Ao lado desses devaneios de intimidade que multiplicam
e magnificam todos os detalhes de uma estrutura, há um outro tipo de devaneios
de intimidade material — o último dos quatro tipos que anunciamos — que
valoriza a intimidade antes em intensidade substancial do que em figuras
prodigiosamente coloridas. Aí começam os devaneios infinitos de uma riqueza
infinita. A intimidade descoberta é menos um estojo com muitas jóias do que um
poder misterioso e contínuo, que desce, como um processo sem limite, ao
infinitamente pequeno da substância.351
Em
Grande
Sertão: Veredas, sob a magia da perspectiva
maravilhada (plano mítico substancial), o Artista descobriu o lado grandioso do
sertão, a matéria mítica ali conservada em estado primitivo, e impôs ao
narrador-personagem seus próprios devaneios luminosos. Por este aspecto, o
sertão se dilatou, e os pequenos detalhes se engrandeceram, porque o sonhador remexeu intimamente a poeira das
lembranças, descobrindo as minúcias, desfossilizando, decifrando enigmas,
submetendo-o a sua incansável curiosidade.
A
partir daí os devaneios do amanhecer
impõem uma outra direção às futuras narrativas roseanas da última fase. O
sertão já não é o mesmo das narrativas anteriores (Sagarana), agora,
ele se dilata e se estende para o infinito. Como diz Bachelard, "os sonhos
vão ser aumentadores"352, e, por intermédio deles, o Artista pode criar uma palmeira infinita,
uma "infinita palmeira-muralhavaz"353, atingir o ápice de seus loucos
sonhos do amanhecer, porque sua mão nesse momento é "um tufo vivo, um tufo
de músculos, desejos, projetos"354.
Depois
das formas fundamentais, limitadoras
e circulares, que o acompanharam até então, o sonhador inicia, a partir de Primeiras estórias, o processo que o levará ao despertar e à desmaterialização do sertão.
Esse novo procedimento permiti-lhe a busca de planos retos e ilimitados. Livre
dos sonhos de origem, liberto da meia-noite
psíquica que acrisola os fechados sonhos profundos, supervisiona seu
próprio ato de sonhar, porque se encontra no espaço onírico próximo ao
despertar. Há agora forças novas em seu mundo ficcional. O Artista pode modelar
conscientemente a matéria que agora o seduz, buscar as dimensões preferidas,
criar um sertão particular, diferente do antigo, não mais reproduzindo imagens
substanciais.
O espaço onírico do alvorecer foi mudado por uma
súbita luz íntima. O ser que cumpriu
seu dever de bom sono tem, de repente, um olhar que ama a linha reta e uma mão
que fortifica tudo que é reto. É o dia que desponta a partir do próprio ser que
desperta. A imaginação da concentração é substituída por uma vontade de
irradiação.355
Este
novo e ativo olhar intuiu a palmeira infinita, o “infausto'fantástico” da vida,
“os portentosos fatos”, que encheram um dia moroso de uma cidadezinha do
interior “– de chinfrim, afã e lufa-lufa”356.
Seguindo
a imaginação criadora em suas fases anteriores, sua gradativa evidenciação das
qualidades, procurando explicar os sonhos pelo sonho, vê-se o texto roseano
desta última fase, como produto do espaço onírico do despertar, ligado aos
movimentos de transcendência, que saem do cerne do indivíduo. Portanto, o
sertão da última fase é um sertão muito íntimo (resgatado dos sonhos de
origem), onde se instalam as virtudes, além de ser o invólucro da própria
verdade. Este sertão atual sai literariamente de uma consciência, que já não se
incomoda com os dogmas e as substâncias usuais, ocupada que está com seu
dinamismo interior.
O
texto agora não é mais uma apropriação da realidade histórica; não é mais a
busca de valores de uso, em um mundo em que esses valores inexistem; não é a
conversão em discurso ficcional da vivência do homem do sertão.
