quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.8 - Passagem dos Cogitos

II.8 - Passagem dos Cogitos

Este estudo só perderá sua obscuridade se fixarmos desde já seu objetivo metafísico: ele se apresenta como uma propedêutica a uma filosofia do repouso. Mas, como veremos desde as primeiras páginas, uma filosofia do repouso não é uma filosofia repousante. Um filósofo não pode procurar tranqüilamente a quietude. Necessita de provas metafísicas para admitir o repouso como um direito do pensamento, necessita de experiências múltiplas e de longas discussões para admitir o repouso como um dos elementos do devir.116

Para que seu estudo possa ser compreendido em sua essência, Bachelard apresenta-o como uma propedêutica a uma filosofia do repouso (objetivo metafísico), ou seja, são apenas estudos preliminares, antecedendo futuras afirmações no âmbito da duração. O filósofo não explicita a idéia claramente, mas é possível apreender seu pleno sentido: o objetivo do estudo é metafísico, e a palavra metafísico, aqui, não se encontra ligada a seu sentido figurado, que quer dizer de difícil compreensão. Se assim fosse, não apresentaria seu estudo como uma propedêutica, ou melhor, um estudo introdutório. Seu objetivo metafísico tem como suporte o acúmulo de conhecimentos racionais, adquiridos ao longo de sua vida, somados às experiências recebidas.

No âmbito do Conhecimento, há várias modalidades de cultura. Os conhecimentos racionais conglomeram, além das Ciências Exatas e Humanas, as várias Filosofias, as Religiões e as Artes; e que há nessas duas últimas o predomínio de conhecimentos empíricos, passados de geração a geração, mesclando-se com a formação puramente racional, adquirida por um pequeno grupo. Por estas razões, quando Bachelard apresenta a sua filosofia do repouso, e alerta para o fato de que ela não está ligada ao sentido de repousante enquanto descanso, torna-se mais instigante procurar descobrir o sentido exato de sua propedêutica, cuja temática procura reelaborar a idéia de tempo.

O que seria então esta filosofia do repouso? Como compreendê-la sem macular o sentido correto que o filósofo quis transmitir?

Buscando nas idéias de Bachelard o apoio necessário para elucidar a questão do tempo nas narrativas roseanas, desde Sagarana à última fase, constato as dificuldades do percurso. Por intermédio da ótica bachelardiana, passei a penetrar numa dimensão suprafísica, insolitíssima, procurando uma brecha que pudesse provar-me a possibilidade de esvaziamento do tempo pleno, histórico, linear, vivido em excesso, em benefício de um tempo descontínuo, fervilhante de lacunas, ao longo da obra roseana. Bachelard impôs-me tal incursão (caminhada tensa em um plano de pensamentos transmutativos), já que o meu intúito era verdadeiramente entender suas cogitações filosóficas. Comecei a pensar nesse repouso, num primeiro momento, como algo que indica fixidez, imobilidade, ausência de movimento, impulsionada pelo próprio Bachelard, que o apresenta como esvaziamento do tempo, como algo suspenso entre o antes e o depois.

Compreendi, posteriormente, numa segunda análise, que a idéia de fixidez, imobilidade não era de todo incorreta, mas não se ajustava à idéia tradicional que se faz do verbo repousar, que denota descanso total. O esvaziamento da duração, ou seja, o repouso, como o quer Bachelard, seria assim uma imobilidade, mas uma imobilidade fervilhante; não ofereceria descanso, ao contrário, ofereceria momentos de tensão interna, repletos de pensamentos questionadores. Assim, os momentos suspensos entre o antes e o depois estariam fora do tempo vital e dentro do tempo do pensamento. O repouso, visto por este ângulo, não seria o ato de descansar (adormecer a mente); seria, isto sim, a imobilidade que antecede a futura ação do pensamento.

Por este prisma, refleti com maior intensidade no pensamento que surge do repouso fervilhante. Inicialmente, o repouso fervilhante — antes do pensamento propriamente dito — seria o invólucro de questões amorfas ou díspares, que estariam contidas no íntimo do consciente (da existência do ser) e que não seriam nada repousantes já que instaurariam uma ativa tensão cerebral. Posteriormente, os pensamentos advindos desse repouso fervilhante seriam novos, livres dos dogmas vitais, e propiciariam novas etapas de duração. O tempo pensado ofereceria uma maior liberdade de ação, de invenções, de criação, de concretizações.

Por esta doutrina do tempo, envolvi-me com as narrativas roseanas, desde o seu início até a fase final, e constatei que elas se organizaram, ao longo de sua produção, em quatro momentos, que se interpenetraram.

No primeiro momento, submetido ao tempo contínuo (tempo da história, da experiência de vida), o Artista Literário encontrou seu impulso narrativo na imaginação formal (forma externa), na novidade da descoberta de um sertão muito próximo de sua vida, mas não devidamente explorado no âmbito da literatura. Desta descoberta da imaginação formal, surgiram as narrativas de Sagarana, cujos narradores (memorialistas) – ou um único narrador (não confundir narrador memorialista, aquele que se vale das experiências do passado para compor seu universo ficcional, com narrador de livros de memória, cuja proposta é recuperar fielmente o passado) – se divertem com a variedade de imagens estáveis, intactas desde a infância em suas lembranças.

