quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.5 – Resgatando Lembranças

II.5  –  Resgatando Lembranças

Para observar a criação literária de Guimarães Rosa pelo prisma das idéias bachelardianas e tendo, como ponto de apoio, neste capítulo, seu estudo filosófico sobre a água e os sonhos, depreendi, em algumas narrativas roseanas, as duas imaginações assinaladas por Bachelard: a imaginação que dá vida à causa formal e a imaginação que dá vida à causa material93.

Ligado à imaginação formal (aos aspectos visíveis da natureza), ele encontrou seu impulso inicial de apreensão da matéria na novidade da descoberta de um sertão próximo à sua vida, mas ainda não devidamente explorado literariamente. Desta descoberta, surgiram as narrativas de Sagarana, nas quais seus narradores (ou um único narrador?) se divertem "com o pitoresco, com a variedade, com o acontecimento inesperado"94, resgatando um sertão primaveril, sob a orientação das lembranças inesquecíveis.

As estórias apreendidas nos serões interioranos das Gerais e os acontecimentos vividos na infância direcionam o seu olhar, submetido ao impulso da novidade, da descoberta, mas também, inicialmente, procurando revolver a poeira da terra sertaneja, o que possibilitará posteriormente a descoberta do âmago do sertão.

É possível, por estas razões, observar nas narrativas roseanas gradativamente as duas formas (formal e material, sendo que esta última em seus aspectos estáveis, em princípio, e dinâmicos nas fases seguintes), que compõem as forças imaginantes do ficionista, somadas à força da imaginação criadora, o que o impele a alcançar os cogitos superiores da consciência pura descrita por Gaston Bachelard.

É necessário que uma causa sentimental, uma causa do coração se torne uma causa formal para que a obra tenha a variedade do verbo, a vida cambiante da luz. Mas, além das imagens da forma, tantas vezes lembradas pelos psicólogos da imaginação, há (...) imagens da matéria, imagens diretas da matéria. A vista lhes dá nome, mas a mão as conhece. Uma alegria dinâmica as maneja, as modela, as torna mais leve. Essas imagens da matéria, nós as sonhamos substancialmente, intimamente, afastando as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um coração.95

A causa sentimental do Artista, nas primeiras narrativas de Sagarana, é o sertão de sua infância e juventude. As narrativas roseanas convivem, em princípio, com as lembranças e, posteriormente, com as recordações (matéria lírica, razão do coração), sob a forma de prosa repleta de teor poético. Esta causa sentimental, nas narrativas de Sagarana, se liga à imaginação formal, já que elas refletem os aspectos exteriores do sertão.

Em A hora e vez de Augusto Matraga, o agora Criador Literário alcança a imaginação material, inicialmente estável e posteriormente dinâmica, ou seja, descobre as imagens que surgem diretas da matéria, e o sertão se transmuda, emergindo diretamente de suas mãos demiúrgicas. A partir desta fase, há a introjeção profunda "no germe do ser para encontrar a sólida constância e a bela monotonia da matéria", mas é também a partir desta fase que o indivíduo consciente passa a atuar, remodelando seu espaço de origem, recriando-o, afastando "as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir da superfície"96.

As duas forças convivem harmoniosamente em toda a obra roseana, mas é inegável que, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, a imaginação que dá vida à causa material, em seu aspecto dinâmico, se sobressai. É possível desta forma detectar nas posteriores narrativas, incluindo Grande Sertão: Veredas, a exclusão do tom oral das narrativas experientes, reconhecidamente ligadas à imaginação formal, reprodutoras de experiências de vida.

Teoricamente, posso dizer que há três dimensões espaciais compondo uma obra. Há por exemplo as dimensões real e mítica, sintagmáticas, ligadas ao plano da História, ponto de apoio indispensável para a realização da proposta de realidade ficcional. No plano paradigmático (vertical), há a dimensão mimética ou do imaginário-em-aberto, no qual se instalam as metáforas e as imagens maiores intimamente ligadas às recordações, privilégio exclusivo de um mundo não-substancial. Neste plano, estariam todas as imaginações da dimensão sintagmática, mas já livres das pulsões inconscientes, já submetidas a uma nova realidade imagética, renovadora dos arquétipos inconscientes. Submetida aos preceitos da filosofia bachelardiana, ouso afirmar que as duas dimensões lineares (ambas sintagmáticas) abrigariam, teoricamente (repito), as imaginações formal, material e falada, todas englobando imagens substanciais, palpáveis ou impalpáveis.

É válido realçar que qualquer texto (seja o didático: narrativas experientes, tratados de medicina, de filosofia, de religião, ou mesmo o texto-obra) deixa transparecer a dimensão histórica (real e mítica; a mítica sobressaindo-se menos em alguns casos), plano sintagmático, fechado, ideológico.

