quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.11 - Ascensão ao Concreto

II.11 - Ascensão ao Concreto

II.11.1 - Uma perspectiva substancial infinita

Ao lado desses devaneios de intimidade que multiplicam e magnificam todos os detalhes de uma estrutura, há um outro tipo de devaneios de intimidade material — o último dos quatro tipos que anunciamos — que valoriza a intimidade antes em intensidade substancial do que em figuras prodigiosamente coloridas. Aí começam os devaneios infinitos de uma riqueza infinita. A intimidade descoberta é menos um estojo com muitas jóias do que um poder misterioso e contínuo, que desce, como um processo sem limite, ao infinitamente pequeno da substância.351

Em Grande Sertão: Veredas, sob a magia da perspectiva maravilhada (plano mítico substancial), o Artista descobriu o lado grandioso do sertão, a matéria mítica ali conservada em estado primitivo, e impôs ao narrador-personagem seus próprios devaneios luminosos. Por este aspecto, o sertão se dilatou, e os pequenos detalhes se engrandeceram, porque o sonhador remexeu intimamente a poeira das lembranças, descobrindo as minúcias, desfossilizando, decifrando enigmas, submetendo-o a sua incansável curiosidade.

A partir daí os devaneios do amanhecer impõem uma outra direção às futuras narrativas roseanas da última fase. O sertão já não é o mesmo das narrativas anteriores (Sagarana), agora, ele se dilata e se estende para o infinito. Como diz Bachelard, "os sonhos vão ser aumentadores"352, e, por intermédio deles, o Artista pode criar uma palmeira infinita, uma "infinita palmeira-muralhavaz"353, atingir o ápice de seus loucos sonhos do amanhecer, porque sua mão nesse momento é "um tufo vivo, um tufo de músculos, desejos, projetos"354.

Depois das formas fundamentais, limitadoras e circulares, que o acompanharam até então, o sonhador inicia, a partir de Primeiras estórias, o processo que o levará ao despertar e à desmaterialização do sertão. Esse novo procedimento permiti-lhe a busca de planos retos e ilimitados. Livre dos sonhos de origem, liberto da meia-noite psíquica que acrisola os fechados sonhos profundos, supervisiona seu próprio ato de sonhar, porque se encontra no espaço onírico próximo ao despertar. Há agora forças novas em seu mundo ficcional. O Artista pode modelar conscientemente a matéria que agora o seduz, buscar as dimensões preferidas, criar um sertão particular, diferente do antigo, não mais reproduzindo imagens substanciais.


O espaço onírico do alvorecer foi mudado por uma súbita luz íntima. O ser que cumpriu seu dever de bom sono tem, de repente, um olhar que ama a linha reta e uma mão que fortifica tudo que é reto. É o dia que desponta a partir do próprio ser que desperta. A imaginação da concentração é substituída por uma vontade de irradiação.355

Este novo e ativo olhar intuiu a palmeira infinita, o “infausto'fantástico” da vida, “os portentosos fatos”, que encheram um dia moroso de uma cidadezinha do interior “– de chinfrim, afã e lufa-lufa”356.

Seguindo a imaginação criadora em suas fases anteriores, sua gradativa evidenciação das qualidades, procurando explicar os sonhos pelo sonho, vê-se o texto roseano desta última fase, como produto do espaço onírico do despertar, ligado aos movimentos de transcendência, que saem do cerne do indivíduo. Portanto, o sertão da última fase é um sertão muito íntimo (resgatado dos sonhos de origem), onde se instalam as virtudes, além de ser o invólucro da própria verdade. Este sertão atual sai literariamente de uma consciência, que já não se incomoda com os dogmas e as substâncias usuais, ocupada que está com seu dinamismo interior.

O texto agora não é mais uma apropriação da realidade histórica; não é mais a busca de valores de uso, em um mundo em que esses valores inexistem; não é a conversão em discurso ficcional da vivência do homem do sertão.

O sertão se instala no espaço dos sonhos dinâmicos do amanhecer, espaço intermediário, interiorizado, entre a noite e o dia, reflexo de anteriores experiências diurnas, misturadas às experiências oníricas.

Por isto, o sertão se transforma, e há a possibilidade de um personagem de ficção, como é o caso do senhor provisoriamente impoluto, do conto "Darandina", adquirir vida quase sobre-humana e escalar infinitamente uma palmeira real, lisa, "páramo empírio", "infinita palmeira-muralhavaz"357, plantada no meio de uma simples praça de um povoado do interior.

