus limites ficcionais, utilizando-se da dialética temporal.

Mas, é preciso que se realce aqui as contribuições dos elementos vitais, que sem dúvida propiciaram, no âmbito literário, a força revigoradora que estimulou tal transcendência. O fogo transformador, verticalizante (Grande Sertão: Veredas), foi o elemento que proporcionou inicialmente esta elevação espiritual. O elemento ar, elemento tão frágil, segundo Bachelard, recebeu o impulso do fogo e abrigou os pensamentos do Artista em sua última fase. O pensamento da pura estética obteve assim o patrocínio do ar. O pensamento da pura estética necessitou das imagens aéreas dinâmicas para demonstrar os vigorosos movimentos da imaginação criadora. Os incidentes do burrinho do Comandante foram produzidos na viagem aérea do escritor, assim como os incidentes daquele senhor, temporariamente impoluto, da narrativa "Darandina" e os incidentes de todos os personagens dos contos de Primeiras estórias, estas estórias e Tutaméia.

Os pensamentos da pura estética se constituíram, porque o escritor transcendeu-se e transcendeu seus escritos. O escritor vivenciou uma maneira rara de ascensão, ou seja, fez uma viagem aéreo/literária ao plano concreto da forma ficcional. É esta viagem insólita que denominamos aqui como ascensão ao concreto. O escritor transcendeu pela forma, através do apelo às formas literárias: a forma como as palavras foram usadas; ele dialetizou aquele espaço neutro que se localiza entre o antes e o depois, entre o tudo e o nada, entre o real e o irreal. Ele recusou uma ligação ativa com as imposições da existência e abandonou os pensamentos corriqueiros que nada revelam. Seus escritos finais são grandiosos e pouco valorizados, porque os intelectuais que avaliam sua obra estão presos aos valores vitais e só sabem enxergar os, sem dúvida alguma, belíssimos conceitos de Grande Sertão: Veredas. Seus escritos finais vão durar na avaliação dos pósteros, porque foram idealizados na terceira potência do cogito. O escritor procurou razões, juízos novíssimos, para restituir à matéria ficcional as formas vislumbradas, naqueles raros clarões do espírito, para adequá-las ao plano concreto da forma literária.

Por esta ótica, como já afirmamos antes, poderíamos revisitar todas as outras narrativas da fase final do Artista. Ele conseguiu mostrar a seus leitores eleitos416 "a diferença que vem-vai do cabível ao possível"417.

Em "Os chapéus transeuntes", por exemplo, recriando a estória do Vovô Barão, o muito chefe da família dos Andrades Pereiras Serapiães, que se preparava para falecer, ele mostra o alto estágio de aprofundamento psicológico/mental de seus últimos anos de vida. Idealizando a vida ficcional do Vovô Barão, ele pode escavar o fundo de seu próprio ser sertanejo, ele pode encontrar nessa escavação o primitivo e o eterno; pode, enfim, dominar sua própria história pessoal, sua própria época, a história de seus ancestrais mineiros, e alcançar a síntese criadora de imagens, que proporcionariam, por exemplo, a um escritor comum páginas e páginas de redundâncias imagísticas que pouco revelam. É importante observar essas pequenas frases, reveladoras de imagens grandiosas:

Sobre a família de Vovô Barão:

(...) nós outros, os Dandrades Pereiras Serapiães, anchos em feliz fortuna e prosápia, como as uvas que num cacho se repimpam.418

Sobre a narrativa do neto-narrador, comentando a chegada de outros familiares, para a iminência de morte do Vovô:

Vínhamos, pois, não pro nobis, mas por respeitos temporais. Vão ver. Aquilo, aliás, preenchia uma lacuna. (...) A família é uma transação de olhos e retratos, frise-se; nem de leve se dê que, eu, da minha eu zombe. Se é, não será; como não digo. Supro-me em simpatia e responsável solidário com todos os seus jeitos; até mesmo, e de mui modo particular — dado certo vultoso acontecimento do meu coração, de que pronto falarei e já por isso ardo — com tio Nestòrionestor, herói meu de ingrata causa, postiça, cediça. Se possível, então, fixe-se, daqui, o sério, de preferência — no querer crer. Que o mais, normal também, decorre tão-só do espírito-falso da gente, por mais e menos: reside na mentira essencial dos seres personagens. A gente não vê quando vai à lua. Quem sabe a letra da música do galo? Oh espantosa vida. Coisa vulgar é a morte.419

Sobre a figura do Vovô Barão:

(...) solitário intacto e irremissivo, ainda que de si dando o que falar: como é destino das torres sobressair, e dos arrotos. Supremo no arrogar-se suma primazia, ferrenho em base e hastes, só aceitava, mesmo a nossa presença — de nós, os parentes, os descendentes, digo — quando com solenidade ou cachaça. Aproximar-se dele era a calamidade sem causa. (...) Seguro, absoluto, de si, esquecido demais do caos original e fechado aos evidentes exemplos do invisível, não sabia o que, no fundo, temia tanto; de modo que, por isso, se estuporava todo em integrado e graúdo. A poesia caíra dele, para sempre, como o coto de seu umbigo dessecado. Era um homem pronominal. Fazia questão de história e espaço.420

