Ah! meu próprio passado basta para me atrapalhar. Não
preciso do passado dos outros. Mas preciso das imagens dos outros para
recolorir as minhas. Preciso das fantasias dos outros para me lembrar que, eu
também, fui um sonhador de vela".202
O
Artista, em sua primeira fase de transição criadora (A hora e vez de Augusto Matraga), busca na matéria terrestre e no fogo as
imagens que formarão o seu particular universo ficcional. Distanciando-se aos
poucos da imaginação reprodutora de bem
ver, procura sonhar novas imagens
sob o domínio das lembranças da infância.
No
início, o real se faz presente com a reprodução do aspecto exterior do chefe político encarnado na figura do
personagem Nhô Augusto, senhor das propriedades denominadas Pindaíbas e
Saco-de-Embira. A vontade de poder203 do Artista examina primeiro os
signos da majestade: o majestoso e dominador personagem submetendo o povo do
arraial do Murici às suas próprias leis e desmandos.
Nesse
início (as primeiras linhas da narrativa), realça a figura de Nhô Augusto,
filho do Coronel Afonsão, e, apresenta o major Consilva, inimigo político da
família Esteves, destacando, com esta atitude, a aparência dos chefes dos diversos núcleos comunitários
(capitães, majores e coronéis, de acordo com o poder de compra dos titulados),
mostrando-se temporariamente seduzido pelas lembranças do passado,
reportando-se ao centro do núcleo social sertanejo, amarrando-se à memória ao invés de se utilizar das recordações.
Esgotando-se
a vontade de poder, duas vezes
explorada (poder e carisma), nada mais lhe resta senão adotar a vontade
de trabalho204, abandonado o plano das aparências e assumindo a criação do
personagem, agora, totalmente reelaborado pela imaginação criadora. O
personagem, depois de sua fase carismática, adquire um aspecto universal,
revigorado pelo poder da Criação Literária.
O
personagem que abandona os pretos no sertão do norte de Minas, procurando
retornar ao arraial do Murici, não é o mesmo do início. A imaginação criadora
transformou-o, recriou-o a partir das imagens materiais que o sustentaram até
ali.
Para a imaginação dinâmica há, com toda a evidência,
além da coisa, a supercoisa, no mesmo
estilo em que o ego é dominado por um superego. Esse pedaço de madeira que
deixa minha mão indiferente não passa de uma coisa, está mesmo perto de não ser
senão o conceito de uma coisa. Mas se minha faca se diverte em entalhá-la, essa
mesma madeira é imediatamente mais do que ela mesma, é uma supercoisa, assume
nela todas as forças da provocação do mundo resistente, recebe naturalmente todas
as metáforas da agressão.205
Na
verdade, a começar por Nhô Augusto, todos os personagens roseanos se
transformam. Até então, o Artista esquadrinhara
a substância sertaneja, sob as diretrizes da imaginação formal aliada à
imaginação material, sensível às formas e às cores, e só depois da reelaboração
do personagem procurou atingir o fundo de sua matéria ficcional. A imaginação
formal e a imaginação material, detectadas nas narrativas de Sagarana, abriram as portas
secretas que ultrapassam a substância, permitindo a criação de um outro tipo de
realidade, administrada unicamente pelo imaginário, energeticamente ligada ao
plano das possibilidades existenciais da imaginação dinâmica.
O
Artista renovou a narrativa e renovou-se. O sertão da infância transforma-se no
sertão roseano, manipulado pela força criadora das metáforas bem elaboradas. A realidade sertaneja ficou para trás, nas
narrativas que antecedem A hora e vez de Augusto Matraga. Agora
o sertão se universaliza, e mesmo assim não será demais admirar as narrativas
anteriores, repletas de um poder encantatório, próprio da imaginação formal, já
que são o ponto inicial para a imaginação dinâmica das fases posteriores.