O
sertão se instala no espaço dos sonhos dinâmicos do amanhecer, espaço
intermediário, interiorizado, entre a noite e o dia, reflexo de anteriores
experiências diurnas, misturadas às experiências oníricas.
Por
isto, o sertão se transforma, e há a possibilidade de um personagem de ficção,
como é o caso do senhor provisoriamente
impoluto, do conto "Darandina", adquirir vida quase sobre-humana
e escalar infinitamente uma palmeira
real, lisa, "páramo empírio", "infinita
palmeira-muralhavaz"357, plantada no meio de uma simples praça de um povoado do interior.
O
Artista continua sonhando o sertão da infância, sendo que, agora, em sua
literatura se misturam a reprodução da realidade, característica da imaginação
falada, e a duplicação da realidade, característica da pura criação literária.
Entra nesse sertão, sob a influência do ar
dinâmico, como se retornasse à casa primeira, de acordo com o idealizado
anteriormente, reduplicando criativamente seu percurso de vida, nostalgia de
uma casa idealizada e procurada nas diversas casas habitadas posteriormente.
Este sentido de vida direciona seus sonhos e é o propulsor das etapas
existenciais materializadas depois. A palmeira real representa suas mudanças
íntimas, a escalada ao terceiro cogito, sua sábia individualidade, todas as
suas fases de vida desenvolvidas pelo poder encantatório das palavras, nomeadas
pelos ditames da imaginação criadora.
Sob
as ordens da "sinceridade noturna" (atentar para o fato de que os
sonhos dinâmicos do amanhecer ainda estão restritos ao espaço dos sonhos), com
suas "verdades de luz"358, aliada à imaginação dinâmica do ar, os acontecimentos comuns de uma
manhã qualquer são deformados e recriados oniricamente. Acompanhando a matéria volante, desprendida do próprio
Artista, o dia normal do lugarejo se valoriza, se ilumina num prodigioso
instante, apenas perceptível a um olhar semicerrado, já prestes a acordar.
Nesse espaço semi-adormecido impera a autonomia da retina, "na qual uma
química minúscula desperta mundos"359. São raros instantes de interiorização, nos
quais o narrador de sonhos aéreos, consegue dar forma ficcional a seus valores
de vida.
Se tivéssemos espaço para isso, após o relaxamento dos
olhos descreveríamos o relaxamento das mãos que, também elas, recusam os
objetos. E quando nos lembramos de que toda a dinâmica específica do ser humano
é digital, será necessário convir que
o espaço onírico se solta quando o nó dos dedos se desata.360
O
relaxamento dos olhos e o relaxamento das mãos recusam os objetos, recusam o
socialmente instituído, recusam os dogmas
da claridade do dia, diferente da claridade da luz dos sonhos bem sonhados.
A claridade do dia em sua
substancialidade, impõe distâncias, mascara as verdades do cotidiano. A claridade da luz dos sonhos bem sonhados
ilumina e aproxima as verdades assinaladas, porque se encontra agasalhada na
essência das emoções verdadeiras.
Sob
o impacto da própria concentração, debaixo do comando do instante do processo de criação literária, instante metafísico, produzido pela abertura para a consciência
literária, o Artista, já com os nós dos dedos desatados, recria a algazarra e
vozeria do povo, perseguindo aquele senhor,
provisoriamente impoluto, porque
evidentemente, se há uma perseguição, procuram-se futuras máculas no
personagem.
O
narrador está liberto das diretivas essenciais do cotidiano e livremente faz
seu personagem ascender ao incrível, ou seja, subir uma palmeira de difícil
acesso, como se fosse algo natural. Sonhando a subida do personagem até o topo
da palmeira, refaz sua escalada de vida, ou ainda, reflete sobre as etapas de
sua ascensão aos cogitos superiores da mente. O sujeito perseguido "arriba
ao incrível, ascensionalíssimo"361, uma palmeira real até o fim, e
fino, de seu topo. O sujeito cresce e alcança novos e desconhecidos
valores, passa a florescer e frutificar-se, unindo-se indelevelmente à árvore que o acolheu. O sujeito cresce
com e por intermédio da árvore, porque assimilou a metafísica da imaginação,
que deforma e permite a formação de novas imagens.