O Artista continua sonhando o sertão da infância, sendo que, agora, em sua literatura se misturam a reprodução da realidade, característica da imaginação falada, e a duplicação da realidade, característica da pura criação literária. Entra nesse sertão, sob a influência do ar dinâmico, como se retornasse à casa primeira, de acordo com o idealizado anteriormente, reduplicando criativamente seu percurso de vida, nostalgia de uma casa idealizada e procurada nas diversas casas habitadas posteriormente. Este sentido de vida direciona seus sonhos e é o propulsor das etapas existenciais materializadas depois. A palmeira real representa suas mudanças íntimas, a escalada ao terceiro cogito, sua sábia individualidade, todas as suas fases de vida desenvolvidas pelo poder encantatório das palavras, nomeadas pelos ditames da imaginação criadora.

Sob as ordens da "sinceridade noturna" (atentar para o fato de que os sonhos dinâmicos do amanhecer ainda estão restritos ao espaço dos sonhos), com suas "verdades de luz"358, aliada à imaginação dinâmica do ar, os acontecimentos comuns de uma manhã qualquer são deformados e recriados oniricamente. Acompanhando a matéria volante, desprendida do próprio Artista, o dia normal do lugarejo se valoriza, se ilumina num prodigioso instante, apenas perceptível a um olhar semicerrado, já prestes a acordar. Nesse espaço semi-adormecido impera a autonomia da retina, "na qual uma química minúscula desperta mundos"359. São raros instantes de interiorização, nos quais o narrador de sonhos aéreos, consegue dar forma ficcional a seus valores de vida.

Se tivéssemos espaço para isso, após o relaxamento dos olhos descreveríamos o relaxamento das mãos que, também elas, recusam os objetos. E quando nos lembramos de que toda a dinâmica específica do ser humano é digital, será necessário convir que o espaço onírico se solta quando o nó dos dedos se desata.360

O relaxamento dos olhos e o relaxamento das mãos recusam os objetos, recusam o socialmente instituído, recusam os dogmas da claridade do dia, diferente da claridade da luz dos sonhos bem sonhados. A claridade do dia em sua substancialidade, impõe distâncias, mascara as verdades do cotidiano. A claridade da luz dos sonhos bem sonhados ilumina e aproxima as verdades assinaladas, porque se encontra agasalhada na essência das emoções verdadeiras.

Sob o impacto da própria concentração, debaixo do comando do instante do processo de criação literária, instante metafísico, produzido pela abertura para a consciência literária, o Artista, já com os nós dos dedos desatados, recria a algazarra e vozeria do povo, perseguindo aquele senhor, provisoriamente impoluto, porque evidentemente, se há uma perseguição, procuram-se futuras máculas no personagem.

O narrador está liberto das diretivas essenciais do cotidiano e livremente faz seu personagem ascender ao incrível, ou seja, subir uma palmeira de difícil acesso, como se fosse algo natural. Sonhando a subida do personagem até o topo da palmeira, refaz sua escalada de vida, ou ainda, reflete sobre as etapas de sua ascensão aos cogitos superiores da mente. O sujeito perseguido "arriba ao incrível, ascensionalíssimo"361, uma palmeira real até o fim, e fino, de seu topo. O sujeito cresce e alcança novos e desconhecidos valores, passa a florescer e frutificar-se, unindo-se indelevelmente à árvore que o acolheu. O sujeito cresce com e por intermédio da árvore, porque assimilou a metafísica da imaginação, que deforma e permite a formação de novas imagens.

As imagens primárias passam a ser vistas por/de um outro ângulo, do ângulo de quem, agora, se encontra nas alturas, no "páramo empírio", no topo de uma "infinita palmeira"362.

Repensando esta palmeira do conto "Darandina", pode-se dizer que ela sai de múltiplas metáforas abstracionais, e, ao mesmo tempo, se encontra ligada à objetividade da razão, mediante suas raízes fixas na terra. E eis aqui a dualidade da criação roseana, na qual pesam ainda os valores substanciais, cerceadores, que obrigam o personagem a descer, só que agora desnudo, definitivamente outro, totalmente indivíduo.

Enquanto esteve empoleirado na palmeira, o sujeito "insensato", acima da "sensatez" do povo (enquanto "o mundo inferior estalava"363), esteve "em equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que lúcido, relucidado, com a cabeça comportada"364. O homem da palmeira se manteve lúcido graças a seu demiurgo, já prestes a acordar, liberto das experiências comunitárias da existência histórica, com os olhos relaxados e as mãos ativadas, envolvido pelos sonhos ilimitados dos devaneios do ar. Assim, numa rápida duração, num rápido momento suspenso entre o antes e o depois, o sujeito se mescla à árvore do crescimento individual, também florescendo e frutificando, irrealmente na ponta da situação, dependendo única e exclusivamente dele, sujeito/indivíduo.

