quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.10.3 Mudanças no discurso narrativo

II.10.3 Mudanças no discurso narrativo

Ah! meu próprio passado basta para me atrapalhar. Não preciso do passado dos outros. Mas preciso das imagens dos outros para recolorir as minhas. Preciso das fantasias dos outros para me lembrar que, eu também, fui um sonhador de vela".202

O Artista, em sua primeira fase de transição criadora (A hora e vez de Augusto Matraga), busca na matéria terrestre e no fogo as imagens que formarão o seu particular universo ficcional. Distanciando-se aos poucos da imaginação reprodutora de bem ver, procura sonhar novas imagens sob o domínio das lembranças da infância.

No início, o real se faz presente com a reprodução do aspecto exterior do chefe político encarnado na figura do personagem Nhô Augusto, senhor das propriedades denominadas Pindaíbas e Saco-de-Embira. A vontade de poder203 do Artista examina primeiro os signos da majestade: o majestoso e dominador personagem submetendo o povo do arraial do Murici às suas próprias leis e desmandos.

Nesse início (as primeiras linhas da narrativa), realça a figura de Nhô Augusto, filho do Coronel Afonsão, e, apresenta o major Consilva, inimigo político da família Esteves, destacando, com esta atitude, a aparência dos chefes dos diversos núcleos comunitários (capitães, majores e coronéis, de acordo com o poder de compra dos titulados), mostrando-se temporariamente seduzido pelas lembranças do passado, reportando-se ao centro do núcleo social sertanejo, amarrando-se à memória ao invés de se utilizar das recordações.

Esgotando-se a vontade de poder, duas vezes explorada (poder e carisma), nada mais lhe resta senão adotar a vontade de trabalho204, abandonado o plano das aparências e assumindo a criação do personagem, agora, totalmente reelaborado pela imaginação criadora. O personagem, depois de sua fase carismática, adquire um aspecto universal, revigorado pelo poder da Criação Literária.

O personagem que abandona os pretos no sertão do norte de Minas, procurando retornar ao arraial do Murici, não é o mesmo do início. A imaginação criadora transformou-o, recriou-o a partir das imagens materiais que o sustentaram até ali.

Para a imaginação dinâmica há, com toda a evidência, além da coisa, a supercoisa, no mesmo estilo em que o ego é dominado por um superego. Esse pedaço de madeira que deixa minha mão indiferente não passa de uma coisa, está mesmo perto de não ser senão o conceito de uma coisa. Mas se minha faca se diverte em entalhá-la, essa mesma madeira é imediatamente mais do que ela mesma, é uma supercoisa, assume nela todas as forças da provocação do mundo resistente, recebe naturalmente todas as metáforas da agressão.205

Na verdade, a começar por Nhô Augusto, todos os personagens roseanos se transformam. Até então, o Artista esquadrinhara a substância sertaneja, sob as diretrizes da imaginação formal aliada à imaginação material, sensível às formas e às cores, e só depois da reelaboração do personagem procurou atingir o fundo de sua matéria ficcional. A imaginação formal e a imaginação material, detectadas nas narrativas de Sagarana, abriram as portas secretas que ultrapassam a substância, permitindo a criação de um outro tipo de realidade, administrada unicamente pelo imaginário, energeticamente ligada ao plano das possibilidades existenciais da imaginação dinâmica.

O Artista renovou a narrativa e renovou-se. O sertão da infância transforma-se no sertão roseano, manipulado pela força criadora das metáforas bem elaboradas. A realidade sertaneja ficou para trás, nas narrativas que antecedem A hora e vez de Augusto Matraga. Agora o sertão se universaliza, e mesmo assim não será demais admirar as narrativas anteriores, repletas de um poder encantatório, próprio da imaginação formal, já que são o ponto inicial para a imaginação dinâmica das fases posteriores.

Abandonando a vontade de poder em suas instâncias múltiplas (reprodução do poder social, afetivo, carismático), o Artista remodela sua matéria ficcional valendo-se do ato de trabalhar. As imagens saem do plano da criação, revigoradas pela vontade de trabalho. Amparado por esta vontade e pela imaginação dinâmica, o espaço apreendido adquire novos contornos, transformando-se num universo fragmentado, subjetivo, singular.

Neste plano intermediário discursivo, no qual se observam características poéticas, o narrador de Rosa se afasta da diegésis, para enredar-se em seus próprios devaneios e circunlóquios. Revigorado pela vontade de trabalho, o narrador se afasta da matéria enfocada, observando o sertão guiando-se pelo ponto de vista mágico do Criador. Nhô Augusto, a partir desta decisão, é apenas um pretexto para a recuperação das recordações, e para a realização de um novo universo, modificado pelo crivo de sentimentos interiorizados.

Este novo universo, produto da imaginação dinâmica, foi criado a partir do sertão das recordações infantis. Para que isto acontecesse, valeu-se de uma matéria diferente, contrária às que habitualmente faziam parte de sua criação. Neste estágio intermediário (e isto se observa unicamente na narrativa A hora e vez de Augusto Matraga), lida estranhamente com o elemento fogo, procurando atingir o plano da profunda interiorização.