As
imagens primárias passam a ser vistas por/de um outro ângulo, do ângulo de
quem, agora, se encontra nas alturas, no "páramo empírio", no topo de
uma "infinita palmeira"362.
Repensando
esta palmeira do conto "Darandina", pode-se dizer que ela sai de
múltiplas metáforas abstracionais, e, ao mesmo tempo, se encontra ligada à
objetividade da razão, mediante suas raízes fixas na terra. E eis aqui a
dualidade da criação roseana, na qual pesam ainda os valores substanciais,
cerceadores, que obrigam o personagem a descer,
só que agora desnudo, definitivamente
outro, totalmente indivíduo.
Enquanto
esteve empoleirado na palmeira, o sujeito "insensato", acima da
"sensatez" do povo (enquanto "o mundo inferior estalava"363), esteve "em
equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que lúcido,
relucidado, com a cabeça comportada"364. O homem da palmeira se manteve lúcido graças a
seu demiurgo, já prestes a acordar, liberto das experiências comunitárias da
existência histórica, com os olhos relaxados e as mãos ativadas, envolvido
pelos sonhos ilimitados dos devaneios do ar. Assim, numa rápida duração, num
rápido momento suspenso entre o antes e o depois, o sujeito se mescla à árvore
do crescimento individual, também florescendo
e frutificando, irrealmente na ponta
da situação, dependendo única e exclusivamente dele, sujeito/indivíduo.
Era meio-dia em mármore. Em que curiosamente não se
tinha fome nem sede, de demais coisas qual que me lembrava. Súbita voz: "—
Vi a Quimera!" — bradou o homem, importuno, impolido; irara-se. E quem e
que era? Por ora, agora, ninguém, nulo, joão, nada, sacripante qüidam.
Desconsiderando a moral elementar, como a conceito relativo: o que provou, por
sinais muito claros. Desadorava. Todavia, ao jeito jocoso, fazia-se de
castelo-no-ar. Ou era pelo épico epidérmico? Mostrou — o que havia entre a pele
e a camisa.365
O
personagem (ou o Artista?), do alto da palmeira (ou do cogito(3)?),
vê a Quimera. Por ora, agora, (um) ninguém, (um) nulo, (um) joão atreve-se a
proclamar que viu a Quimera. E quem e que
era, para afirmar tal coisa? No entanto, o sujeito se encontra no início de
um processo de libertação, com probabilidades ficcionais de ter visto a
Quimera, um produto da imaginação.
O
Artista se descobriu um ser insignificante diante da Quimera. A partir de suas
experimentações literárias, o que ele alcançou não se sustentava diante de uma
realidade maior: ou ele se diluía totalmente na Quimera ou retornava à
realidade da qual havia se afastado. Por isto, seu personagem irou-se, ou seja,
o Artista irou-se, imprensado entre dois mundos, pois a sua busca de
transcendência narrativa não poderia afetar a sua própria necessidade de viver.
Nesse
instante de criação, a narrativa e o personagem fogem ao seu controle e
ascendem a sua consciência particular; Ele questiona o que ele possuía até
então como pessoa. Diante desse momento catártico, fica pressionado a escolher
entre seguir (diluição total) ou retornar e recomeçar.
O
Artista (humano) alcançou o plano da Quimera (seu personagem vê a Quimera) e
seu lado de demiurgo literário questiona a validade do que foi alcançado, assim
como questiona a sua própria intuição demiúrgica. Quem é ele, Artista do
Sertão, para atingir o plano da Quimera? Quem é ele, Artista sertanejo, para
intuir o Vazio Criador vislumbrado no momento em que seu personagem mostrou o que havia entre a pele e a camisa? Quem
é ele, Artista do Mundo, para negar a verdadeira dimensão de sua criação?