Era meio-dia em mármore. Em que curiosamente não se tinha fome nem sede, de demais coisas qual que me lembrava. Súbita voz: "— Vi a Quimera!" — bradou o homem, importuno, impolido; irara-se. E quem e que era? Por ora, agora, ninguém, nulo, joão, nada, sacripante qüidam. Desconsiderando a moral elementar, como a conceito relativo: o que provou, por sinais muito claros. Desadorava. Todavia, ao jeito jocoso, fazia-se de castelo-no-ar. Ou era pelo épico epidérmico? Mostrou — o que havia entre a pele e a camisa.365

O personagem (ou o Artista?), do alto da palmeira (ou do cogito(3)?), vê a Quimera. Por ora, agora, (um) ninguém, (um) nulo, (um) joão atreve-se a proclamar que viu a Quimera. E quem e que era, para afirmar tal coisa? No entanto, o sujeito se encontra no início de um processo de libertação, com probabilidades ficcionais de ter visto a Quimera, um produto da imaginação.

O Artista se descobriu um ser insignificante diante da Quimera. A partir de suas experimentações literárias, o que ele alcançou não se sustentava diante de uma realidade maior: ou ele se diluía totalmente na Quimera ou retornava à realidade da qual havia se afastado. Por isto, seu personagem irou-se, ou seja, o Artista irou-se, imprensado entre dois mundos, pois a sua busca de transcendência narrativa não poderia afetar a sua própria necessidade de viver.

Nesse instante de criação, a narrativa e o personagem fogem ao seu controle e ascendem a sua consciência particular; Ele questiona o que ele possuía até então como pessoa. Diante desse momento catártico, fica pressionado a escolher entre seguir (diluição total) ou retornar e recomeçar.

O Artista (humano) alcançou o plano da Quimera (seu personagem vê a Quimera) e seu lado de demiurgo literário questiona a validade do que foi alcançado, assim como questiona a sua própria intuição demiúrgica. Quem é ele, Artista do Sertão, para atingir o plano da Quimera? Quem é ele, Artista sertanejo, para intuir o Vazio Criador vislumbrado no momento em que seu personagem mostrou o que havia entre a pele e a camisa? Quem é ele, Artista do Mundo, para negar a verdadeira dimensão de sua criação?

No entanto, nesta arena de emoções exaltadas, ao mesmo tempo engrandecendo-se e diminuindo-se, o Artista humildemente obriga-se a reconhecer a sua elevada ascensão aos cogitos superiores da criação. Apenas no contexto da narrativa, e dentro do contexto histórico-literário em que se acha inserido, é forçado a escolher entre diluir o personagem, ou seja, jogá-lo no vazio, ou retomar/retornar renovado ao convívio do mundo inferior.

O ato do personagem subindo a palmeira insólita permite esses questionamentos e promove esse novo olhar criativo. Liberto dos grilhões ideológicos, desconsiderando a moral elementar, como a conceito relativo, ele vê a Quimera no plano do infinitamente provável da imaginação singular. O agora indivíduo renasce, servindo-se de seu personagem; agora, tudo se dilata expondo à vista o infinito, graças à insolidez da nova matéria que o impulsiona. O indivíduo renasce utilizando-se da momentânea loucura de seu personagem, que o faz despir-se também dos conceitos relativos. E eis aqui o Artista quase desperto em seu sono de amanhecer, e eis o narrador, alter ego do Artista, submetido ao sonho que antecede ao despertar.

Enquanto o personagem se despe, liberta-se das "experiências telescópicas"366 da realidade ordinária. O narrador (observador atento) testemunha este entrechoque de realidades. A cena do desnudamento irrompe-se, saída de uma dimensão particular, saída do "olhar que ama a linha reta e de uma mão que fortifica tudo o que é reto367.

Nesta narrativa, o narrador se distancia das imagens visuais formalizadoras, orientado pelo devaneio muito particular do Artista, instalado no cogito(3) da pura individualidade.

As suas dinâmicas lembranças da infância nutriram e elevaram ao máximo do crescimento uma palmeira-real, muito comum nos jardins-de-praça das pequenas cidades do interior de Minas. Essa palmeira simboliza o eixo de sonho dinâmico da imaginação literária submetida ao elemento ar.