Abandonando
a vontade de poder em suas instâncias
múltiplas (reprodução do poder social, afetivo, carismático), o Artista
remodela sua matéria ficcional valendo-se do ato de trabalhar. As imagens saem
do plano da criação, revigoradas pela vontade
de trabalho. Amparado por esta vontade e pela imaginação dinâmica, o espaço
apreendido adquire novos contornos, transformando-se num universo fragmentado,
subjetivo, singular.
Neste
plano intermediário discursivo, no qual se observam características poéticas, o
narrador de Rosa se afasta da diegésis, para enredar-se em seus próprios
devaneios e circunlóquios. Revigorado pela vontade de trabalho, o narrador se
afasta da matéria enfocada, observando o sertão guiando-se pelo ponto de vista
mágico do Criador. Nhô Augusto, a partir desta decisão, é apenas um pretexto
para a recuperação das recordações, e para a realização de um novo universo,
modificado pelo crivo de sentimentos interiorizados.
Este
novo universo, produto da imaginação dinâmica, foi criado a partir do sertão
das recordações infantis. Para que isto acontecesse, valeu-se de uma matéria
diferente, contrária às que habitualmente faziam parte de sua criação. Neste
estágio intermediário (e isto se observa unicamente na narrativa A hora
e vez de Augusto Matraga),
lida estranhamente com o elemento fogo, procurando atingir o plano da profunda
interiorização.
Pelo fogo, o mundo resistente é de algum modo vencido
pelo interior.206
Até
então, ele estava submetido a uma causa sentimental, ligada à imaginação
formal, que procurava resgatar um sertão pitoresco e primaveril, impulsionada
pela novidade da descoberta de um talento especial. Orientado pelas lembranças,
procurou ser objetivo, extasiando-se em descrever as minúcias exteriores do
sertão.
Em
"O Burrinho Pedrês", travestido de contador de estórias, realça a
inteligência do decrépito Sete-de-Ouros; a grandeza da Fazenda da Tampa,
"onde tudo era enorme e despropositado, três mil alqueires de terra, toda
em pastos"; o poderio do major Saulo, "corpulento, quase um obeso, de
olhos verdes, misterioso, que só com um olhar mandava um boi bravo se ir de castigo"207.
Sustentado
pelas imagens da forma (perspectiva anulada) aliadas a uma causa sentimental, e
utilizando-se de cinqüenta e nove páginas, conta as peripécias de um burrinho
num dia de muita chuva, "nos meados do mês de janeiro, no Vale do Rio das Velhas,
no centro de Minas Gerais"208.
Na
narrativa seguinte, realça os traços biográficos de Lalino Salãthiel, o marido pródigo de Maria Rita,
trabalhador braçal na construção da estrada-de-rodagem Belo Horizonte-São
Paulo. Seu Eulálio, ou Laio, ou Lalino, ou ladino,
é um mulatinho sabido, que não
percebe (ou finge não perceber) que o colega de trabalho, o Ramiro espanhol,
está de olho em sua mulher.
Além
de salientar os traços fisionômicos e preguiçosos do mulatinho descarado, suas aventuras e tropeços, seu retorno ao
arraial de origem, refaz a imagem do chefe político do lugar, destacando o
poder do personagem Major Anacleto, "homem de princípios austeros,
intolerante e difícil de se deixar engambelar"209.
O
fecho da narrativa se realiza sob as orientações discursivas do humor e da
matéria mítica. O Major Anacleto, uma das várias encarnações do poder mítico/político no sertão, se encarrega da
reconciliação entre Lalino e Maria Rita.
No alto, com broto de brilhos e asterismos tremidos, o
jogo de destinos esteve completo. Então, o Major voltou a aparecer na varanda,
seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com
a direção-escondida-de-todas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer. E gritou:
— Olha, Estevam: se a espanholada miar, mete a lenha!210
O
poder mítico/político estrutura todas as narrativas de Sagarana até o momento da queda, da
destruição do Olimpo, registrada em A hora e vez de Augusto
Matraga. A imaginação reprodutora de bem
ver, ligada à vontade de poder,
cede espaço à criação de imagens materiais, repletas de força e vontade de trabalho. O talento do
Artista cresce, afastando-o do ato simples de reproduzir o sertão.
