Este estudo só perderá sua obscuridade se fixarmos
desde já seu objetivo metafísico: ele se apresenta como uma propedêutica a uma
filosofia do repouso. Mas, como veremos desde as primeiras páginas, uma
filosofia do repouso não é uma filosofia repousante. Um filósofo não pode
procurar tranqüilamente a quietude. Necessita de provas metafísicas para
admitir o repouso como um direito do pensamento, necessita de experiências
múltiplas e de longas discussões para admitir o repouso como um dos elementos
do devir.116
Para que seu estudo possa ser compreendido em sua essência, Bachelard
apresenta-o como uma propedêutica a uma
filosofia do repouso (objetivo metafísico), ou seja, são apenas estudos
preliminares, antecedendo futuras
afirmações no âmbito da duração.
O filósofo não explicita a idéia claramente, mas é possível apreender seu pleno
sentido: o objetivo do estudo é metafísico, e a palavra metafísico, aqui, não se encontra ligada a seu sentido figurado,
que quer dizer de difícil compreensão.
Se assim fosse, não apresentaria seu estudo como uma propedêutica, ou melhor,
um estudo introdutório. Seu objetivo metafísico tem como suporte o acúmulo de conhecimentos racionais, adquiridos ao
longo de sua vida, somados às experiências
recebidas.
No âmbito do Conhecimento, há várias modalidades de cultura. Os
conhecimentos racionais conglomeram, além das Ciências Exatas e Humanas, as
várias Filosofias, as Religiões e as Artes; e que há nessas duas últimas o
predomínio de conhecimentos empíricos, passados de geração a geração,
mesclando-se com a formação puramente racional, adquirida por um pequeno grupo.
Por estas razões, quando Bachelard apresenta a sua filosofia do repouso, e alerta para o fato de que ela não está
ligada ao sentido de repousante enquanto descanso, torna-se mais instigante
procurar descobrir o sentido exato de sua propedêutica, cuja temática procura
reelaborar a idéia de tempo.
O que seria então esta filosofia
do repouso? Como compreendê-la sem macular o sentido correto que o filósofo
quis transmitir?
Buscando nas idéias de Bachelard o apoio necessário para elucidar a
questão do tempo nas narrativas roseanas, desde Sagarana
à última fase, constato as dificuldades do percurso. Por intermédio da ótica
bachelardiana, passei a penetrar numa dimensão suprafísica, insolitíssima,
procurando uma brecha que pudesse
provar-me a possibilidade de esvaziamento
do tempo pleno, histórico, linear, vivido em excesso, em benefício de um tempo descontínuo, fervilhante de lacunas, ao longo da obra roseana. Bachelard
impôs-me tal incursão (caminhada tensa em um plano de pensamentos
transmutativos), já que o meu intúito era verdadeiramente entender suas cogitações
filosóficas. Comecei a pensar nesse repouso,
num primeiro momento, como algo que indica fixidez,
imobilidade, ausência de movimento, impulsionada pelo próprio Bachelard, que o
apresenta como esvaziamento do tempo,
como algo suspenso entre o antes e o depois.
Compreendi, posteriormente, numa segunda análise, que a idéia de fixidez, imobilidade não era de todo incorreta, mas não se ajustava à idéia
tradicional que se faz do verbo repousar,
que denota descanso total. O esvaziamento
da duração, ou seja, o repouso, como o quer Bachelard, seria assim uma
imobilidade, mas uma imobilidade fervilhante;
não ofereceria descanso, ao contrário, ofereceria momentos de tensão interna,
repletos de pensamentos questionadores. Assim, os momentos suspensos entre o
antes e o depois estariam fora do
tempo vital e dentro do tempo do
pensamento. O repouso, visto por este
ângulo, não seria o ato de descansar (adormecer a mente); seria, isto sim, a
imobilidade que antecede a futura ação do pensamento.
Por este prisma, refleti com maior intensidade no pensamento que surge
do repouso fervilhante. Inicialmente,
o repouso fervilhante — antes do pensamento propriamente dito — seria o
invólucro de questões amorfas ou díspares, que estariam contidas no íntimo do
consciente (da existência do ser) e que não seriam nada repousantes já que
instaurariam uma ativa tensão cerebral. Posteriormente, os pensamentos advindos
desse repouso fervilhante seriam novos, livres dos dogmas vitais, e
propiciariam novas etapas de duração. O tempo pensado ofereceria uma maior
liberdade de ação, de invenções, de criação, de concretizações.
Por esta doutrina do tempo, envolvi-me com as narrativas roseanas,
desde o seu início até a fase final, e constatei que elas se organizaram, ao
longo de sua produção, em quatro momentos, que se interpenetraram.
No primeiro momento, submetido ao tempo
contínuo (tempo da história, da experiência de vida), o Artista Literário
encontrou seu impulso narrativo na imaginação
formal (forma externa), na novidade da descoberta de um sertão muito
próximo de sua vida, mas não devidamente explorado no âmbito da literatura.
Desta descoberta da imaginação formal,
surgiram as narrativas de Sagarana, cujos
narradores (memorialistas) – ou um único narrador (não confundir narrador
memorialista, aquele que se vale das experiências do passado para compor seu
universo ficcional, com narrador de livros de memória, cuja proposta é
recuperar fielmente o passado) – se divertem com a variedade de imagens estáveis, intactas desde a
infância em suas lembranças.
Ainda submetida à Doutrina do
Tempo, sob a orientação bachelardiana, pude observar que, no segundo
momento, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, o Artista brasileiro e a sua obra estabelecem uma relação dialética
com o sertão, sob o comando exclusivo da criatividade ficcional, destacando os
contrários como amor e ódio, alegria e tristeza, dentro e fora, sanidade e
insanidade, realidade e irrealidade, luz e trevas e outros mais. Verifica-se a
partir da citada narrativa, uma clara mudança na forma de narrar: a consciência
do poder de criação ficcional e o abandono das velhas formas narrativas,
ligadas ao ato de reproduzir as experiências de vida dos ancestrais.