Pelo fogo, o mundo resistente é de algum modo vencido pelo interior.206

Até então, ele estava submetido a uma causa sentimental, ligada à imaginação formal, que procurava resgatar um sertão pitoresco e primaveril, impulsionada pela novidade da descoberta de um talento especial. Orientado pelas lembranças, procurou ser objetivo, extasiando-se em descrever as minúcias exteriores do sertão.

Em "O Burrinho Pedrês", travestido de contador de estórias, realça a inteligência do decrépito Sete-de-Ouros; a grandeza da Fazenda da Tampa, "onde tudo era enorme e despropositado, três mil alqueires de terra, toda em pastos"; o poderio do major Saulo, "corpulento, quase um obeso, de olhos verdes, misterioso, que só com um olhar mandava um boi bravo se ir de castigo"207.

Sustentado pelas imagens da forma (perspectiva anulada) aliadas a uma causa sentimental, e utilizando-se de cinqüenta e nove páginas, conta as peripécias de um burrinho num dia de muita chuva, "nos meados do mês de janeiro, no Vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais"208.

Na narrativa seguinte, realça os traços biográficos de Lalino Salãthiel, o marido pródigo de Maria Rita, trabalhador braçal na construção da estrada-de-rodagem Belo Horizonte-São Paulo. Seu Eulálio, ou Laio, ou Lalino, ou ladino, é um mulatinho sabido, que não percebe (ou finge não perceber) que o colega de trabalho, o Ramiro espanhol, está de olho em sua mulher.

Além de salientar os traços fisionômicos e preguiçosos do mulatinho descarado, suas aventuras e tropeços, seu retorno ao arraial de origem, refaz a imagem do chefe político do lugar, destacando o poder do personagem Major Anacleto, "homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar"209.

O fecho da narrativa se realiza sob as orientações discursivas do humor e da matéria mítica. O Major Anacleto, uma das várias encarnações do poder mítico/político no sertão, se encarrega da reconciliação entre Lalino e Maria Rita.

No alto, com broto de brilhos e asterismos tremidos, o jogo de destinos esteve completo. Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direção-escondida-de-todas-as-coisas-que-devem-depressa-acontecer. E gritou: — Olha, Estevam: se a espanholada miar, mete a lenha!210

O poder mítico/político estrutura todas as narrativas de Sagarana até o momento da queda, da destruição do Olimpo, registrada em A hora e vez de Augusto Matraga. A imaginação reprodutora de bem ver, ligada à vontade de poder, cede espaço à criação de imagens materiais, repletas de força e vontade de trabalho. O talento do Artista cresce, afastando-o do ato simples de reproduzir o sertão.
A vontade de trabalho, em A hora e vez de Augusto Matraga, transforma o sertão social do passado num ponto de observação submetido à interrogação da imaginação sem limites e à força de uma mão que direciona o ato de escrever. A partir daí, e embasado pelas narrativas iniciais, o verdadeiro sertão roseano começa a adquirir sua forma singular. O Artista se desvencilha da imaginação amarrada das velhas fórmulas narrativas e apodera-se de sua própria imaginação penetrante de deus-que-garante-tudo.

A matéria que dá vida a esse novo universo é o fogo. Já nas primeiras linhas, este elemento faz a sua entrada triunfante: as candeias e lanternas de azeite iluminam a noite do leilão em honra de Nossa Senhora das Dores, padroeira do arraial do Murici; posteriormente, Nhô Augusto é marcado com ferro em brasa (marca do gado do Major Consilva), e recuperado pela chama da fé (velas bentas e candeias de azeite) proveniente da preta que o salvou.

O Artista se recusa, de ora em diante, a reproduzir a figura do Todo Poderoso Senhor do Sertão, mas ainda se submete ao desejo de reproduzir um outro tipo de poder: o carismático. Mesmo assim, já há uma mudança, permitindo uma reavaliação do que foi imaginado antes.

Neste estágio de criação, ele se encontra envolvido por conflitos místicos e existenciais assim como seu personagem. Observa-se sua preocupação com Deus: tanto a consciência de Sua existência como a certeza de que Ele se encontra distante e inatingível. Seu personagem Augusto Matraga indiretamente revela esta certeza: "Ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi"211, palavras da preta, avaliando o sofrimento físico e espiritual de Nhô Augusto.

O personagem se restabelece dos ferimentos físicos e morais sob os cuidados do casal de pretos. Na hora do sofrimento e prenúncio de morte, e nos dias seguintes, a preta acendeu um coto de vela benta e a candeia de azeite em honra de Nossa Senhora do Rosário em intenção do restabelecimento do doente.

Essa luzinha fazia-o lembrar-se da infância, "era o pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço do azeite, contando histórias da infância, histórias mal lembradas, mas todas de bom e bonito final"212. Por intermédio do fogo o personagem fora punido; pelo fogo, será remodelado.

A mão do Artista exigiu uma matéria subjetiva (o fogo) para moldar o novo sertão, que aos poucos se faz visível. Contemplativo, ele recorda as lamparinas de querosene ou azeite que iluminaram as noites de sua infância. As chamas do passado acendem a sua imaginação, forçam-no a adotar um novo método discursivo.