A vontade de trabalho, em A hora e vez de
Augusto Matraga, transforma o sertão social do
passado num ponto de observação submetido à
interrogação da imaginação sem limites e à força de uma mão que direciona o
ato de escrever. A partir daí, e embasado pelas narrativas iniciais, o
verdadeiro sertão roseano começa a adquirir sua forma singular. O Artista se
desvencilha da imaginação amarrada
das velhas fórmulas narrativas e apodera-se de sua própria imaginação penetrante de deus-que-garante-tudo.
A
matéria que dá vida a esse novo universo é o fogo. Já nas primeiras linhas,
este elemento faz a sua entrada triunfante: as candeias e lanternas de azeite
iluminam a noite do leilão em honra de Nossa Senhora das Dores, padroeira do
arraial do Murici; posteriormente, Nhô Augusto é marcado com ferro em brasa
(marca do gado do Major Consilva), e recuperado pela chama da fé (velas bentas e candeias de azeite) proveniente da
preta que o salvou.
O
Artista se recusa, de ora em diante, a reproduzir a figura do Todo Poderoso
Senhor do Sertão, mas ainda se submete ao desejo de reproduzir um outro tipo de
poder: o carismático. Mesmo assim, já há uma mudança, permitindo uma
reavaliação do que foi imaginado antes.
Neste
estágio de criação, ele se encontra envolvido por conflitos místicos e
existenciais assim como seu personagem. Observa-se sua preocupação com Deus:
tanto a consciência de Sua existência como a certeza de que Ele se encontra
distante e inatingível. Seu personagem Augusto Matraga indiretamente revela
esta certeza: "Ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus não
atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi"211, palavras da preta,
avaliando o sofrimento físico e espiritual de Nhô Augusto.
O
personagem se restabelece dos ferimentos físicos e morais sob os cuidados do
casal de pretos. Na hora do sofrimento e prenúncio de morte, e nos dias
seguintes, a preta acendeu um coto de vela benta e a candeia de azeite em honra
de Nossa Senhora do Rosário em intenção do restabelecimento do doente.
Essa
luzinha fazia-o lembrar-se da infância, "era o pavio, a tremer, com
brilhos bonitos no poço do azeite, contando histórias da infância, histórias
mal lembradas, mas todas de bom e bonito final"212. Por intermédio do fogo o
personagem fora punido; pelo fogo, será remodelado.
A
mão do Artista exigiu uma matéria subjetiva (o fogo) para moldar o novo sertão, que aos poucos se faz
visível. Contemplativo, ele recorda as lamparinas de querosene ou azeite que
iluminaram as noites de sua infância. As chamas
do passado acendem a sua imaginação, forçam-no a adotar um novo método
discursivo.
Depois
do iluminado leilão, depois da marca
do ferro-em-brasa, depois da queda
social e pessoal, só resta ao personagem recuperar-se, contemplando
pensativamente o brilho da chama benta.
O
fogo permite a revalorização do personagem, sua total transformação no universo
narrativo. O fogo promove a separação entre mal
e bem, entre mau e bom. O antigo Nhô
Augusto, marido de Dionóra, que matava sem remorsos, transforma-se num
personagem carismático, virtuoso, em busca do reino do Céu.