Reportando-me novamente à coletânea de narrativas de Sagarana e aproveitando-me de um excurso de Bachelard em sua Introdução à DIALÉTICA DA DURAÇÃO, quando
informa não ser sua intenção destacar a etapa pessoal do repouso (vida secreta
e sossegada, vida solitária que oferece prazer), passo a refletir o início da
obra roseana justamente a partir desta perspectiva. Isto, porque a primeira
fase ficcional do Artista realizou-se submetida aos conhecimentos
tradicionalmente recebidos, portanto fase
ligada ao impulso primeiro da imaginação ainda formal (formal no sentido de invólucro de conceitos pré-estabelecidos).
Bachelard, em seus estudos, não está preocupado com o tempo vital, pois sua temática se liga
ao tempo do pensamento. Ele não
pretende, em absoluto, "delinear (...) a perspectiva que conduz à vida
secreta e sossegada"117, perspectiva ligada ao tempo contínuo, histórico, vivido, repleto de
paixões; tempo submetido às exigências externas e sociais, às excitações que
atraem o homem para fora de si mesmo.
Se Bachelard restringe o aspecto pessoal da questão, revisitarei o
assunto, uma vez que o Artista Guimarães Rosa, em sua fase inicial, procura reproduzir ficcionalmente aspectos de
vida de um passado histórico, tendo como referencial o Sertão das Gerais,
localizado no Norte do Estado de Minas, fronteiriço ao Sertão da Caatinga,
localizado na região do Nordeste brasileiro.
O excurso de Bachelard, logo no início de suas propostas filosóficas,
restringindo o aspecto pessoal do repouso, abstendo-se de estudá-lo, alertou-me
quanto à questão acima exposta. Guimarães Rosa, inicialmente submetido ao repouso vital e à imaginação formal, invólucro de conceitos pré-estabelecidos,
sentiu-se envolvido pelas gratas lembranças da infância, rememorizou extasiado
e descansado (linearmente) seu passado histórico, repleto de matéria mítica.
Assim, observando as narrativas de Sagarana (as histórias do
burrinho pedrês, de Seu Lalino Salãtiel e outras) fixei-me na figura de Nhô
Augusto Matraga, já que o personagem representa nitidamente o momento de
mudança temporal do próprio Artista. O personagem Augusto Matraga (assim como o
narrador) representa também as mudanças mentais do escritor.
Por este aspecto, posso afirmar que todos sofrem mudanças nesta pequena
narrativa: o Artista, o Narrador, o Personagem, o Leitor e o próprio Mundo
Narrado. Nhô Augusto, principalmente, revela as nuances mentais do Criador
Literário: depois da queda (pessoal e
ideológica), fica recuperando-se dos ferimentos na casa dos pretos que o
salvaram, recordando a infância, as rezas da infância aprendidas com a avó
beata. Neste início, é justamente a vida
secreta e sossegada de Nhô Augusto, com todo seu conteúdo passional, que
motiva-me raciocinar, para depois alcançar os postulados centrais da filosofia
bachelardiana.
A queda ainda não representa um verdadeiro momento de mudança narrativa. O
Artista, submetido às imposições ideológicas do sertão, tenta recuperar o
personagem linearmente, remodelando-o sob o jugo de um novo poder: o poder
carismático.
Mas é nesse momento que Nhô Augusto se submete ao repouso vital, sob os
ditames da tradição religiosa, embalado pelas lembranças da infância,
permitindo assim um temporário descanso vital ao escritor, já prestes a se
submeter ao repouso fervilhante que
antecederá ao início de novas e singulares criações literárias, nascidas
exclusivamente do tempo do pensamento.
Enquanto Nhô Augusto depois da queda
reaparece renovado, saído das brasas de uma fé antiga ainda vivas
sob as cinzas da descrença, o narrador se prepara, orientado pelo demiúrgo,
para assumir uma nova postura narrativa, que romperá definitivamente com sua
antiga forma de narrar. Portanto, quem realmente resgata, momentaneamente, a
paz de espírito própria da infância é o Artista. Ele se recupera no plano da
continuidade temporal, recuperando também mais uma face ideológica de seu personagem:
a carismática. Por isto, repenso aqui o excurso de Gaston Bachelard, nas
páginas iniciais de sua propedêutica, rejeitando um envolvimento maior com o
repouso vital.
O repouso de Nhô Augusto na
casa dos pretos simboliza descanso mental,
vital, já que o ficcionista por
enquanto não irá modificar nada ao longo da narrativa, apenas promoverá um aparentemente novo direcionamento de
vida para o personagem, submetido ainda às leis do tempo contínuo. Em outras
palavras, ele simplesmente receberá um novo poder como porta-voz do poder
religioso.
Se o personagem, nesse intervalo, nesse repouso forçado, com todas as
conotações próprias da palavra repouso,
recupera a paz de espírito, é a partir daí que o repouso tenso, fervilhante,
do Artista, sentido no fundo do ser,
de acordo com Bachelard, começa a se insinuar, possibilitando novas
perspectivas de narração na obra roseana. O narrador informa que o personagem
passa a ter tempo para sarar e pensar, mas quem realmente se imobiliza tensamente, para produzir novos e
singulares pensamentos é o próprio Artista. O personagem, o narrador e o
Artista estão prestes a esvaziar o tempo
vivido (contínuo) em benefício de uma nova realidade, autenticamente
ficcional, repleta de lacunas
fervilhantes.