No
entanto, nesta arena de emoções exaltadas, ao mesmo tempo engrandecendo-se e
diminuindo-se, o Artista humildemente
obriga-se a reconhecer a sua elevada ascensão aos cogitos superiores da
criação. Apenas no contexto da narrativa, e dentro do contexto
histórico-literário em que se acha inserido, é forçado a escolher entre diluir
o personagem, ou seja, jogá-lo no vazio, ou retomar/retornar renovado ao
convívio do mundo inferior.
O
ato do personagem subindo a palmeira insólita permite esses questionamentos e
promove esse novo olhar criativo. Liberto dos grilhões ideológicos, desconsiderando a moral elementar, como a
conceito relativo, ele vê a Quimera no plano do infinitamente provável da
imaginação singular. O agora indivíduo renasce, servindo-se de seu personagem;
agora, tudo se dilata expondo à vista o infinito, graças à insolidez da nova
matéria que o impulsiona. O indivíduo renasce utilizando-se da momentânea
loucura de seu personagem, que o faz despir-se também dos conceitos relativos. E eis aqui o Artista quase desperto em seu sono de amanhecer, e eis o narrador, alter ego do Artista, submetido ao sonho
que antecede ao despertar.
Enquanto
o personagem se despe, liberta-se das "experiências telescópicas"366 da realidade ordinária. O narrador (observador
atento) testemunha este entrechoque de realidades. A cena do desnudamento
irrompe-se, saída de uma dimensão particular, saída do "olhar que ama a
linha reta e de uma mão que fortifica tudo o que é reto367.
Nesta
narrativa, o narrador se distancia das imagens visuais formalizadoras,
orientado pelo devaneio muito particular do Artista, instalado no cogito(3)
da pura individualidade.
As
suas dinâmicas lembranças da infância nutriram e elevaram ao máximo do
crescimento uma palmeira-real, muito comum nos jardins-de-praça das pequenas
cidades do interior de Minas. Essa palmeira simboliza o eixo de sonho dinâmico da
imaginação literária submetida ao elemento ar.
Todo grande sonhador dinamizado recebe o benefício
dessa imagem vertical, dessa imagem verticalizante. A árvore ereta é
uma força evidente que conduz uma vida terrestre ao céu azul.368
A
palmeira do conto representa a ligação entre a realidade vital e a realidade
ficcional. O narrador, dinamizado pela imaginação dinamizada do Artista,
observa a aventura aérea daquele
senhor provisoriamente impoluto, que
sobe a palmeira lisa, como se tivesse asas
nos pés. Do alto de seu cogito particular, o Criador do sertão recria
literariamente um de seus instantes insolitamente dinamizados.
A
palmeira-real é a via condutora do Artista sertanejo da terra e água
amalgamadas, ao plano do infinito fluídico, plano do indivíduo solitário, que
alcançou na maturidade um estilo de vida diferente de seus iniciais primeiros anos
de infância. A palmeira faz reviver suas primeiras alegrias numa cidadezinha do
interior, mas é também o símbolo de sua própria escalada aos cogitos
superiores. Nessa escalada, a palmeira da infância e juventude cresceu
infinitamente, buscou as alturas, enriqueceu um sonho particular. A palmeira,
por sua constituição leve (raízes, tronco em fibras e folhas) é o vegetal que
caracteriza o Artista sonhador. As outras árvores mais consistentes estão
ligadas ao devaneios do Artista-trabalhador-braçal. O devaneio do homo faber exige uma matéria mais
pesada, e é lícito lembrar que os orientais colocam a madeira no âmbito dos
elementos fundamentais. Para o Artista, a imagem formal da palmeira não tem
muita importância; importa-lhe mais o seu aspecto liso e vertical, produtor de
imagens dinâmicas, proliferantes, saídas de uma imaginação poderosa.