Ainda submetida à Doutrina do Tempo, sob a orientação bachelardiana, pude observar que, no segundo momento, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, o Artista brasileiro e a sua obra estabelecem uma relação dialética com o sertão, sob o comando exclusivo da criatividade ficcional, destacando os contrários como amor e ódio, alegria e tristeza, dentro e fora, sanidade e insanidade, realidade e irrealidade, luz e trevas e outros mais. Verifica-se a partir da citada narrativa, uma clara mudança na forma de narrar: a consciência do poder de criação ficcional e o abandono das velhas formas narrativas, ligadas ao ato de reproduzir as experiências de vida dos ancestrais.

Reportando-me novamente à coletânea de narrativas de Sagarana e aproveitando-me de um excurso de Bachelard em sua Introdução à DIALÉTICA DA DURAÇÃO, quando informa não ser sua intenção destacar a etapa pessoal do repouso (vida secreta e sossegada, vida solitária que oferece prazer), passo a refletir o início da obra roseana justamente a partir desta perspectiva. Isto, porque a primeira fase ficcional do Artista realizou-se submetida aos conhecimentos tradicionalmente recebidos, portanto fase ligada ao impulso primeiro da imaginação ainda formal (formal no sentido de invólucro de conceitos pré-estabelecidos).

Bachelard, em seus estudos, não está preocupado com o tempo vital, pois sua temática se liga ao tempo do pensamento. Ele não pretende, em absoluto, "delinear (...) a perspectiva que conduz à vida secreta e sossegada"117, perspectiva ligada ao tempo contínuo, histórico, vivido, repleto de paixões; tempo submetido às exigências externas e sociais, às excitações que atraem o homem para fora de si mesmo.

Se Bachelard restringe o aspecto pessoal da questão, revisitarei o assunto, uma vez que o Artista Guimarães Rosa, em sua fase inicial, procura reproduzir ficcionalmente aspectos de vida de um passado histórico, tendo como referencial o Sertão das Gerais, localizado no Norte do Estado de Minas, fronteiriço ao Sertão da Caatinga, localizado na região do Nordeste brasileiro.

O excurso de Bachelard, logo no início de suas propostas filosóficas, restringindo o aspecto pessoal do repouso, abstendo-se de estudá-lo, alertou-me quanto à questão acima exposta. Guimarães Rosa, inicialmente submetido ao repouso vital e à imaginação formal, invólucro de conceitos pré-estabelecidos, sentiu-se envolvido pelas gratas lembranças da infância, rememorizou extasiado e descansado (linearmente) seu passado histórico, repleto de matéria mítica. Assim, observando as narrativas de Sagarana (as histórias do burrinho pedrês, de Seu Lalino Salãtiel e outras) fixei-me na figura de Nhô Augusto Matraga, já que o personagem representa nitidamente o momento de mudança temporal do próprio Artista. O personagem Augusto Matraga (assim como o narrador) representa também as mudanças mentais do escritor.

Por este aspecto, posso afirmar que todos sofrem mudanças nesta pequena narrativa: o Artista, o Narrador, o Personagem, o Leitor e o próprio Mundo Narrado. Nhô Augusto, principalmente, revela as nuances mentais do Criador Literário: depois da queda (pessoal e ideológica), fica recuperando-se dos ferimentos na casa dos pretos que o salvaram, recordando a infância, as rezas da infância aprendidas com a avó beata. Neste início, é justamente a vida secreta e sossegada de Nhô Augusto, com todo seu conteúdo passional, que motiva-me raciocinar, para depois alcançar os postulados centrais da filosofia bachelardiana.

A queda ainda não representa um verdadeiro momento de mudança narrativa. O Artista, submetido às imposições ideológicas do sertão, tenta recuperar o personagem linearmente, remodelando-o sob o jugo de um novo poder: o poder carismático.

Mas é nesse momento que Nhô Augusto se submete ao repouso vital, sob os ditames da tradição religiosa, embalado pelas lembranças da infância, permitindo assim um temporário descanso vital ao escritor, já prestes a se submeter ao repouso fervilhante que antecederá ao início de novas e singulares criações literárias, nascidas exclusivamente do tempo do pensamento.

Enquanto Nhô Augusto depois da queda reaparece renovado, saído das brasas de uma fé antiga ainda vivas sob as cinzas da descrença, o narrador se prepara, orientado pelo demiúrgo, para assumir uma nova postura narrativa, que romperá definitivamente com sua antiga forma de narrar. Portanto, quem realmente resgata, momentaneamente, a paz de espírito própria da infância é o Artista. Ele se recupera no plano da continuidade temporal, recuperando também mais uma face ideológica de seu personagem: a carismática. Por isto, repenso aqui o excurso de Gaston Bachelard, nas páginas iniciais de sua propedêutica, rejeitando um envolvimento maior com o repouso vital.

O repouso de Nhô Augusto na casa dos pretos simboliza descanso mental, vital, já que o ficcionista por enquanto não irá modificar nada ao longo da narrativa, apenas promoverá um aparentemente novo direcionamento de vida para o personagem, submetido ainda às leis do tempo contínuo. Em outras palavras, ele simplesmente receberá um novo poder como porta-voz do poder religioso.

Se o personagem, nesse intervalo, nesse repouso forçado, com todas as conotações próprias da palavra repouso, recupera a paz de espírito, é a partir daí que o repouso tenso, fervilhante, do Artista, sentido no fundo do ser, de acordo com Bachelard, começa a se insinuar, possibilitando novas perspectivas de narração na obra roseana. O narrador informa que o personagem passa a ter tempo para sarar e pensar, mas quem realmente se imobiliza tensamente, para produzir novos e singulares pensamentos é o próprio Artista. O personagem, o narrador e o Artista estão prestes a esvaziar o tempo vivido (contínuo) em benefício de uma nova realidade, autenticamente ficcional, repleta de lacunas fervilhantes.