Todo grande sonhador dinamizado recebe o benefício dessa imagem vertical, dessa imagem verticalizante. A árvore ereta é uma força evidente que conduz uma vida terrestre ao céu azul.368

A palmeira do conto representa a ligação entre a realidade vital e a realidade ficcional. O narrador, dinamizado pela imaginação dinamizada do Artista, observa a aventura aérea daquele senhor provisoriamente impoluto, que sobe a palmeira lisa, como se tivesse asas nos pés. Do alto de seu cogito particular, o Criador do sertão recria literariamente um de seus instantes insolitamente dinamizados.

A palmeira-real é a via condutora do Artista sertanejo da terra e água amalgamadas, ao plano do infinito fluídico, plano do indivíduo solitário, que alcançou na maturidade um estilo de vida diferente de seus iniciais primeiros anos de infância. A palmeira faz reviver suas primeiras alegrias numa cidadezinha do interior, mas é também o símbolo de sua própria escalada aos cogitos superiores. Nessa escalada, a palmeira da infância e juventude cresceu infinitamente, buscou as alturas, enriqueceu um sonho particular. A palmeira, por sua constituição leve (raízes, tronco em fibras e folhas) é o vegetal que caracteriza o Artista sonhador. As outras árvores mais consistentes estão ligadas ao devaneios do Artista-trabalhador-braçal. O devaneio do homo faber exige uma matéria mais pesada, e é lícito lembrar que os orientais colocam a madeira no âmbito dos elementos fundamentais. Para o Artista, a imagem formal da palmeira não tem muita importância; importa-lhe mais o seu aspecto liso e vertical, produtor de imagens dinâmicas, proliferantes, saídas de uma imaginação poderosa.

A impulsão para o infinito, nesta narrativa, ao contrário do que diz Bachelard, sobre "a árvore aérea"369, não é lenta; é ativa e agitada. Em seu ensaio sobre a árvore aérea, o filósofo fala de rígidas árvores européias, e a palmeira-real, apesar de sua solidez e relativa longevidade, ou, talvez por seu despojamento, é uma árvore de aparência flexível.

 (...) pouco a pouco sentiremos em nós mesmos que a árvore, ser estático por excelência, recebe de nossa imaginação uma vida dinâmica maravilhosa. Surda, lenta, invencível impulsão! Conquista de leveza, fabricação de coisas voantes, de folhas aéreas e frementes! Como a imaginação dinâmica adora esse ser sempre ereto, esse ser que não se deita jamais.370

Para o Artista brasileiro, conhecedor dos produtos naturais da terra e da insolidez de sua realidade política, a palmeira é utilizada como a representação de um modelo de processo de criação em nível nacional. Nesse processo de criação, fundamentalmente, predominam a terra e a água amalgamadas, já que, no âmbito econômico, o Brasil se sustenta na agro-pecuária, em oposição a uma tendência a um desenvolvimento de tecnologia de ponta, face à necessidade de enfrentar a concorrência com os países do Primeiro Mundo. Nesse desenvolvimento, reflete em sua obra o seu caminho de ascensão realizado por meio de uma palmeira flexível.

A palmeira da narrativa recebe vida da imaginação aérea e dinâmica de seu Criador, o qual também proporciona ao leitor-analista uma escalada aos planos superiores de sua própria mente. É a palmeira ficcional, que permite o fluxo do desenvolvimento narrativo, fazendo o personagem chegar até à Quimera intuitivamente; é a palmeira ficcional que refaz no mundo o mito do homem voador, com asinhas nos pés; é a palmeira ficcional, dinamizada pelo elemento ar, que produz os portentosos fatos narrados, que encheram explodidamente uma manhã qualquer, de uma cidadezinha pacata do interior, de chinfrim, afã e lufa-lufa.

A imaginação aérea do Artista (visualizando as cenas narradas de cima, do páramo empírio) movimenta dinamicamente os acontecimentos narrativos. Ele alcançou um elemento mais fluido do que a água, e suas narrativas de ora em diante refletirão esta conquista, conquista de leveza, fabricação de coisas voantes, de folhas aéreas e frementes, como diz Bachelard.

Graças a estas conquistas, a narrativa se torna inusitada, insolitíssima, com paletó, cueca, camisa, tudo esvoaçando, revelando a liberdade interior de quem sonha próximo ao amanhecer, encontrando-se num "espaço com direções preferidas, direções desejadas"371. Ou segundo a nossa concepção brasileira, um espaço com direções indefinidas, mas manipuladas intuitivamente na medida das solicitações da criatividade ficcional. O Artista, do seu plano superior, desceu ao infinitamente pequeno da substância sertaneja, brasileira, e de lá retirou as riquezas de um momento prodigioso e barulhento, acontecimento raro em um lugar de calmaria.