No texto didático, também conhecido como texto-objeto, de acordo com uma determinada nomenclatura teórica, além das literaturas assinaladas acima, enquadram-se também os textos literários que não alcançam a categoria de texto-arte. A literatura memorialista neste caso seria considerada como texto didático (paraliterário), porque a função do narrador é aconselhar, passar adiante as experiências comunitárias de um determinado núcleo social, incutir nos mais jovens o desejo de glorificar suas raízes valendo-se das experiências de guerra, parábolas moralistas, remanescentes de antigas tradições. Estes textos possuem aparência de literatura, comportam-se como literatura, mas não revelam a autêntica literatura, possuidora, além do plano linear e ideológico, de outras dimensões não-lineares.

Penso nas narrativas experientes, as novelas de procedência oral, como narrativas saídas da imaginação formal, já que estão ligadas ao plano diegético. A imaginação formal, segundo Bachelard, está ligada ao aspecto pitoresco e exterior da realidade, ao acontecimento inesperado, aos fenômenos que estão na natureza à espera de quem os descubra, portanto, teoricamente, ligada ao plano histórico-linear. Este tipo de imaginação expressa unicamente as imagens da forma, as imagens exteriores, ligadas à superfície, traduzindo pensamentos lineares e substanciais.

Afirmo, e tentarei provar posteriormente esta afirmação, que as novelas de cunho oral, remanescentes da Idade Média, memorialistas, moralistas, experientes, pitorescas, se enquadram ao que Bachelard chama de imaginação formal.

Independente de uma postura filosófica totalizante, e considerando também os ensinamentos da Ciência da Literatura, passo a nomear, nesta apreciação crítica, as narrativas diegéticas (e as narrativas de Sagarana, que antecedem A hora e vez de Augusto Matraga, são diegéticas, fechadas, reformuladoras de ideais comunitários, carismáticas e sentimentais) como narrativas pertencentes à imaginação que dá vida à causa formal. Evidentemente, há nelas uma sedução que as torna diferentes, e no entanto esta sedução não é descartada por Bachelard em sua teoria da imaginação formal.

Relendo as narrativas iniciais de Sagarana, encontra-se o impulso primeiro do Artista na novidade da descoberta do sertão, quando este narra submetido às imagens da forma exterior. A estória do burrinho pedrês (primeira narrativa do corpus de Sagarana), por exemplo, possui segmentos lineares e recompõe a dimensão real, marcando o tradicional, o regional, segundo o método de contar estórias.

(...) um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro ou não (se sabe) onde no sertão.97

O pitoresco da novidade, da novidade de redescobrir o sertão por meio da literatura sintagmática, está visível, e é utilizando-se da imaginação, submetida ao aspecto formal da narrativa, que o leitor acompanha as descrições das minúcias exteriores de um lugar do passado histórico do Artista. É por intermédio dele também que o mesmo compactua com a sua convicção de nativo sertanejo, quando ele se propõe a resgatar imagens encantatórias ligadas ao seu inesquecível passado (universo infantil e juvenil), e com isto passa a acompanhar atento as aventuras de um corajoso burrinho velho, procurando salvar-se do temporal. Narrando as peripécias vividas por Sete-de-Ouros, ele impõe ao leitor a obrigação de apreciar o sertão, enquanto espaço geográfico, apresentando, concomitantemente, a sua razão sentimental transformando-se em causa formal98, ao descrever a movimentação dos bois no curral, ao mesmo tempo que passa a sensação de realidade, ou seja, é como se o leitor estivesse vendo realmente toda aquela movimentação.

Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastreação de chifres. E comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças plebéias dos campos gerais, do Urucúia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios, vermelhos, rosílios, barrosos, alaranjados; castanhos tirando a rubros, pitangas com longes pretos, betados, listados, versicolores; turinos, marchetados com polinésias bizarras, tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias concêntricas no pelame — curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces talhadas em granito impuro.

Como correntes de oceano, movem-se cordões constantes, rodando remoinhos: sempre um vai-vem, os focinhos babosos apontando, e as caudas, que não cessam de espanejar com as vassourinhas. Somam-se. Buscam-se. O crioulo barbeludo, anguloso, rumina, estático, sobre os maus aprumos, e gosta de espiar o céu, além, com os olhos de teor morno, salientes. O espúrio gyr balança a bossa, cresce a cabeçorra, vestindo os lados da cara com as orelhas, e berra rouco, chamando a vaca malabar, jogada para o outro extremo do cercado, ou o guzerate seu primo, que acode à mesma nostalgia hereditária de bois sagrados, trazidos dos pascigos hindus do Coromandel ou do Travancor. Mudo chamado leva o garrote moço a impelir toda uma fileira, até conseguir aproximar-se de outro que ele antes nunca viu, mas junto do qual, e somente, poderá sentir-se bem. E quando o caracu-pelixado solta seus mugidos de nariz fechado, começando por um eme e prolongando-se em rangido de porteira velha, respondem-lhe o lamento frouxo do pé-duro e o berro em buzina, bem sustido e claro, do curraleiro barbatão.