Enquanto o Artista se imobiliza tensamente, suspenso entre o antes e o depois (o depois das durações bem feitas, promovedoras de pensamentos inovadores), Nhô Augusto refaz momentaneamente, como já foi dito, seu curso de vida, preso ainda ao elan vital, às paixões coletivas. O personagem, induzido exclusivamente pelo escritor do século XX (atentar para a posição de submissão do narrador, já que este, de ora em diante, não comandará mais a proposta de narrativa tradicional), passa a ter tempo para meditar e esquecer sua antiga personalidade de homem poderoso e destrutivo, adquirindo chances de se tornar um novo homem, ainda vital, no caso, carismático.

O narrador apresenta um aparente momento de transição. Aparentemente, o personagem procura esquecer o que foi antes, transformando-se num novo ser, criando dentro de si uma nova forma de se expressar no mundo. Aparentemente e temporariamente, surge um novo Augusto, repleto de bons propósitos, ansiando pelo céu, mas, na verdade, por ora, nada mudou. O que aconteceu foi a repetição do continuísmo temporal, ou seja, a perda de um poder (poder social), gerando um novo poder (poder carismático), exercido em nome da divindade.

Assim, por esta ótica, o início da narrativa (até a queda) e a segunda seqüência (carismática), na qual observa-se a repetição do continuísmo temporal, com o personagem adotando uma nova estratégia de vida, simbolizam as experiências de vida da comunidade do sertão, material precioso, que fundamenta a vida de um povo. As "experiências de vida", segundo Walter Benjamim118, encontram-se registradas na memória, e é a memória do Artista (as lembranças do sertão) que insiste em ressuscitar o personagem, em permanecer fiel às tradições, enfim, em ater-se ao tempo pleno bergsoniano, confiante no elan vital das ideologias sacralizadas.

As experiências de vida são relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao povo sertanejo o hábito de contar estórias, passar para os jovens os atos heróicos dos corajosos, promover normas de vida, ensinar, aconselhar, incentivar à geração futura o desenvolvimento de feitos valorosos. Dentro desta ótica, o povo sertanejo mantém ainda um vínculo permanente com os povos antigos e o Artista, herdeiro do "ontem eterno"119, pôde se beneficiar literariamente desta sua ligação com o passado.

Os narradores das narrativas de Sagarana captam essa matéria, replena de valores primitivos, subjacente numa região onde as normas de vida continuam ainda semelhantes às normas de vida das antigas comunidades. O narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, por exemplo, se propõe a contar a vida heróica de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes, fundamentada na força física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.

Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:

O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como legítima). Para que o Estado exista, os dominados devem obedecer a autoridade alegada pelos detentores do poder.120

Neste duplo aspecto, organizam-se as seqüências ficcionais de A hora e vez de Augusto Matraga: a narrativa descompromissada e informativa de um mundo imaculado e a narrativa em que estas experiências são negadas por um outro mundo, abalado por sucessivas e inesperadas violências.

Graças a esta dualidade, este texto ficcional de Guimarães Rosa atinge um plano universal de raras proporções: capta a incerteza social que envolve coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões brasileiros, e de repente se percebe que o espaço apresentado é o próprio mundo, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos, subordinação do mais fraco pelo poderoso.

Penso em Guimarães Rosa (quando reinterpreto esta narrativa) como refletor da burguesia periférica brasileira. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa mediatizado pelo narrador é um ponto de vista burguês. Vê-se, nas primeiras seqüências, o porta-voz das experiências do Sertão, mas posteriormente passa a representar uma classe social. Mesmo ao demonstrar uma criatividade ilimitada, e isto se observa quando se liberta do jugo memorialista, deixando suas recordações do ambiente do sertão aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de uma localidade que representa suas raízes de vida. Se o seu narrador possui sensibilidade para captar o lado primitivo desse lugar especial, possui também consciência para observar que o mesmo  se encontra ameaçado por forças desencontradas e poderosas.

Weber questiona: "Por que os homens obedecem?" 121

Em primeiro lugar, afirma, há a autoridade do ontem eterno. Os subjugados se conformam com o domínio tradicional exercido pelo Patriarca. Em princípio, Augusto Esteves se assemelha à autoridade do ontem eterno, porque continua uma tradição. Seu poder foi herdado do pai, o Coronel Afonsão das Pindaíbas e do Saco-da-embira.

O narrador apresenta ao leitor uma pequena comunidade e o herói desta comunidade, ambos em vias de se degradarem.

Eis o conflito do narrador: a degradação não está no espaço apreendido (sua sensibilidade capta a pureza remanescente dos antigos núcleos primitivos); a degradação se encontra em si próprio, porque, porta-voz que é do Artista, conhece as várias faces/fases do Homem moderno.

Eis o conflito da narrativa: a memória (matéria épica) se contrapõe às recordações de um mundo para sempre perdido (matéria romanesca). O que foi transmitido por sucessivas gerações se encontra agora em vias de extinção. O narrador se dá conta, submetido agora ao repouso fervilhante do Artista, de que esta comunidade existe apenas em suas recordações, em seus devaneios infinitos. O narrador é o representante desta comunidade primitiva e ao mesmo tempo burguesa. Por isto, o narrador é primitivo e burguês, porque se desenvolve na dialética daquele que o idealizou (e que já alcançou o cogito(2), já verticalizando seus pensamentos em direção ao cogito(3) da consciência pura), mas cujas origens se ligam às comunidades fechadas do passado.