Um psicólogo que quiser refletir sobre os dados da imaginação dinâmica não poderá enganar-se a respeito. Sempre saberá reconhecer o calcanhar corretamente dinamizado. Reconhecê-lo-á sob formas inconscientes, deslizadas subreptciamente por um inconsciente sincero, por um inconsciente fiel ao onirismo.372

Seguindo os estudos de Bachelard sobre os elementos, reafirmo que esse momento raro foi intuído sob a proteção do dinamismo aéreo dos sonhos que buscam linhas retas e infinitas. O elemento principal de "Darandina" é o ar, e o Artista, habilidosamente, consegue registrar as imagens de ascensão ligadas ao instante dinamizado. Os pés do personagem que sobe a palmeira possuem miticamente asas nos calcanhares e estão sob a impulsão da realidade onírica. O sonhador/narrador, em conformidade com este onirismo, transforma seu personagem num temporário ser espacial. As asas nos pés lembram o vôo irracional: o voante não pensa, deixa-se levar pelo fluxo dos pensamentos.

Recordando algumas assertivas anteriores, a matéria primordial de Grande Sertão: Veredas é o fogo, iluminando e enriquecendo os elementos terra e água amalgamadas; o sertão, com seus rios míticos e veredas misteriosas. Mas é perceptível em alguns momentos e em menor escala o elemento ar, ainda não dinamizado.

Lembro-me por exemplo, da fala de Riobaldo: o diabo na rua, no meio do redemunho. A palavra redemunho (redemoinho, remoinho) obriga-me a lembrar do elemento em questão; redemoinho ligado ao vento, ao cheiro de terra e enxofre, ao ser imaginado e amedrontador, portanto, alado. O elemento ar, portanto, está pré-anunciado em Grande Sertão: Veredas.

Já em "Darandina", o ar é o elemento principal. O acontecimento desta narrativa é um vendaval de emoções, abalando a pacata cidadezinha. Se o acontecimento se encontra sob as ordens da imaginação aérea, nada mais natural do que o personagem, perseguido, subir facilmente a lisa palmeira-real, instalada quase no meio da praça, como se fosse um ato comum.

Ora, quase no meio da praça, instalava-se uma das palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o homem, vestido correto como estava, nela não esbarrou, mas, sem nem se livrar dos sapatos, atirou-se-lhe abraçado, e grimpava-a, voraz, expedito arriba, ao incrível, ascensionalíssimo. — Uma palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira? — inquiria um filósofo. Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim, e fino. Susteve-se.373

A ação de subir a palmeira compara-se ao vôo onírico de que fala Bachelard. O personagem é aéreo, possui substância aérea, porque se encontra nos domínios da imaginação aérea de seu criador, simbolizando os seus sonhos de altura.

Os sapatos do personagem casual são a asa onírica, as sandálias de Hermes, e repetem o mítico e milenar desejo de ascensão, inserido na história literária do Homem. A imaginação dinâmica do Artista, no instante da criação literária, permitiu a subida ao incrível, e permitiu também todos os posteriores procedimentos do personagem suspenso no páramo empírio, comodamente instalado na morada dos deuses, distanciado de seus perseguidores e muito próximo a um céu de safira. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os Artistas brasileiros, com bases de vida precárias, que conseguem atingir espontaneamente e criativamente os planos superiores da consciência pura.

O Artista, narrando as aventuras do homem ignaro, revela a sua ascensão ao plano mais elevado de sua escalada ao imaginário-em-aberto.

Reafirmo que, agora, ele se encontra no plano do cogito(3) da individualidade consciente, desejoso de se libertar dos dogmas vitais que o acorrentam. Sua imaginação dinâmica tem o poder de elevar o homem da palmeira ao infinito, por meio de um discurso insólito, diferente, difícil de ser alcançado. O discurso diferente produz imagens aéreas, transporta o leitor para o alto da palmeira, fá-lo compactuar com a imaginação móbil do escritor, liberto agora das imagens primeiras do Sertão.

Aqui farei minhas as palavras de Bachelard, quando apresenta os sonhos aéreos do escritor Jean-Paul Richter: "Quem leu e sonhou acima da terra, na forquilha de uma velha nogueira, reencontrará o devaneio de Jean-Paul"374. Assim, refortalecida filosoficamente, posso dizer: quem leu e sonhou acima da terra, na forquilha de uma velha árvore brasileira, seja do campo ou da cidade, reencontrará o devaneio aéreo do Artista brasileiro. A partir daí, compreenderá o desnudamento do personagem, compreenderá a palmeira como um verdadeiro páramo empírio, espécie de morada acessível apenas a poucos privilegiados.


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