Nunca é demais observar que o fogo representa mais um ser social do que um ser natural. Para se ver o fundamento
desta observação desnecessária se torna desfiar considerações acerca do papel
do fogo nas sociedades primitivas, nem insistir nas dificuldades técnicas da
sua manutenção; basta que façamos psicologia positiva, examinando a estrutura e
a educação de um espírito civilizado. Na verdade, o respeito pelo fogo é um
respeito ensinado; não é um respeito
natural. O reflexo que nos faz retirar o dedo da chama de uma vela não
desempenha nenhum papel consciente no nosso conhecimento. (...) Na realidade, o
que surge primeiro são as proibições sociais. A experiência natural só vem
depois, para nos fornecer uma prova material inesperada, portanto demasiado
obscura para dar lugar a um conhecimento objetivo. A queimadura, ou seja, a
inibição natural, ao confirmar as proibições sociais, nada mais faz do que
reforçar aos olhos da criança o valor da inteligência paterna. Há, portanto, na
origem do conhecimento infantil do fogo uma interferência do natural e do social
em que este último domina sempre.213
O
respeito pelo fogo é um respeito ensinado, diz Bachelard. "O pavio, a
tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando histórias da
infância", revela os ensinamentos religiosos da avó beata, que
"queria o menino p'ra padre..."214. As proibições
religiosas da infância, esquecidas pelo adulto sanguinário, ressurgem a partir
do sofrimento promovido pela marca do ferro-em-brasa e da observação da chama
da vela benta. A queimadura do ferro ardente reforça as proibições religiosas,
os castigos, reacendendo os antigos ensinamentos da avó.
O
Artista, submetido temporariamente ao devaneio
do fogo, se encontra numa zona intermediária no seu processo de criação
literária. O narrador experiente das primeiras narrativas (apenas observador do
sertão) começa a ceder seu lugar ao narrador moderno (alter ego do pensador do
sertão), desorientado e questionador,
como o quer Benjamim215, autêntico reflexo da desestruturação do mundo atual. O fogo, como
elemento de punição do personagem, explicita as transformações assinaladas.
Estas transformações representam o início dos novos acontecimentos, ao longo da
narrativa, mas constituem também a mudança no plano da criação artística.
O
fogo, como elemento de interseção, na criação literária roseana, se destaca
apenas nesta narrativa. Surge várias vezes em Grande Sertão: Veredas, iluminando o cenário, mas os elementos acasalados desta narrativa são
a terra e água, amalgamadas dinamicamente, promovendo profundas reflexões no
personagem-narrador.
Em
A hora e
vez de Augusto Matraga, o Artista ao invés de
sonhar o sertão da infância, devaneou diante das recordações das chamas, que o
ensinaram a expandir-se imaginativamente. Ao invés de reproduzir o sertão, as experiências comunitárias do sertão,
interiorizou-se, para, conscientemente, recuperar sagradas recordações.
O fogo sugere o desejo de mudança, de forçar o correr
do tempo, de chegar imediatamente ao termo da vida, à outra vida.216
O
cristianismo fez do fogo o seu símbolo de punição e redenção. Como elemento de
punição, acompanha a trajetória de vida do personagem até o momento de sua queda. As candeias iluminam o cenário
mítico do início; pelo do fogo, Nhô Augusto foi punido; na hora do sofrimento e
prenúncio de morte, a preta coloca um
coto de vela benta em suas mãos; durante seu restabelecimento, acende a
candeia em honra de Nossa Senhora do Rosário como forma de agradecimento.
O fogo sugere o desejo de
mudança do Artista: a derrota de Nhô Augusto, a partir
da queimadura com ferro-em-brasa, simboliza o desaparecimento do poderio dos coronéis sertanejos; as etapas de vida
do personagem representam as transformações do sertão, as transformações do
Artista, do Narrador e do Narrado, o abandono das planas e exteriores grandezas
míticas. Nhô Augusto representará para sempre, no universo literário de
Guimarães Rosa, o desejo humano de elevação espiritual. A frase que estrutura o
fio narrativo das seqüências posteriores (Vou
para o Céu nem que seja a porrete) reafirma a sugestão do fogo de mudar, de
forçar o correr do tempo em direção à eternidade. Por estas razões, o devaneio
do Artista, diante das recordações do fogo da infância, é realmente dramático
no final. Sob o predomínio do fogo, ele amplificou,
como diz Bachelard217, o destino de seu personagem, salvando-o de ser uma
cópia dos medíocres coroneizinhos do
sertão mineiro; forçou-o a chegar ao
termo da vida (desaparecimento dos coronéis sertanejos), mas permitiu-lhe
uma morte gloriosa, semelhante e ao mesmo tempo diferente das narrativas de
Personagem, modelo da estética romântica do século XIX.
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