Assim como Nhô Augusto herdou a autoridade do ontem eterno, o narrador em questão herdou esta autoridade, como duplo de um Sábio, que narra suas próprias experiências de vida como herdeiro de um nome sertanejo. Estas experiências não são pessoais enquanto curso de vida, são verdadeiras, são experiências transcendentais, irracionais, já ancoradas num tempo suspenso entre o antes e o depois; experiências de quem se coloca como porta-voz da burguesia sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos do sertão, dominados por Senhores-de-terra poderosos.

Nhô Augusto herdou um pequeno Império e nele reinou durante algum tempo. Enquanto durou sua autoridade, foi a própria representação do poder mítico-social.

O Artista, por intermédio de seu narrador, permite opacamente que se observe a realidade burguesa como invólucro das representações do sertão. A narrativa procura destacar um espaço puro, mas há nesse espaço personagens degradados: os bate-paus de Nhô Augusto, por exemplo, são formas representativas, simbólicas, do mundo burguês capitalista. Quando o personagem, depois da queda, sem poder, necessita dos serviços de seus antigos homens de confiança, estes se recusam a obedecer-lhe, porque são membros do aparelho ideológico do poder, do qual Nhô Augusto não mais dispõe. O personagem roseano, nesta segunda seqüência, submetido à ótica burguesa, já não possuía o reverenciado poder, já não possuía a qualidade de mando.

É lícito observar as representações das normas capitalistas em alguns trechos da narrativa. Por exemplo:

Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro... P'ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que Seu Major disse que não quer.122

Os bate-paus fazem a degradação do poder, do valor do dinheiro de quem o possui, mas não conseguem corromper o espaço de referência do narrador, porque este é mediador do Artista, brasileiro, indivíduo contraditório, originário de um mundo em que o valor do dinheiro não tem valor, mas que, sobretudo, deseja ressaltar um determinado sertão da infância (seus primeiros anos de vida). Mesmo sem estar comprometido com os valores da modernidade, o Ficcionista sertanejo, nesta narrativa de transição, ainda não alcançou completamente o patamar da consciência pura, plano indiscutivelmente individual. Por isto, os bate-paus fazem a degradação do poder. Por isto, o portador calado significa que quem fala é o poder, pois só o poder tem poder de fala. Segundo Rosa, "o dinheiro não adianta muito no sertão"123, mas é o poder no mundo capitalista urbano. E o sertão roseano — ou brasileiro —, marcado por um capitalismo periférico, ainda que possuindo matéria mítica em estado bruto, está inserido, em sentido diacrônico e sincrônico, na sociedade brasileira moderna.

A sociedade brasileira nasceu em princípios da Era Moderna, e mesmo tendo-se desenvolvido em seu território processos antigos de vida comunitária, como a agricultura, as leis econômicas da Europa comandaram as normas econômicas e sociais de seu povo. Assim, entende-se o fato do narrador roseano, nesta narrativa, refletir as contradições do Brasil, do capitalismo brasileiro, periférico, de terceiro mundo; entende-se o porquê do Artista apresentar a sua visão pessoal e social do mundo sertanejo, com tais características comunitárias, e instintivamente deixar-se surpreender também como representante da moderna sociedade capitalista. Por estas razões, ainda ligado à imaginação formal nas primeiras seqüências, ou seja, aos aspectos exteriores do sertão, promove a queda do personagem, já idealizando um novo poder para ele, no plano da religiosidade.

As transformações de Nhô Augusto, pelo ponto de vista sociológico, são significantes dos vários estágios de vida estacionados no pequeno espaço do sertão, sobrepondo-se infinitamente, imunes à ação do tempo; mas, pelo ponto de vista da filosofia bachelardiana, representam a passagem do cogito(1) para o cogito(2), quando o Artista e sua obra começam a desenvolver uma relação dialética com o sertão.

Recuperando o poder de Nhô Augusto, dentro de outra categoria (a carismática-religiosa), o narrador age ainda segundo a filosofia do pleno de Henri Bergson, tão questionada por Gaston Bachelard. Assim, confirmando o que foi dito anteriormente, a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga retoma, nos trechos iniciais, a linearidade própria das narrativas orais. Todas as narrativas lineares, simples, necessitam de mobilidade, de transcursividade, para se realizarem plenamente. O narrador, nas primeiras seqüências da narrativa, necessita de confirmações, de segurança, para realçar seu personagem. Por isto, o passado vela o presente na casa dos pretos. O passado de Nhô Augusto, com a avó, foi "profundo, rico e pleno"124, e, graças a esse passado, o narrador tem como recuperar a face religiosa do personagem.

Mas não é o aspecto linear e metódico do tempo que motiva Bachelard a dialetizar a temática da duração. Ele prefere aproveitar apenas "a época feliz em que o homem se vê entregue a si mesmo, em que a reflexão se ocupa mais de organizar a inação do que servir a exigências externas e sociais"125. Então, aqui, poderei explorar o forçado repouso (vital) de Nhô Augusto, já fundamentando o início do repouso fervilhante do Artista. Não falarei, por ora, como direciona-me Bachelard, do Artista distanciado do mundo, retirado do mundo, fortalecido pela solidão moral (e isto já se pré-anuncia a partir da segunda seqüência da narrativa); falarei páginas adiante sobre o Artista a partir da terceira seqüência, na qual se destaca o aspecto impessoal do narrador (a partir daí seu indiscutível alter ego), descobrindo as "zonas de repouso", as "razões de repouso"126, sistematizando o próprio repouso e o repouso de seu personagem.