De vez em quando, rebenta um tumulto maior. (...) O boieco china se espanta, e trepa na garupa do franqueiro, que foge, tentando mergulhar na massa. Um de cernelha corcovada, boi sanga sapiranga, se irrita com os grampos que lhe arpoam a barriga, e golpeia com a anca, aos recuões. A vaca bruxa contra-esbarra e passa avante o choque, calcando o focinho no toutiço do mocho. Empinam-se os cangotes, retesam-se os fios dos lombos em sela, espremem-se os quartos musculosos, mocotós derrapam na lama, (...), engavetam-se os magotes, se escoram, escouceiam. (...) Agora, se alertam, porque pressentem o corisco. Esperam que a trovoada bata pilão, na grota longe, e então se sobrechegam e se agitam, recomeçando os espiralados deslocamentos.99

O discurso que dá vida à imaginação formal, exterior, é ágil, para simbolizar o movimento dos bois no curral, enquanto que o discurso que dá vida à imaginação interior, mas ainda formal, ou seja, que procura reconstituir a vida do burrinho sem muito aprofundamento, é moroso, para simbolizar a movimentação lenta do animal.

É preciso salientar, desde já, que o Artista passou posteriormente por diversas etapas de vida e de ficção. Houve um momento em que as forças imaginantes que dão vida à causa formal já não lhe bastavam, e ele sentiu o impulso da mão, modelando as imagens surgidas diretamente da matéria. Referindo-se a estas imagens da matéria e ao impulso da mão de quem as intui, num dado momento, Bachelard informa: "Uma alegria dinâmica as maneja, as modela, as torna mais leves"100. Penso neste momento dinamizado como o momento da interiorização que propiciará a autêntica criação literária. Ainda, essas imagens da matéria são sonhadas substancialmente, intimamente, ou seja, não são aparentes, possuindo fundo e conteúdo. Já que são sonhadas substancialmente, conseguem afastar as "formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das superfícies"101, tornando-se verdadeiras e permanentes.

Sem dúvida, há obras em que as duas formas imaginantes atuam juntas. É mesmo impossível separá-las completamente. O devaneio mais móvel, mais metamorfoseante, mais totalmente entregue às formas, guarda ainda assim um lastro, uma densidade, uma lentidão, uma germinação. Em compensação, toda obra poética que mergulha muito profundamente no germe do ser para encontrar a sólida constância e a bela monotonia da matéria, toda obra poética que adquire suas forças na ação vigilante de uma causa substancial deve, mesmo assim, florescer, adornar-se. Deve acolher, para a primeira sedução do leitor as exuberâncias da beleza formal.102

A imaginação formal pertence ao discurso formal (seguindo uma outra nomenclatura oriunda do discurso técnico), mas Bachelard pretende falar da forma, enquanto algo ligado ao mundo dos fenômenos vitais, sejam eles científicos ou literários. É preciso salientar que a literatura também pode ser classificada como pertencente ao mundo dos fenômenos, pois assim como a possibilidade de cura de qualquer doença, por exemplo, está latente na natureza, a espera de um cientista que lhe dê forma, em um tratado sobre o assunto, assim a Literatura-Arte (poesia ou prosa) se encontra a espera de quem lhe dê forma também.

Penso, apoiada exclusivamente na ciência da literatura, que o que Bachelard denomina de imaginação formal (o que poderia ser chamado de texto sintagmático), na literatura não necessita da imaginação material; mas a imaginação material (o que se classifica como texto paradigmático) não se realiza sem a colaboração da imaginação formal. A imaginação formal se apóia em um discurso superficial e sedutor e, por isto mesmo, indispensável, mesmo na literatura paradigmática (literatura-arte), para a sedução do leitor.


Sem dúvida, nas fases seguintes da recriação do sertão, Guimarães Rosa deixou que as duas forças atuassem conjuntamente, mas houve um aprimoramento privilegiando a imaginação material, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga. Reafirmo que este aprimoramento desenvolveu-se submetido à imaginação material dinâmica ou imaginação criadora, valorizando mais os aspectos do sertão ligados a uma atividade material infinita, portanto uma imaginação saída dos devaneios infinitos, possuindo uma riqueza inesgotável.

A primeira fase (as narrativas de Sagarana) foi o momento dos sonhos móveis e metamorfoseantes, submetidos à imaginação formal, enquanto fenômeno ou descoberta do sertão do passado, mas já se observa na narrativa "São Marcos" um princípio de densidade, de germinação, características da imaginação material. A hora e vez de Augusto Matraga, última narrativa de Sagarana, é o ponto alto desse princípio de dinamismo, é o embrião de Grande Sertão: Veredas e das narrativas seguintes. A hora e vez de Augusto Matraga é o momento de transição, em que se observa com nitidez a passagem do discurso memorialista, experiente (discurso ligado à imaginação formal) ao discurso moderno, fenômeno da Era Moderna.

Nas fases seguintes, a partir de Grande Sertão: Veredas, as narrativas passam a apresentar um alto teor poético diluído na forma ficcional, em páginas replenas de essência poética, submissas às forças da ação vigilante da causa substancial (causa material e dinâmica), objetivando revelar os aspectos profundos de um determinado Sertão. Mas as duas forças imaginantes continuaram a atuar, porque, além da predominância da imaginação material dinâmica, aliada a um inegável perfume poético, o Artista continuou a valer-se dos adornos próprios da linguagem sertaneja, para a sedução do leitor.



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