Enquanto o Artista se imobiliza tensamente, suspenso entre o antes e o
depois (o depois das durações bem feitas, promovedoras de pensamentos
inovadores), Nhô Augusto refaz momentaneamente,
como já foi dito, seu curso de vida, preso ainda ao elan vital, às paixões coletivas. O personagem, induzido
exclusivamente pelo escritor do século XX (atentar para a posição de submissão
do narrador, já que este, de ora em diante, não comandará mais a proposta de
narrativa tradicional), passa a ter tempo para meditar e esquecer sua antiga
personalidade de homem poderoso e destrutivo, adquirindo chances de se tornar
um novo homem, ainda vital, no caso, carismático.
O narrador apresenta um aparente
momento de transição. Aparentemente, o personagem procura esquecer o que foi antes, transformando-se num novo ser, criando dentro de si uma nova forma de se expressar no mundo. Aparentemente e
temporariamente, surge um novo Augusto, repleto de bons propósitos, ansiando
pelo céu, mas, na verdade, por ora,
nada mudou. O que aconteceu foi a repetição do continuísmo temporal, ou seja, a perda de um poder (poder social), gerando um
novo poder (poder carismático), exercido em nome da divindade.
Assim, por esta ótica, o início da narrativa (até a queda) e a segunda seqüência
(carismática), na qual observa-se a repetição do continuísmo temporal, com o
personagem adotando uma nova estratégia de vida, simbolizam as experiências de vida da comunidade do
sertão, material precioso, que fundamenta a vida de um povo. As
"experiências de vida", segundo Walter Benjamim118, encontram-se registradas na
memória, e é a memória do Artista (as lembranças do sertão) que insiste em
ressuscitar o personagem, em permanecer fiel às tradições, enfim, em ater-se ao
tempo pleno bergsoniano, confiante no elan
vital das ideologias sacralizadas.
As experiências de vida são
relatadas em sucessivas gerações. É inerente ao povo sertanejo o hábito de
contar estórias, passar para os jovens os atos heróicos dos corajosos, promover
normas de vida, ensinar, aconselhar, incentivar à geração futura o
desenvolvimento de feitos valorosos. Dentro desta ótica, o povo sertanejo
mantém ainda um vínculo permanente com os povos antigos e o Artista, herdeiro
do "ontem eterno"119, pôde se beneficiar literariamente desta sua ligação com o passado.
Os narradores das narrativas de Sagarana captam
essa matéria, replena de valores primitivos, subjacente numa região onde as
normas de vida continuam ainda
semelhantes às normas de vida das antigas comunidades. O narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, por
exemplo, se propõe a contar a vida heróica
de Augusto Esteves, herdeiro de uma dinastia de valentes, fundamentada na força
física, nas armas e na quantidade de alqueires de terra.
Weber, ao analisar o poder do Estado, diz:
O Estado é uma relação de homens dominando homens,
relação mantida por meio da violência legítima (isto é, considerada como
legítima). Para que o Estado exista, os dominados devem obedecer a autoridade
alegada pelos detentores do poder.120
Neste duplo aspecto, organizam-se as seqüências ficcionais de A hora e vez de
Augusto Matraga: a narrativa descompromissada e
informativa de um mundo imaculado e a narrativa em que estas experiências são
negadas por um outro mundo, abalado por sucessivas e inesperadas violências.
Graças a esta dualidade, este texto ficcional de Guimarães Rosa atinge
um plano universal de raras proporções: capta a incerteza social que envolve
coronéis, jagunços, habitantes de uma pequena comunidade dos sertões
brasileiros, e de repente se percebe que o espaço apresentado é o próprio
mundo, com suas contendas entre irmãos, guerras entre países vizinhos,
subordinação do mais fraco pelo poderoso.
Penso em Guimarães Rosa (quando
reinterpreto esta narrativa) como refletor da burguesia periférica
brasileira. Seu narrador é um personagem burguês. O ponto de vista de Rosa
mediatizado pelo narrador é um ponto de vista burguês. Vê-se, nas primeiras
seqüências, o porta-voz das experiências do Sertão, mas posteriormente passa a
representar uma classe social. Mesmo ao demonstrar uma criatividade ilimitada,
e isto se observa quando se liberta do jugo memorialista, deixando suas recordações do ambiente do sertão
aflorarem espontaneamente, nem por isto deixa de apresentar sua visão social de
uma localidade que representa suas raízes de vida. Se o seu narrador possui
sensibilidade para captar o lado primitivo desse lugar especial, possui também
consciência para observar que o mesmo se
encontra ameaçado por forças desencontradas e poderosas.
Weber questiona: "Por que os homens obedecem?" 121
Em primeiro lugar, afirma, há a autoridade do ontem eterno. Os subjugados se conformam com o domínio tradicional
exercido pelo Patriarca. Em princípio, Augusto Esteves se assemelha à
autoridade do ontem eterno, porque
continua uma tradição. Seu poder foi herdado do pai, o Coronel Afonsão das
Pindaíbas e do Saco-da-embira.
O narrador apresenta ao leitor uma pequena comunidade e o herói desta
comunidade, ambos em vias de se degradarem.
Eis o conflito do narrador: a degradação não está no espaço apreendido
(sua sensibilidade capta a pureza remanescente dos antigos núcleos primitivos);
a degradação se encontra em si próprio, porque, porta-voz que é do Artista,
conhece as várias faces/fases do Homem moderno.
Eis o conflito da narrativa: a memória (matéria épica) se contrapõe às
recordações de um mundo para sempre perdido (matéria romanesca). O que foi
transmitido por sucessivas gerações se encontra agora em vias de extinção. O
narrador se dá conta, submetido agora
ao repouso fervilhante do Artista, de
que esta comunidade existe apenas em suas recordações, em seus devaneios infinitos. O narrador é o
representante desta comunidade primitiva e ao mesmo tempo burguesa. Por isto, o
narrador é primitivo e burguês, porque se desenvolve na dialética daquele que o
idealizou (e que já alcançou o cogito(2), já verticalizando seus
pensamentos em direção ao cogito(3) da consciência pura), mas cujas
origens se ligam às comunidades fechadas do passado.