Por ora, o Artista, ainda preso ao aspecto metódico do tempo, organizou a inação vital de seu personagem, planejou para ele uma nova forma de vida, conscientizou-o do fracasso de sua vida passada, prenunciando a sua própria futura inação fervilhante. Mas, nessa segunda etapa da narrativa, seu narrador ainda se recupera linearmente, submetendo-se a exigências externas e sociais; e Nhô Augusto passa a ter novamente, como personagem carismático, uma vida estruturada, amparada pela personalidade. Nhô Augusto continua poderoso (poder carismático amparado pela divindade), portanto estrutura-se ainda dentro do tempo linear. Mas o escritor já se encontra no início da sistematização de seu próprio repouso fervilhante, ligado ao tempo do pensamento, e assim começa a mudar o sentido da narrativa, transformando, gradativamente, o narrador memorialista (terminologia de Walter Benjamim) em narrador moderno.

Ao elaborar a face carismática do personagem, ainda sob as normas da narrativa linear, o narrador penetrou em uma zona dogmática, que é a zona espiritual no sentido cristão, inserida na própria pessoa por intermédio da iniciação religiosa ou moral. Quando um ser entra na zona espiritual, sob a orientação cristã, deixa de ser pessoa e passa a fazer parte de um grupo, porque a personalização é incompatível com a divindade comum a todos os seres humanos, e assim assume uma postura de representante do divino com poderes, mas sem autoridade pessoal. Nessa dimensão (espiritualidade cristã) todos são iguais, não há individualidade. Não é sem razão que o personagem passa a trabalhar para os pretos que o salvaram antes; ele está submetido às leis lineares da ideologia cristã. A narrativa, destacando o herói carismático (segundo segmento), ainda é linear, porque se encontra no plano da ideologia religiosa. O narrador recupera as origens de vida do personagem, a sua religiosidade dos tempos de criança.

Enquanto durou a sua condição de homem poderoso, no aspecto mítico-social, Nhô Augusto — o rompente, o matador —, induzido por seu narrador memorialista, negou as coisas do espírito, no aspecto místico-cristão. O seu cotidiano de Todo-Poderoso distraiu sua mente das diretrizes dogmáticas da religião. Na segunda fase, antigas orientações espirituais vêm à tona, transformando-o num homem religioso.

De acordo com Bachelard, só o espírito (e o espírito, segundo Bachelard, não possui o sentido dado pela orientação cristã) promoveria o refluir do tempo vivido, permitindo novas formas conceituais do ser; e a máxima forma do Ser no ser, sob o domínio do conceito de divindade, é a carismática.

Assim, houve a separação, nas seqüências iniciais, entre vida e espírito, já à moda bachelardiana. Na primeira seqüência, antes da queda, o personagem não possui espiritualidade, porque, como o mesmo Bachelard reconhece, "o espírito poderia chocar-se com a vida, opor-se a hábitos inveterados"127. E, como esclarece o filósofo, quando isto acontece, ou seja, quando há o choque entre matéria e espírito, e o espírito sai vencedor, o espírito faz "o tempo refluir sobre si mesmo", suscitando "renovações do ser, retornos a condições iniciais"128. E é assim que Nhô Augusto, direcionado ainda pelo narrador memorialista, retorna no tempo em busca do passado, renovando seu ser, recuperando-se assim dos ferimentos. Retornando à religiosidade, plantada na infância pela avó religiosa, o personagem reconforta-se e recupera um novo tipo de poder. Nesta segunda seqüência, ouso inferir que o espírito é o vencedor (orientado pelos dogmas cristãos).

Bachelard diz que é pela reflexão fervilhante que o ser se liberta do elan vital. O elan vital induz o indivíduo a se afastar dos objetivos individuais, impulsiona-o no sentido de aceitar o já instituído socialmente sem questionamentos.

A inteligência, entregue à sua função especulativa, irá aparecer-nos como uma função que cria lazeres e os fortalece. A consciência pura irá aparecer-nos como uma potência de espera e de guarda, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.129

O narrador, nesta narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, está em vias de se liberar do elan vital, e isto promove também a libertação do Artista. Ele contou as peripécias de vida do personagem, refez sua trajetória existencial, mas a partir da página 26 (op.cit.), o discurso narrativo muda. Há estranhamentos, conflitos, e o personagem Nhô Augusto se transforma. Nesse momento narrativo, aparece um personagem providencial, o Tião da Teresa, que permitirá ao narrador mudanças discursivas, reveladoras de um novo estágio de pensamento do Artista brasileiro. O narrador se apodera do discurso do personagem Tião, dando todas as notícias do passado em apenas um parágrafo. Depois da entrada e retirada de Tião (personagem ocasional), o narrador muda o enredo narrativo. O discurso passa a ser complexo e estranho. Ao invés da narrativa concentrada em um tempo linear, pleno, substancial, visualiza-se uma narrativa transcendental, já propensa a algumas lacunas, características estas ligadas ao cogito(2), ou seja, ao pensamento transmutativo.

Bachelard, no capítulo "As superposições temporais"130, mostra a diferença entre um tempo múltiplo e relativo e um tempo de qualidade essencial e instantânea, em outras palavras, procura diferenciar o tempo linear histórico do tempo instantâneo, que se encontra suspenso entre o antes e o depois.