O discurso anormal, insólito, estranho, seja que denominação queiramos dar às características discursivas de Guimarães Rosa, nesta sua última fase criadora, é o discurso de quem já se transportou para os domínios da pura imaginação. A estória do Vovô Barão e de seu incaricaturável criado Bugubu, chamado também o Ratapulgo, é uma estória que produz profundas comoções na alma do leitor. O elemento ar dinamiza as figuras do Vovô e seu criado, sublima-as, trazendo a lembrança de outros seres idênticos, que povoaram a própria existência do leitor. Quantos Vovôs e quantos Ratapulgos cruzaram caminhos vitais e não houve sequer como dar-lhes forma biográfica. Guimarães Rosa, em sua última fase, violenta o leitor criativamente, desnudando suas próprias inquietações existenciais, ao revelar seus personagens nascidos de suas íntimas inquietações.

O escritor do ar não observa as coisas triviais da existência; observa a existência suspensa no tempo do pensamento. Sua imaginação deforma as imagens ficcionais, para que a ação imaginante do leitor dê uma formalização ao que foi intuído no decorrer da leitura. O elemento ar, ligado ao imaginário, abre o psiquismo para a experiência da novidade que vem dos raros clarões do espírito. Mas, nas narrativas de Guimarães Rosa, o elemento ar não produz imagens evasivas, ligadas ao devaneio de quem se deixa levar à deriva. O elemento ar, ao contrário, adquire uma vivacidade diferente, mostra o dinamismo de uma imaginação singular, os matizes imperceptíveis do colorido da vida.

A verdadeira viagem da imaginação é a viagem ao país do imaginário, no próprio domínio do imaginário. Não entendemos por tal uma dessas utopias que nos dão de uma só vez um paraíso ou um inferno, uma Atlântida ou uma Tebaida. É o trajeto que nos interessaria, e o que nos descrevem é a estrada. Ora, o que queremos examinar (...) é na verdade a imanência do imaginário no real, é o trajeto contínuo do real ao imaginário.421

O Vovô Barão e seu criado são criação literária, não representam biograficamente pessoas que nasceram, viveram e morreram, mas conduzem a realidade da narrativa. A estória do Vovô se submete à lenta e produtiva deformação da imaginação criadora, porque o criador adquiriu muitos talentos em sua vida, viajou pelo mundo, conheceu diversos costumes e tradições. O homem que nasceu em uma região sertaneja contemplou o seu próprio trajeto de vida, ascensional, e pode renovar seus sonhos, reelaborar as velhas tradições que pautaram a sua educação.

No reino da imaginação, o infinito é a região em que a imaginação se afirma como imaginação pura, em que ela está livre e só, vencida e vitoriosa, orgulhosa e trêmula. Então as imagens irrompem e se perdem, elevam-se e aniquilam-se em sua própria altura. Então se impõe o realismo da irrealidade. Compreendemos as figuras por sua transfiguração. A palavra é uma profecia. A imaginação é, assim, um além psicológico.422

A narrativa "Os chapéus transeuntes" projeta um Vovô inteiro, visto de longe, do alto, de um presente que resgata um passado histórico e distante temporalmente da realidade do momento. É um Vovô transfigurado o que é apresentado pelo neto-narrador. Ele fazia questão de história e espaço, não de copiosidade biográfica, já que ele vivia no tempo das pirâmides, isto é, de tão egocêntrico, ele se colecionava. O ficcionista sertanejo materializa um Vovô imaginário, porque ele conseguiu subir os degraus do tempo do pensamento e ascender ao cogito(3) da consciência pura; conseguiu enfim sublimar a própria realidade ficcional criada por ele, ou seja, passar o sertão das matérias sólidas para uma matéria gasosa. A ascensão ao concreto da forma literária saiu de sua própria realidade íntima e fez parte de um princípio e de uma ordenação renovadas pelo juízo de descoberta; ligou-se às leis de sua infância e experimentou as sensações ímpares que só uma sensibilidade ímpar pode experimentar. O homem do sertão renovou seu rosto primitivo e suas máscaras existenciais no mundo da ficção, ou melhor, no mundo repleto de dinamismo positivo do elemento ar. O narrador do sertão subiu os degraus do tempo do pensamento e cresceu psiquicamente para além das fronteiras vitais e, em sua ascensão ao concreto da forma literária, vivenciou verdadeiramente as imagens e palavras de suas últimas narrativas. Não pode experimentar a transcendência, porque seria impossível abandonar em vida o plano vital da existência ordinária, mas conseguiu descobrir as idéias renovadas que saem dos vagos clarões do espírito. Esse narrador do sertão,

De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias...423

            Ele conseguiu sobretudo compreender o espaço vazio situado entre o plano da vida e o plano espiritual.



Nenhum comentário:

Postar um comentário