Assim como Nhô Augusto herdou a autoridade do ontem eterno, o narrador em questão herdou esta autoridade, como
duplo de um Sábio, que narra suas próprias experiências de vida como herdeiro
de um nome sertanejo. Estas experiências não são pessoais enquanto curso de
vida, são verdadeiras, são experiências transcendentais, irracionais, já
ancoradas num tempo suspenso entre o antes e o depois; experiências de quem se
coloca como porta-voz da burguesia
sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos do sertão, dominados por
Senhores-de-terra poderosos.
Nhô Augusto herdou um pequeno Império e nele reinou durante algum
tempo. Enquanto durou sua autoridade, foi a própria representação do poder
mítico-social.
O Artista, por intermédio de seu narrador, permite opacamente que se observe a realidade burguesa como invólucro das
representações do sertão. A narrativa procura destacar um espaço puro, mas há
nesse espaço personagens degradados: os bate-paus
de Nhô Augusto, por exemplo, são formas representativas, simbólicas, do mundo
burguês capitalista. Quando o personagem, depois da queda, sem poder, necessita dos serviços de seus antigos homens de
confiança, estes se recusam a obedecer-lhe, porque são membros do aparelho
ideológico do poder, do qual Nhô Augusto não mais dispõe. O personagem roseano,
nesta segunda seqüência, submetido à ótica burguesa, já não possuía o
reverenciado poder, já não possuía a qualidade de mando.
É lícito observar as representações das normas capitalistas em alguns
trechos da narrativa. Por exemplo:
Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro...
P'ra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que
nós não podemos escutar prosa de outro, que Seu Major disse que não quer.122
Os bate-paus fazem a
degradação do poder, do valor do dinheiro de quem o possui, mas não conseguem
corromper o espaço de referência do narrador, porque este é mediador do
Artista, brasileiro, indivíduo contraditório, originário de um mundo em que o
valor do dinheiro não tem valor, mas que, sobretudo, deseja ressaltar um
determinado sertão da infância (seus primeiros anos de vida). Mesmo sem estar
comprometido com os valores da modernidade, o Ficcionista sertanejo, nesta
narrativa de transição, ainda não alcançou completamente o patamar da
consciência pura, plano indiscutivelmente individual. Por isto, os bate-paus fazem a degradação do poder.
Por isto, o portador calado significa
que quem fala é o poder, pois só o poder tem poder de fala. Segundo Rosa,
"o dinheiro não adianta muito no sertão"123, mas é o poder no mundo
capitalista urbano. E o sertão roseano — ou brasileiro —, marcado por um
capitalismo periférico, ainda que possuindo matéria mítica em estado bruto,
está inserido, em sentido diacrônico e sincrônico, na sociedade brasileira
moderna.
A sociedade brasileira nasceu em princípios da Era Moderna, e mesmo
tendo-se desenvolvido em seu território processos antigos de vida comunitária,
como a agricultura, as leis econômicas da Europa comandaram as normas
econômicas e sociais de seu povo. Assim, entende-se o fato do narrador roseano,
nesta narrativa, refletir as contradições do Brasil, do capitalismo brasileiro,
periférico, de terceiro mundo; entende-se o porquê do Artista apresentar a sua
visão pessoal e social do mundo sertanejo, com tais características
comunitárias, e instintivamente deixar-se surpreender também como representante
da moderna sociedade capitalista. Por estas razões, ainda ligado à imaginação formal nas primeiras seqüências, ou seja,
aos aspectos exteriores do sertão, promove a queda do personagem, já idealizando um novo poder para ele, no
plano da religiosidade.
As transformações de Nhô Augusto, pelo ponto de vista sociológico, são
significantes dos vários estágios de vida estacionados no pequeno espaço do
sertão, sobrepondo-se infinitamente, imunes à ação do tempo; mas, pelo ponto de
vista da filosofia bachelardiana, representam a passagem do cogito(1)
para o cogito(2), quando o Artista e sua obra começam a desenvolver
uma relação dialética com o sertão.
Recuperando o poder de Nhô Augusto, dentro de outra categoria (a
carismática-religiosa), o narrador age ainda segundo a filosofia do pleno de Henri Bergson, tão questionada por Gaston
Bachelard. Assim, confirmando o que foi dito anteriormente, a narrativa A hora e vez de
Augusto Matraga retoma, nos trechos iniciais, a linearidade
própria das narrativas orais. Todas as narrativas lineares, simples, necessitam
de mobilidade, de transcursividade, para se realizarem plenamente. O narrador,
nas primeiras seqüências da narrativa, necessita de confirmações, de segurança,
para realçar seu personagem. Por isto, o passado vela o presente na casa dos
pretos. O passado de Nhô Augusto, com a avó, foi "profundo, rico e
pleno"124, e,
graças a esse passado, o narrador tem como recuperar a face religiosa do
personagem.
Mas não é o aspecto linear e metódico do tempo que motiva Bachelard a
dialetizar a temática da duração. Ele prefere aproveitar apenas "a época
feliz em que o homem se vê entregue a si mesmo, em que a reflexão se ocupa mais
de organizar a inação do que servir a exigências externas e sociais"125. Então, aqui, poderei
explorar o forçado repouso (vital) de Nhô Augusto, já fundamentando o início do
repouso fervilhante do Artista. Não
falarei, por ora, como direciona-me Bachelard, do Artista distanciado do mundo,
retirado do mundo, fortalecido pela solidão moral (e isto já se pré-anuncia a
partir da segunda seqüência da narrativa); falarei páginas adiante sobre o
Artista a partir da terceira seqüência, na qual se destaca o aspecto impessoal
do narrador (a partir daí seu indiscutível alter
ego), descobrindo as "zonas de repouso", as "razões de
repouso"126, sistematizando o próprio repouso e o repouso de seu personagem.