Para alcançar o entendimento dessa diferença, exercitou-se pela meditação; procurou esvaziar o tempo linear, retirando os excessos; ordenou os diversos planos de fenômenos temporais. A partir da meditação, percebeu que "os fenômenos não duravam todos do mesmo modo"; percebeu que a idéia de tempo único era uma idéia resumida e imperfeita; percebeu a inexistência do sincronismo entre a passagem das coisas e a fuga abstrata do tempo; percebeu "que era necessário estudar os fenômenos temporais, cada qual segundo um ritmo apropriado, um ponto de vista particular"131.

Observando as várias etapas do pensamento de Bachelard, conscientizei-me de que o narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, amparado pelo pensamento renovado do Artista Literário, sofreu o mesmo processo de raciocínio metafísico. Enquanto durou o repouso vital de Nhô Augusto, o escritor pôde repousar também sob o predomínio do repouso fervilhante; pôde refletir sobre vida e espírito; pôde buscar uma solução vertical para sua narrativa, que a partir dali não teria como se manter plena e linear. Ele meditou, esvaziou o tempo vivido das durações malfeitas e desenvolveu um novo raciocínio por meio do narrador. Por estas razões, a narrativa prossegue, mas de forma diferente. Há estranhamentos, insolidez, lacunas, total falta de sincronia na recuperação temporal. O narrador roseano deixa seu personagem

(...) no escuro e sozinho (...), sem padre nenhum com quem falar. E essa era a conseqüência de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruaz bravio, combinada com a existência, neste mundo, do Tião da Teresa. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.132

A partir deste trecho, já se observa a duração como a quer Bachelard, onde o tempo decorrido "fervilha de lacunas"133, tempo muito próximo das inconseqüências quânticas, e na qual não há a continuidade do tempo histórico. Agora, a narrativa recupera os instantes fervilhantes, que produzem a idéia de tempo, importando mais destacar o que se encontra entre o repouso e a ação. O narrador sai da objetividade histórica, a história pessoal de Nhô Augusto, Senhor absoluto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, Senhor absoluto do Retiro do Morro Azul, além de ser Senhor absoluto do povoado do Murici, e se enreda em seus próprios circunlóquios, ou seja, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso fervilhante. A narrativa passa a ser poética e ritmada; passa a ser construída por um grupo de princípios relacionados entre si, mas que visa unicamente detectar os instantes do pensamento dialetizado.

As recordações da infância no sertão, certamente marcaram o escritor Guimarães Rosa. As histórias de Senhores-de-terra poderosos e valentes encontraram ressonâncias em seu espírito, marcaram-no vivamente. Mas essas recordações só foram realmente recuperadas mediante o repouso ligado ao tempo do pensamento e dos posteriores questionamentos sobre o sertão. Só depois que seu narrador se desembaraçou do tempo linear, "das falsas permanências, das durações malfeitas"134, só depois que ele desorganizou temporalmente sua narrativa, só depois que ele dissociou-se da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu curar-se do tempo sintagmático, questionando-o e assumindo no final (nas narrativas finais) o cogito(3) da consciência individual.

Ele pensou, a partir de então, alucinatoriamente, o sertão de sua infância; buscou a síntese do ser na essência do vir a ser; sumariou, resumiu o sertão poeticamente e conseguiu chegar a um final discursivo, distante temporalmente dos valores substanciais.

Depois do repouso, novos pensamentos surgiram e seu narrador se libertou e libertou o personagem. A hora e vez fervilhante do narrador chegou (sob o aval dos pensamentos fervilhantes do Artista Literário do século XX), levando-o a assumir definitivamente um pensamento narrativo distante dos padrões temporais. O narrador se libertou dos arrebatamentos súbitos e efêmeros, elans, que o faziam gastar sua energia criativa em ações imitadas. Até o momento do repouso fervilhante do Artista, o narrador deixou-se levar pelo impulso do que recebeu no passado, ou seja, procurou transmitir as experiências de vida que caracterizam a matéria épica. Nas primeiras seqüências, não tem intuição própria (ou não se permite ter). Nessas duas primeiras seqüências, em que se destacam as fases/faces do poder (primeiramente social e depois carismático), afasta-se do caminho individual, para se colocar como porta-voz das experiências da burguesia sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos do sertão e dominada por senhores-de-terra poderosos.

Por intermédio dos novos pensamentos de seu Criador, o narrador assume o caminho individual, que leva à auto-reflexão, qualidade essencial para se chegar ao objetivo da consciência singular, que caracteriza o indivíduo inteligente. A inteligência é engrandecida por Bachelard e a inteligência é uma qualidade no Artista Guimarães Rosa. Aqueles que se encontram no cogito(1) não valorizam a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que transformam alguns grupos sociais em uma só massa pensante. A função da inteligência é questionar, argumentar, refletir sobre a validade da direção do impulso massificador. Essa função especulativa, segundo Bachelard, "cria lazeres e os fortalece"135, ou seja, cria prazeres (coisas boas), que fortalecem e aperfeiçoam tal função. A consciência pura produz a capacidade de escolha lúcida, agencia o livre-arbítrio.