Depois do iluminado leilão, depois da marca do ferro-em-brasa, depois da queda social e pessoal, só resta ao personagem recuperar-se, contemplando pensativamente o brilho da chama benta.

O fogo permite a revalorização do personagem, sua total transformação no universo narrativo. O fogo promove a separação entre mal e bem, entre mau e bom. O antigo Nhô Augusto, marido de Dionóra, que matava sem remorsos, transforma-se num personagem carismático, virtuoso, em busca do reino do Céu.

Nunca é demais observar que o fogo representa mais um ser social do que um ser natural. Para se ver o fundamento desta observação desnecessária se torna desfiar considerações acerca do papel do fogo nas sociedades primitivas, nem insistir nas dificuldades técnicas da sua manutenção; basta que façamos psicologia positiva, examinando a estrutura e a educação de um espírito civilizado. Na verdade, o respeito pelo fogo é um respeito ensinado; não é um respeito natural. O reflexo que nos faz retirar o dedo da chama de uma vela não desempenha nenhum papel consciente no nosso conhecimento. (...) Na realidade, o que surge primeiro são as proibições sociais. A experiência natural só vem depois, para nos fornecer uma prova material inesperada, portanto demasiado obscura para dar lugar a um conhecimento objetivo. A queimadura, ou seja, a inibição natural, ao confirmar as proibições sociais, nada mais faz do que reforçar aos olhos da criança o valor da inteligência paterna. Há, portanto, na origem do conhecimento infantil do fogo uma interferência do natural e do social em que este último domina sempre.213

O respeito pelo fogo é um respeito ensinado, diz Bachelard. "O pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando histórias da infância", revela os ensinamentos religiosos da avó beata, que "queria o menino p'ra padre..."214. As proibições religiosas da infância, esquecidas pelo adulto sanguinário, ressurgem a partir do sofrimento promovido pela marca do ferro-em-brasa e da observação da chama da vela benta. A queimadura do ferro ardente reforça as proibições religiosas, os castigos, reacendendo os antigos ensinamentos da avó.

O Artista, submetido temporariamente ao devaneio do fogo, se encontra numa zona intermediária no seu processo de criação literária. O narrador experiente das primeiras narrativas (apenas observador do sertão) começa a ceder seu lugar ao narrador moderno (alter ego do pensador do sertão), desorientado e questionador, como o quer Benjamim215, autêntico reflexo da desestruturação do mundo atual. O fogo, como elemento de punição do personagem, explicita as transformações assinaladas. Estas transformações representam o início dos novos acontecimentos, ao longo da narrativa, mas constituem também a mudança no plano da criação artística.
O fogo, como elemento de interseção, na criação literária roseana, se destaca apenas nesta narrativa. Surge várias vezes em Grande Sertão: Veredas, iluminando o cenário, mas os elementos acasalados desta narrativa são a terra e água, amalgamadas dinamicamente, promovendo profundas reflexões no personagem-narrador.

Em A hora e vez de Augusto Matraga, o Artista ao invés de sonhar o sertão da infância, devaneou diante das recordações das chamas, que o ensinaram a expandir-se imaginativamente. Ao invés de reproduzir o sertão, as experiências comunitárias do sertão, interiorizou-se, para, conscientemente, recuperar sagradas recordações.

O fogo sugere o desejo de mudança, de forçar o correr do tempo, de chegar imediatamente ao termo da vida, à outra vida.216

O cristianismo fez do fogo o seu símbolo de punição e redenção. Como elemento de punição, acompanha a trajetória de vida do personagem até o momento de sua queda. As candeias iluminam o cenário mítico do início; pelo do fogo, Nhô Augusto foi punido; na hora do sofrimento e prenúncio de morte, a preta coloca um coto de vela benta em suas mãos; durante seu restabelecimento, acende a candeia em honra de Nossa Senhora do Rosário como forma de agradecimento.

O fogo sugere o desejo de mudança do Artista: a derrota de Nhô Augusto, a partir da queimadura com ferro-em-brasa, simboliza o desaparecimento do poderio dos coronéis sertanejos; as etapas de vida do personagem representam as transformações do sertão, as transformações do Artista, do Narrador e do Narrado, o abandono das planas e exteriores grandezas míticas. Nhô Augusto representará para sempre, no universo literário de Guimarães Rosa, o desejo humano de elevação espiritual. A frase que estrutura o fio narrativo das seqüências posteriores (Vou para o Céu nem que seja a porrete) reafirma a sugestão do fogo de mudar, de forçar o correr do tempo em direção à eternidade. Por estas razões, o devaneio do Artista, diante das recordações do fogo da infância, é realmente dramático no final. Sob o predomínio do fogo, ele amplificou, como diz Bachelard217, o destino de seu personagem, salvando-o de ser uma cópia dos medíocres coroneizinhos do sertão mineiro; forçou-o a chegar ao termo da vida (desaparecimento dos coronéis sertanejos), mas permitiu-lhe uma morte gloriosa, semelhante e ao mesmo tempo diferente das narrativas de Personagem, modelo da estética romântica do século XIX.



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