Por ora, o Artista, ainda preso ao aspecto metódico do tempo, organizou a
inação vital de seu personagem, planejou para ele uma nova forma de vida, conscientizou-o
do fracasso de sua vida passada, prenunciando a sua própria futura inação fervilhante. Mas, nessa segunda etapa da
narrativa, seu narrador ainda se
recupera linearmente, submetendo-se a exigências externas e sociais; e Nhô
Augusto passa a ter novamente, como personagem carismático, uma vida
estruturada, amparada pela personalidade. Nhô Augusto continua poderoso (poder
carismático amparado pela divindade), portanto estrutura-se ainda dentro do tempo linear. Mas o escritor
já se encontra no início da sistematização de seu próprio repouso fervilhante, ligado ao tempo
do pensamento, e assim começa a mudar o sentido da narrativa,
transformando, gradativamente, o narrador memorialista (terminologia de Walter
Benjamim) em narrador moderno.
Ao elaborar a face carismática do personagem, ainda sob as normas da narrativa linear, o narrador penetrou em uma
zona dogmática, que é a zona espiritual no sentido cristão, inserida na própria
pessoa por intermédio da iniciação religiosa ou moral. Quando um ser entra na
zona espiritual, sob a orientação cristã, deixa de ser pessoa e passa a fazer
parte de um grupo, porque a personalização é incompatível com a divindade comum
a todos os seres humanos, e assim assume uma postura de representante do divino
com poderes, mas sem autoridade pessoal. Nessa dimensão (espiritualidade
cristã) todos são iguais, não há individualidade. Não é sem razão que o
personagem passa a trabalhar para os pretos que o salvaram antes; ele está
submetido às leis lineares da ideologia cristã. A narrativa, destacando o herói carismático (segundo segmento),
ainda é linear, porque se encontra no plano da ideologia religiosa. O narrador
recupera as origens de vida do personagem, a sua religiosidade dos tempos de
criança.
Enquanto durou a sua condição de homem poderoso, no aspecto
mítico-social, Nhô Augusto — o rompente,
o matador —, induzido por seu
narrador memorialista, negou as coisas do espírito, no aspecto místico-cristão.
O seu cotidiano de Todo-Poderoso distraiu sua mente das diretrizes dogmáticas
da religião. Na segunda fase, antigas orientações espirituais vêm à tona,
transformando-o num homem religioso.
De acordo com Bachelard, só o espírito (e o espírito, segundo Bachelard, não possui o sentido dado pela
orientação cristã) promoveria o refluir do tempo vivido, permitindo novas
formas conceituais do ser; e a máxima forma do Ser no ser, sob o domínio do
conceito de divindade, é a carismática.
Assim, houve a separação, nas seqüências iniciais, entre vida e
espírito, já à moda bachelardiana. Na primeira seqüência, antes da queda, o personagem não possui
espiritualidade, porque, como o mesmo Bachelard reconhece, "o espírito
poderia chocar-se com a vida, opor-se a hábitos inveterados"127. E, como esclarece o
filósofo, quando isto acontece, ou seja, quando
há o choque entre matéria e espírito, e
o espírito sai vencedor, o espírito faz "o tempo refluir sobre si
mesmo", suscitando "renovações do ser, retornos a condições
iniciais"128. E é assim que Nhô Augusto, direcionado
ainda pelo narrador memorialista, retorna no tempo em busca do passado,
renovando seu ser, recuperando-se assim dos ferimentos. Retornando à
religiosidade, plantada na infância pela avó religiosa, o personagem
reconforta-se e recupera um novo tipo de poder. Nesta segunda seqüência, ouso
inferir que o espírito é o vencedor (orientado pelos dogmas cristãos).
Bachelard diz que é pela reflexão fervilhante
que o ser se liberta do elan vital. O
elan vital induz o indivíduo a se
afastar dos objetivos individuais, impulsiona-o no sentido de aceitar o já
instituído socialmente sem questionamentos.
A inteligência, entregue à sua função especulativa,
irá aparecer-nos como uma função que cria lazeres e os fortalece. A consciência
pura irá aparecer-nos como uma potência de espera e de guarda, como uma
liberdade e uma vontade de nada fazer.129
O narrador, nesta narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, está em vias de se liberar do elan
vital, e isto promove também a libertação do Artista. Ele contou as
peripécias de vida do personagem, refez sua trajetória existencial, mas a
partir da página 26 (op.cit.), o discurso narrativo muda. Há estranhamentos,
conflitos, e o personagem Nhô Augusto se transforma. Nesse momento narrativo,
aparece um personagem providencial, o Tião da Teresa, que permitirá ao narrador
mudanças discursivas, reveladoras de um novo estágio de pensamento do Artista
brasileiro. O narrador se apodera do discurso do personagem Tião, dando todas
as notícias do passado em apenas um parágrafo. Depois da entrada e retirada de
Tião (personagem ocasional), o narrador muda o enredo narrativo. O discurso
passa a ser complexo e estranho. Ao invés da narrativa concentrada em um tempo
linear, pleno, substancial, visualiza-se uma narrativa transcendental, já
propensa a algumas lacunas, características estas ligadas ao cogito(2),
ou seja, ao pensamento transmutativo.
Bachelard, no capítulo "As superposições temporais"130, mostra a diferença
entre um tempo múltiplo e relativo e um tempo de qualidade essencial e
instantânea, em outras palavras, procura diferenciar o tempo linear histórico
do tempo instantâneo, que se encontra suspenso entre o antes e o depois.