A
impulsão para o infinito, nesta narrativa, ao contrário do que diz Bachelard,
sobre "a árvore aérea"369, não é lenta; é ativa e agitada. Em seu ensaio sobre a árvore aérea, o
filósofo fala de rígidas árvores européias, e a palmeira-real, apesar de sua
solidez e relativa longevidade, ou, talvez por seu despojamento, é uma árvore
de aparência flexível.
(...) pouco a
pouco sentiremos em nós mesmos que a árvore, ser estático por excelência,
recebe de nossa imaginação uma vida dinâmica maravilhosa. Surda, lenta,
invencível impulsão! Conquista de leveza, fabricação de coisas voantes, de
folhas aéreas e frementes! Como a imaginação dinâmica adora esse ser sempre
ereto, esse ser que não se deita jamais.370
Para
o Artista brasileiro, conhecedor dos produtos naturais da terra e da insolidez
de sua realidade política, a palmeira é utilizada como a representação de um
modelo de processo de criação em nível nacional. Nesse processo de criação,
fundamentalmente, predominam a terra e a água amalgamadas, já que, no âmbito
econômico, o Brasil se sustenta na agro-pecuária, em oposição a uma tendência a
um desenvolvimento de tecnologia de ponta, face à necessidade de enfrentar a
concorrência com os países do Primeiro Mundo. Nesse desenvolvimento, reflete em
sua obra o seu caminho de ascensão realizado por meio de uma palmeira flexível.
A
palmeira da narrativa recebe vida da
imaginação aérea e dinâmica de seu Criador, o qual também proporciona ao
leitor-analista uma escalada aos planos superiores de sua própria mente. É a
palmeira ficcional, que permite o fluxo do desenvolvimento narrativo, fazendo o
personagem chegar até à Quimera intuitivamente; é a palmeira ficcional que
refaz no mundo o mito do homem
voador, com asinhas nos pés; é a palmeira ficcional, dinamizada pelo elemento
ar, que produz os portentosos fatos
narrados, que encheram explodidamente uma manhã qualquer, de uma cidadezinha
pacata do interior, de chinfrim, afã e
lufa-lufa.
A
imaginação aérea do Artista (visualizando as cenas narradas de cima, do páramo empírio) movimenta dinamicamente os acontecimentos
narrativos. Ele alcançou um elemento mais fluido do que a água, e suas
narrativas de ora em diante refletirão esta conquista, conquista de leveza, fabricação de coisas voantes, de folhas aéreas e
frementes, como diz Bachelard.
Graças
a estas conquistas, a narrativa se torna inusitada, insolitíssima, com paletó,
cueca, camisa, tudo esvoaçando, revelando a liberdade interior de quem sonha
próximo ao amanhecer, encontrando-se num "espaço com direções preferidas,
direções desejadas"371. Ou segundo a nossa concepção brasileira, um espaço com direções
indefinidas, mas manipuladas intuitivamente na medida das solicitações da
criatividade ficcional. O Artista, do seu plano superior, desceu ao
infinitamente pequeno da substância sertaneja, brasileira, e de lá retirou as
riquezas de um momento prodigioso e barulhento, acontecimento raro em um lugar
de calmaria.
Um psicólogo que quiser refletir sobre os dados da
imaginação dinâmica não poderá enganar-se a respeito. Sempre saberá reconhecer
o calcanhar corretamente dinamizado. Reconhecê-lo-á sob formas inconscientes,
deslizadas subreptciamente por um inconsciente sincero, por um inconsciente
fiel ao onirismo.372
Seguindo
os estudos de Bachelard sobre os elementos, reafirmo que esse momento raro foi intuído sob a proteção
do dinamismo aéreo dos sonhos que buscam linhas retas e infinitas. O elemento
principal de "Darandina" é o ar, e o Artista, habilidosamente,
consegue registrar as imagens de ascensão ligadas ao instante dinamizado. Os
pés do personagem que sobe a palmeira possuem miticamente asas nos calcanhares e estão sob a impulsão da realidade onírica. O sonhador/narrador, em conformidade com este
onirismo, transforma seu personagem num temporário ser espacial. As asas nos
pés lembram o vôo irracional: o voante
não pensa, deixa-se levar pelo fluxo dos pensamentos.