A consciência pura, de acordo com Bachelard, se localiza no cogito(3) da autêntica individualidade, acima dos cogitos um e dois e próxima do cogito(4), cogito este já fora da linha vital. Seria, assim, o eu singular, consciente, lucidamente equilibrado, repleto de força e capacidade de escolha. A consciência pura pode ficar em estado de vigilância, pode esperar que alguma coisa se manifeste, como por exemplo as intuições espirituais, pode esperar alguma oportunidade para agir, pode aguardar e guardar (baú de memórias), pode vigiar para que não entre em seu mundo interior (plano do eu profundo) qualquer conhecimento nocivo. Esta consciência singular, por estar muito próxima do tempo espiritual, estará sempre em estado de liberdade, porque não estará totalmente submetida às pressões do mundo vital; não será suscetível ao julgamento do mundo, às cobranças sociais, porque estará no plano que, para os que não a entendem, aparecerá como uma vontade de nada fazer, já que não vai fazer nada, enquanto não for o seu momento de bem fazer alguma coisa.

Foi a consciência argumentativa do cogito(2) que fez o escritor de estórias sertanejas Guimarães Rosa mudar a face/fase de seu narrador em A hora e vez de Augusto Matraga, colocando nele seus próprios objetivos individuais de homem prestes a alcançar um plano elevado dentro dos vários patamares que compõem o pensamento individual. Seu narrador deixou de agir impulsionado pelo elan vital, apropriando-se da inteligência de quem o criou e lhe deu forma ficcional. Assim, o narrador assume os pensamentos dialetizados do Artista, questionando, argumentando, refletindo sobre a direção que pretende dar à narrativa, direcionando seus impulsos criadores. Por isto, Nhô Augusto, retornando ao Arraial do Murici, subjugado à nova forma de pensar do Artista, pôde se encantar com as minúcias da natureza, enquanto o narrador poetizava o sertão. O narrador, apropriando-se da função especulativa do Artista, criou um mundo diferente, embalado pelo prazer de estar ancorado numa dimensão quase particular (cogito(2)), já propenso a se desligar das opiniões externas. Esta última etapa da narrativa marca a nova decisão do Artista: de ora em diante, ele criará um sertão muito particular, suspenso num momento onde o antes não conta, e o que virá em termos históricos também não.

No âmbito da consciência argumentativa, intuiu o momento da manifestação do narrador moderno, suplantando o narrador experiente das comunidades antigas. Esperou, enquanto se posicionava como contador de estórias sertanejas, a oportunidade de se libertar das pressões do mundo. No plano da consciência argumentativa, depois da libertação, passa a vivenciar o impacto do juízo de descoberta. O sertão, nascido do eu questionador, estará assim propenso às críticas da sociedade, mas promoverá também uma futura conscientização de seus valores por esta mesma sociedade. Um espaço que nunca foi apreciado pelas elites vem à luz sob a égide de uma consciência que já se desprendeu do cogito(1) e que já não se incomoda mais em se dizer sertaneja (rústica), mesmo que já tenha alcançado outros graus no plano das exigências sociais.

Bachelard esclarece, quando teoriza sobre "as superposições temporais"136, que os vários graus de instantes formam um acontecimento, e o acontecimento é o fato, ou seja, está também contido no tempo absoluto. A qualidade desse tempo (tempo do pensamento) é que é diferente, mesmo se manifestando no tempo vital, considerado absoluto, mas, em verdade, já é um tempo vertical. É um tempo que aparenta ser contínuo e, por isto, ainda dentro dos limites existenciais. Esse tempo, entendido pela Física, cientificamente, ainda não foi suplantado, apesar das tentativas filosóficas para se provar a existência de outras dimensões paralelas de tempo, além dos limites vitais. As dimensões temporais, vistas em suas formas aparentes, limitadas ao plano experimental, só podem realmente ser captadas no plano de interseção entre aparência e essência, plano este pouco avaliado, desenvolvendo-se assim idéias verticais no nível filosófico. Este plano de interseção pode levar a um entendimento vertical (o instante) ou a um entendimento relativo (correlações de instantes), que estão contidos potencialmente no entendimento do todo (para Bachelard, os três cogitos do pensamento estão dentro do plano vital).

O entendimento teórico-mental do tempo relativo (um estágio acima do tempo absoluto) está baseado no estudo do movimento, enquanto característica da continuidade das seqüências dos instantes temporais. A qualidade no tempo relativo é mutável, de acordo com os pontos de referência, por isto, ela é plural. Esses pontos de referência correlacionam-se, conservam ordens objetivas de transcurso. Por estas razões, os pontos de referência do tempo relativo têm continuidade, porque, mesmo sendo constituídos de instantes destacados, que não guardam durações absolutas, como no tempo contínuo, transitivo, esses mesmos instantes não são considerados, mas sim o que os une. Assim, a seqüência pode ser quebrada, no tempo relativo (correlações de instantes), se os pontos de vista não forem harmônicos. Isto gera uma mudança, característica da descontinuidade, que evidencia a existência de instantes separados, qualidade do instante vertical.

O instante vertical pertence ao tempo quântico, qualitativo, centrado na mudança de qualidade. Cada instante desse tempo quântico é feito dentro de um contexto, que, ao ser observado destacadamente, apresenta uma qualidade diferente.

Para a teoria da descontinuidade, cada movimento pode ter uma qualidade, um sentimento, uma imagem, um pensamento que esteja predominando naquele instante, diferente da qualidade do movimento anterior e diferente também da qualidade registrada na teoria da continuidade.