Para alcançar o entendimento dessa diferença, exercitou-se pela
meditação; procurou esvaziar o tempo
linear, retirando os excessos; ordenou os diversos planos de fenômenos
temporais. A partir da meditação, percebeu que "os fenômenos não duravam
todos do mesmo modo"; percebeu que a idéia de tempo único era uma idéia
resumida e imperfeita; percebeu a inexistência do sincronismo entre a passagem
das coisas e a fuga abstrata do tempo; percebeu "que era necessário
estudar os fenômenos temporais, cada qual segundo um ritmo apropriado, um ponto
de vista particular"131.
Observando as várias etapas do pensamento de Bachelard,
conscientizei-me de que o narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, amparado pelo pensamento renovado
do Artista Literário, sofreu o mesmo processo de raciocínio metafísico.
Enquanto durou o repouso vital de Nhô Augusto, o escritor pôde repousar também sob o predomínio do repouso fervilhante; pôde refletir sobre
vida e espírito; pôde buscar uma solução vertical para sua narrativa, que a
partir dali não teria como se manter plena e linear. Ele meditou, esvaziou o tempo vivido das durações
malfeitas e desenvolveu um novo raciocínio por meio do narrador. Por estas
razões, a narrativa prossegue, mas de forma diferente. Há estranhamentos,
insolidez, lacunas, total falta de sincronia na recuperação temporal. O
narrador roseano deixa seu personagem
(...) no escuro e sozinho (...), sem padre nenhum com
quem falar. E essa era a conseqüência de um estouro de boiada na vastidão do
planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruaz bravio,
combinada com a existência, neste mundo, do Tião da Teresa. E tudo foi bem
assim, porque tinha de ser, já que assim foi.132
A partir deste trecho, já se observa a duração como a quer Bachelard,
onde o tempo decorrido "fervilha de lacunas"133, tempo muito próximo das inconseqüências quânticas, e na qual não há
a continuidade do tempo histórico. Agora, a narrativa recupera os instantes fervilhantes, que produzem a
idéia de tempo, importando mais destacar o que se encontra entre o repouso e a
ação. O narrador sai da objetividade histórica, a história pessoal de Nhô
Augusto, Senhor absoluto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, Senhor absoluto do
Retiro do Morro Azul, além de ser Senhor absoluto do povoado do Murici, e se
enreda em seus próprios circunlóquios, ou seja, tenta trazer à luz o que
pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso
fervilhante. A narrativa passa a ser poética e ritmada; passa a ser construída
por um grupo de princípios relacionados entre si, mas que visa unicamente
detectar os instantes do pensamento dialetizado.
As recordações da infância no sertão, certamente marcaram o escritor
Guimarães Rosa. As histórias de Senhores-de-terra poderosos e valentes
encontraram ressonâncias em seu espírito, marcaram-no vivamente. Mas essas
recordações só foram realmente recuperadas mediante o repouso ligado ao tempo do
pensamento e dos posteriores questionamentos sobre o sertão. Só depois que seu
narrador se desembaraçou do tempo linear, "das falsas permanências, das
durações malfeitas"134, só depois que ele desorganizou
temporalmente sua narrativa, só depois que ele dissociou-se da aparente
realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu
curar-se do tempo sintagmático, questionando-o e assumindo no final (nas
narrativas finais) o cogito(3) da consciência individual.
Ele pensou, a partir de então, alucinatoriamente,
o sertão de sua infância; buscou a síntese do ser na essência do vir a ser;
sumariou, resumiu o sertão poeticamente e conseguiu chegar a um final
discursivo, distante temporalmente dos valores substanciais.
Depois do repouso, novos pensamentos surgiram e seu narrador se
libertou e libertou o personagem. A hora
e vez fervilhante do narrador chegou
(sob o aval dos pensamentos fervilhantes do Artista Literário do século XX),
levando-o a assumir definitivamente um pensamento narrativo distante dos
padrões temporais. O narrador se libertou dos arrebatamentos súbitos e
efêmeros, elans, que o faziam gastar
sua energia criativa em ações imitadas. Até o momento do repouso fervilhante do
Artista, o narrador deixou-se levar pelo impulso do que recebeu no passado, ou
seja, procurou transmitir as experiências de vida que caracterizam a matéria
épica. Nas primeiras seqüências, não tem intuição própria (ou não se permite
ter). Nessas duas primeiras seqüências, em que se destacam as fases/faces do poder
(primeiramente social e depois carismático), afasta-se do caminho individual,
para se colocar como porta-voz das experiências da burguesia sertaneja,
edificada nos pequenos vilarejos do sertão e dominada por senhores-de-terra
poderosos.
Por intermédio dos novos pensamentos de seu Criador, o narrador assume
o caminho individual, que leva à auto-reflexão, qualidade essencial para se
chegar ao objetivo da consciência singular, que caracteriza o indivíduo
inteligente. A inteligência é engrandecida por Bachelard e a inteligência é uma
qualidade no Artista Guimarães Rosa. Aqueles que se encontram no cogito(1)
não valorizam a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que
transformam alguns grupos sociais em uma só massa pensante. A função da inteligência
é questionar, argumentar, refletir sobre a validade da direção do impulso
massificador. Essa função especulativa, segundo Bachelard, "cria lazeres e
os fortalece"135, ou seja, cria prazeres (coisas boas), que fortalecem e aperfeiçoam
tal função. A consciência pura produz a capacidade de escolha lúcida, agencia o
livre-arbítrio.