Recordando
algumas assertivas anteriores, a matéria primordial de Grande Sertão: Veredas é o fogo, iluminando e enriquecendo os elementos terra e água
amalgamadas; o sertão, com seus rios míticos e veredas misteriosas. Mas é
perceptível em alguns momentos e em menor escala o elemento ar, ainda não
dinamizado.
Lembro-me
por exemplo, da fala de Riobaldo: o diabo
na rua, no meio do redemunho. A palavra redemunho
(redemoinho, remoinho) obriga-me a lembrar do elemento em questão; redemoinho
ligado ao vento, ao cheiro de terra e enxofre, ao ser imaginado e amedrontador,
portanto, alado. O elemento ar, portanto, está pré-anunciado em Grande Sertão: Veredas.
Já
em "Darandina", o ar é o elemento principal. O acontecimento desta
narrativa é um vendaval de emoções,
abalando a pacata cidadezinha. Se o acontecimento se encontra sob as ordens da imaginação aérea, nada mais natural do
que o personagem, perseguido, subir facilmente a lisa palmeira-real, instalada
quase no meio da praça, como se fosse um ato comum.
Ora, quase no meio da praça, instalava-se uma das
palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o homem, vestido
correto como estava, nela não esbarrou, mas, sem nem se livrar dos sapatos,
atirou-se-lhe abraçado, e grimpava-a, voraz, expedito arriba, ao incrível,
ascensionalíssimo. — Uma palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma
palmeira? — inquiria um filósofo. Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim,
e fino. Susteve-se.373
A
ação de subir a palmeira compara-se ao vôo
onírico de que fala Bachelard. O personagem é aéreo, possui substância
aérea, porque se encontra nos domínios da imaginação aérea de seu criador,
simbolizando os seus sonhos de altura.
Os
sapatos do personagem casual são a asa
onírica, as sandálias de Hermes, e repetem o mítico e milenar desejo de
ascensão, inserido na história literária do Homem. A imaginação dinâmica do
Artista, no instante da criação literária, permitiu a subida ao incrível, e permitiu também todos os
posteriores procedimentos do personagem suspenso no páramo empírio, comodamente instalado na morada dos deuses,
distanciado de seus perseguidores e muito próximo a um céu de safira. Bem-aventurados os pobres de espírito,
porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os Artistas brasileiros,
com bases de vida precárias, que conseguem atingir espontaneamente e
criativamente os planos superiores da consciência pura.
O
Artista, narrando as aventuras do homem
ignaro, revela a sua ascensão ao plano mais elevado de sua escalada ao
imaginário-em-aberto.
Reafirmo
que, agora, ele se encontra no plano do cogito(3) da individualidade
consciente, desejoso de se libertar dos dogmas vitais que o acorrentam. Sua imaginação dinâmica tem o poder de
elevar o homem da palmeira ao infinito, por meio de um discurso insólito,
diferente, difícil de ser alcançado. O discurso diferente produz imagens aéreas,
transporta o leitor para o alto da palmeira, fá-lo compactuar com a imaginação
móbil do escritor, liberto agora das imagens primeiras do Sertão.
Aqui
farei minhas as palavras de Bachelard, quando apresenta os sonhos aéreos do
escritor Jean-Paul Richter: "Quem leu e sonhou acima da terra, na
forquilha de uma velha nogueira, reencontrará o devaneio de Jean-Paul"374. Assim, refortalecida
filosoficamente, posso dizer: quem leu e sonhou acima da terra, na forquilha de
uma velha árvore brasileira, seja do campo ou da cidade, reencontrará o
devaneio aéreo do Artista brasileiro. A partir daí, compreenderá o desnudamento
do personagem, compreenderá a palmeira como um verdadeiro páramo empírio, espécie de morada acessível apenas a poucos
privilegiados.
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