Sob a orientação bergsoniana, os tempos, qualitativos, ocorrem paralelamente/ simultaneamente. Em outras palavras, holisticamente (organizadamente) um tempo está potencialmente contido no outro; a preponderância de um vai depender do ponto de vista escolhido; porém, para Bachelard, que não desmerece em absoluto os pontos de vista de Bergson, apenas rejeita a idéia da continuidade temporal, a intuição pura permite perceber os tempos destacados, suspensos entre o antes e o depois, anulando definitivamente as prováveis uniões entre eles. O filósofo, a partir da intuição, obriga-se a criticar o ponto de vista holístico (organizado) do tempo, admitindo um novo conceito de tempo. O tempo feito de acidentes de Bachelard se deve às várias dimensões que existem, superpostas e simultâneas, e que, por um ponto de vista macroscópico, podem parecer holísticas.

O tempo feito de acidentes está perto das inconseqüências quânticas, mais do que das coerências racionais ou das consistências reais (tempo absoluto) e mais do que das correlações de pontos harmônicos (tempo relativo), porque a cada instante há uma mudança na qualidade do evento que não tem conseqüência na qualidade do mesmo evento de um instante antes. Esse instante é único, porque há uma integração instantânea e completa das imagens, pensamentos e sentimentos, mas isso não quer dizer que um instante seja conseqüência do anterior. O evento está fora do ser aparente, está no pensamento. No instante em que o evento assume uma qualidade, o observador participa desta qualidade, como se ele também tivesse esta qualidade, e de fato ele tem, porque, nesse momento fervilhante, fica óbvio que tudo faz parte de um instante irreproduzível. Por isto, Bachelard fala de intuição, da captação da qualidade de um evento pela intuição, acrisolada no repouso fervilhante. Não haveria tempo também para fazer essa captação pela racionalização (esta só aparecerá depois do repouso fervilhante, na forma de um novo pensamento); é difícil manter uma meditação vital, porque esta dificuldade para meditar é que comprova o tempo feito de acidentes, que muito se aproxima das inconseqüências quânticas, tão voláteis, como foi dito antes.

Foi a dificuldade para a meditação que permitiu ao filósofo descobrir as incoerências e as inconsistências do descontínuo temporal. Por isto, procurou demonstrar que, reduzindo os tempos lineares a tempos instantâneos, a única qualidade evidente, completa e eficaz seria a qualidade espiritual, captada pela intuição. "O tempo espiritual não seria uma simples abstração do tempo vital"137, seria a própria origem do tempo vital. Valendo-se de um novo raciocínio transmutativo, depois do repouso fervilhante, chega-se à conscientização desse tempo instantâneo. Esse tempo instantâneo se liga ao vital pelas aquisições espirituais, já conceituadas, obtidas antes do repouso ativo; mas também surge revigorado, graças à nova formalização do novamente intuído e que se encontra à deriva, fora do plano vital. O tempo do pensamento (instantes de tempo) é portanto superior ao tempo vital, porque, por meio dele, há como comandar o repouso e a ação, além de ser pelo pensamento que nascem as atitudes que revolucionam o mundo. Mas só a intuição do espiritual permite ver as inconsistências do vital e do mental, dentro de um conjunto coerente.

O tempo espiritual atua em seu próprio plano instantâneo, mas, como ele compõe os tempos vital e mental, a ação dele, num instante, se reflete nos outros planos temporais, atuando profundamente nesses mesmos planos, que não são os de seu próprio transcurso. O reflexo desse mundo espiritual, que só a intuição capta, pode ficar só dentro de seu próprio plano ou dentro do plano das idéias abstratas, ou se encaminhar para um plano mais exterior, que é o físico, que envolve os planos emocional e mental. Assim, o Tempo tem várias dimensões, várias espessuras, porque essas dimensões e espessuras tem de ver com os inúmeros aspectos do Universo.

O aspecto contínuo (tempo absoluto físico) existe no plano externo-físico, mas é, na verdade, a soma de muitos tempos independentes. Assim, há lacunas que podem ser ou não percebidas e só serão captadas por um raciocínio argumentador. Esse raciocínio, a cada instante, sofre modificações, porque não se submete aos pensamentos já definidos. As novas idéias surgem impulsionadas pelos questionamentos do repouso fervilhante, que são respondidos no mesmo instante pela intuição, de acordo com a qualidade do questionamento.

Ainda no plano do transcurso das coisas (plano vital), desenvolve-se a relatividade física (tempo da física), que, apesar do pluralismo temporal, ainda "aceita a continuidade como característica evidente"138. Esse pluralismo é muito diferente do que existe nas coincidências espirituais. No plano do transcurso das coisas, há a necessidade do preenchimento das lacunas do tempo, algo não necessário no plano do espírito. Alguns privilegiados, apesar de viverem no plano físico, necessitam de uma expansão racional, de um aprofundamento que os leve ao cogito(3), no qual se individualizam. Este cogito é o invólucro da inteligência pura, no qual se originam as idéias elevadas e singulares.

Quando Bachelard aborda a temática do sonho, dialetizando a duração, e diz que, por intermédio dos sonhos, "é possível distinguir as influências dos tempos superpostos" e que inclusive "sonhar é desengrenar os tempos superpostos"139, penso que a coordenação ou não da sincronicidade dos eventos vai depender da criatividade mental de cada um. O tempo, no sonho do amanhecer, passa a ser totalmente o tempo vertical (suspenso entre o antes e o depois), algo que independe do passado e não se preocupa com o futuro. Os tempos superpostos, até o cogito(3), de qualquer maneira, só existem no plano da realidade, portanto são vitais, dependentes também da capacidade de organização da pessoa. O tempo espiritual (cogito(4)), tempo completamente lacunar, se encontra fora da linha vital e é de difícil acesso, segundo Bachelard. Por isto, posso reafirmar: os tempos do pensamento (cogitos dois e três) fazem parte também da realidade.



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