A consciência pura, de acordo com Bachelard, se localiza no cogito(3)
da autêntica individualidade, acima dos cogitos um e dois e próxima do cogito(4),
cogito este já fora da linha vital. Seria, assim, o eu singular, consciente,
lucidamente equilibrado, repleto de força e capacidade de escolha. A
consciência pura pode ficar em estado de vigilância, pode esperar que alguma
coisa se manifeste, como por exemplo as intuições espirituais, pode esperar
alguma oportunidade para agir, pode aguardar e guardar (baú de memórias), pode
vigiar para que não entre em seu mundo interior (plano do eu profundo) qualquer
conhecimento nocivo. Esta consciência singular, por estar muito próxima do
tempo espiritual, estará sempre em estado de liberdade, porque não estará
totalmente submetida às pressões do mundo vital; não será suscetível ao
julgamento do mundo, às cobranças sociais, porque estará no plano que, para os
que não a entendem, aparecerá como uma vontade de nada fazer, já que não vai
fazer nada, enquanto não for o seu momento de bem fazer alguma coisa.
Foi a consciência argumentativa do cogito(2) que fez o
escritor de estórias sertanejas Guimarães Rosa mudar a face/fase de seu
narrador em A hora e vez de
Augusto
Matraga, colocando nele seus próprios objetivos
individuais de homem prestes a alcançar um plano elevado dentro dos vários
patamares que compõem o pensamento individual. Seu narrador deixou de agir
impulsionado pelo elan vital, apropriando-se
da inteligência de quem o criou e lhe deu forma ficcional. Assim, o narrador
assume os pensamentos dialetizados do Artista, questionando, argumentando,
refletindo sobre a direção que pretende dar à narrativa, direcionando seus
impulsos criadores. Por isto, Nhô Augusto, retornando ao Arraial do Murici,
subjugado à nova forma de pensar do Artista, pôde se encantar com as minúcias
da natureza, enquanto o narrador poetizava o sertão. O narrador, apropriando-se
da função especulativa do Artista, criou um mundo diferente, embalado pelo
prazer de estar ancorado numa dimensão quase
particular (cogito(2)), já propenso a se desligar das opiniões
externas. Esta última etapa da narrativa marca a nova decisão do Artista: de
ora em diante, ele criará um sertão muito particular, suspenso num momento onde
o antes não conta, e o que virá em termos históricos também não.
No âmbito da consciência argumentativa, intuiu o momento da
manifestação do narrador moderno, suplantando o narrador experiente das
comunidades antigas. Esperou, enquanto se posicionava como contador de estórias
sertanejas, a oportunidade de se libertar das pressões do mundo. No plano da
consciência argumentativa, depois da libertação, passa a vivenciar o impacto do
juízo
de descoberta. O sertão, nascido do eu questionador, estará assim
propenso às críticas da sociedade, mas promoverá também uma futura
conscientização de seus valores por esta mesma sociedade. Um espaço que nunca
foi apreciado pelas elites vem à luz sob a égide de uma consciência que já se
desprendeu do cogito(1) e que já não se incomoda mais em se dizer
sertaneja (rústica), mesmo que já tenha alcançado outros graus no plano das
exigências sociais.
Bachelard esclarece, quando teoriza sobre "as superposições
temporais"136, que os vários graus de instantes formam um acontecimento, e o
acontecimento é o fato, ou seja, está também contido no tempo absoluto. A qualidade desse tempo (tempo do
pensamento) é que é diferente, mesmo se manifestando no tempo vital,
considerado absoluto, mas, em verdade, já é um tempo vertical. É um tempo que
aparenta ser contínuo e, por isto, ainda dentro dos limites existenciais. Esse
tempo, entendido pela Física, cientificamente, ainda não foi suplantado, apesar
das tentativas filosóficas para se provar a existência de outras dimensões
paralelas de tempo, além dos limites vitais. As dimensões temporais, vistas em
suas formas aparentes, limitadas ao plano experimental, só podem realmente ser
captadas no plano de interseção entre
aparência e essência, plano este pouco avaliado, desenvolvendo-se assim
idéias verticais no nível filosófico. Este plano de interseção pode levar a um
entendimento vertical (o instante) ou a um entendimento relativo (correlações
de instantes), que estão contidos potencialmente no entendimento do todo (para
Bachelard, os três cogitos do pensamento estão dentro do plano vital).
O entendimento teórico-mental do tempo
relativo (um estágio acima do tempo absoluto) está baseado no estudo do
movimento, enquanto característica da continuidade das seqüências dos instantes
temporais. A qualidade no tempo relativo é mutável, de acordo com os pontos de
referência, por isto, ela é plural. Esses pontos de referência
correlacionam-se, conservam ordens objetivas de transcurso. Por estas razões,
os pontos de referência do tempo relativo têm continuidade, porque, mesmo sendo
constituídos de instantes destacados, que não guardam durações absolutas, como
no tempo contínuo, transitivo, esses mesmos instantes não são considerados, mas
sim o que os une. Assim, a seqüência pode ser quebrada, no tempo relativo
(correlações de instantes), se os pontos de vista não forem harmônicos. Isto
gera uma mudança, característica da descontinuidade, que evidencia a existência
de instantes separados, qualidade do instante vertical.
O instante vertical pertence
ao tempo
quântico, qualitativo, centrado na mudança de qualidade. Cada instante
desse tempo quântico é feito dentro de um contexto, que, ao ser observado
destacadamente, apresenta uma qualidade diferente.
Para a teoria da descontinuidade, cada movimento pode ter uma
qualidade, um sentimento, uma imagem, um pensamento que esteja predominando
naquele instante, diferente da qualidade do movimento anterior e diferente
também da qualidade registrada na teoria da continuidade.
Sob a orientação bergsoniana, os tempos, qualitativos, ocorrem
paralelamente/ simultaneamente. Em outras palavras, holisticamente
(organizadamente) um tempo está potencialmente contido no outro; a
preponderância de um vai depender do ponto de vista escolhido; porém, para
Bachelard, que não desmerece em absoluto
os pontos de vista de Bergson, apenas
rejeita a idéia da continuidade temporal, a intuição pura permite perceber
os tempos destacados, suspensos entre o antes e o depois, anulando
definitivamente as prováveis uniões entre eles. O filósofo, a partir da
intuição, obriga-se a criticar o ponto de vista holístico (organizado) do
tempo, admitindo um novo conceito de tempo. O tempo feito de acidentes de
Bachelard se deve às várias dimensões que existem, superpostas e simultâneas, e
que, por um ponto de vista macroscópico, podem parecer holísticas.
O tempo feito de acidentes está perto das inconseqüências quânticas,
mais do que das coerências racionais ou das consistências reais (tempo
absoluto) e mais do que das correlações de pontos harmônicos (tempo relativo),
porque a cada instante há uma mudança na qualidade do evento que não tem
conseqüência na qualidade do mesmo evento de um instante antes. Esse instante é
único, porque há uma integração instantânea e completa das imagens, pensamentos
e sentimentos, mas isso não quer dizer que um instante seja conseqüência do
anterior. O evento está fora do ser aparente, está no pensamento. No instante
em que o evento assume uma qualidade, o observador participa desta qualidade,
como se ele também tivesse esta qualidade, e de fato ele tem, porque, nesse
momento fervilhante, fica óbvio que
tudo faz parte de um instante irreproduzível. Por isto, Bachelard fala de intuição,
da captação da qualidade de um evento pela intuição, acrisolada no repouso
fervilhante. Não haveria tempo também para fazer essa captação pela
racionalização (esta só aparecerá depois do repouso
fervilhante, na forma de um novo pensamento); é difícil manter uma
meditação vital, porque esta dificuldade para meditar é que comprova o tempo
feito de acidentes, que muito se aproxima das inconseqüências quânticas, tão
voláteis, como foi dito antes.
Foi a dificuldade para a
meditação que
permitiu ao filósofo descobrir as incoerências
e as inconsistências do descontínuo
temporal. Por isto, procurou demonstrar que, reduzindo os tempos lineares a
tempos instantâneos, a única qualidade evidente, completa e eficaz seria a qualidade espiritual, captada pela
intuição. "O tempo espiritual
não seria uma simples abstração do tempo vital"137, seria a própria origem do tempo
vital. Valendo-se de um novo raciocínio transmutativo, depois do repouso
fervilhante, chega-se à conscientização desse tempo instantâneo. Esse tempo
instantâneo se liga ao vital pelas aquisições espirituais, já conceituadas,
obtidas antes do repouso ativo; mas também surge revigorado, graças à nova
formalização do novamente intuído e que se encontra à deriva, fora do plano
vital. O tempo do pensamento (instantes de tempo) é portanto superior ao tempo
vital, porque, por meio dele, há como comandar o repouso e a ação, além de ser
pelo pensamento que nascem as atitudes que revolucionam o mundo. Mas só a intuição do espiritual permite ver as
inconsistências do vital e do mental, dentro de um conjunto coerente.
O tempo espiritual atua em seu próprio plano instantâneo, mas, como ele
compõe os tempos vital e mental, a ação dele, num instante, se reflete nos
outros planos temporais, atuando profundamente nesses mesmos planos, que não
são os de seu próprio transcurso. O reflexo desse mundo espiritual, que só a intuição capta, pode ficar só
dentro de seu próprio plano ou dentro do plano das idéias abstratas, ou se
encaminhar para um plano mais exterior, que é o físico, que envolve os planos
emocional e mental. Assim, o Tempo tem várias dimensões, várias espessuras,
porque essas dimensões e espessuras tem de ver com os inúmeros aspectos do
Universo.
O aspecto contínuo (tempo absoluto físico) existe no plano
externo-físico, mas é, na verdade, a soma de muitos tempos independentes.
Assim, há lacunas que podem ser ou não percebidas e só serão captadas por um
raciocínio argumentador. Esse raciocínio, a cada instante, sofre modificações,
porque não se submete aos pensamentos já definidos. As novas idéias surgem
impulsionadas pelos questionamentos do repouso fervilhante, que são respondidos
no mesmo instante pela intuição, de acordo com a qualidade do questionamento.
Ainda no plano do transcurso das coisas (plano vital), desenvolve-se a
relatividade física (tempo da física), que, apesar do pluralismo temporal,
ainda "aceita a continuidade como característica evidente"138. Esse pluralismo é
muito diferente do que existe nas coincidências espirituais. No plano do
transcurso das coisas, há a necessidade do preenchimento das lacunas do tempo,
algo não necessário no plano do espírito. Alguns privilegiados, apesar de
viverem no plano físico, necessitam de uma expansão racional, de um
aprofundamento que os leve ao cogito(3), no qual se individualizam.
Este cogito é o invólucro da inteligência pura, no qual se originam as idéias
elevadas e singulares.
Quando Bachelard aborda a temática do sonho, dialetizando a duração, e
diz que, por intermédio dos sonhos, "é possível distinguir as influências
dos tempos superpostos" e que inclusive "sonhar é desengrenar os
tempos superpostos"139, penso que a coordenação ou não da sincronicidade dos eventos vai
depender da criatividade mental de cada um. O tempo, no sonho do amanhecer,
passa a ser totalmente o tempo vertical (suspenso entre o antes e o depois),
algo que independe do passado e não se preocupa com o futuro. Os tempos
superpostos, até o cogito(3), de qualquer maneira, só existem no
plano da realidade, portanto são vitais, dependentes também da capacidade de
organização da pessoa. O tempo espiritual (cogito(4)), tempo
completamente lacunar, se encontra fora da linha vital e é de difícil acesso,
segundo Bachelard. Por isto, posso reafirmar: os tempos do pensamento (cogitos
dois e três) fazem parte também da realidade.
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