quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.10.7 Uma perspectiva maravilhada

II.10.7  Uma perspectiva maravilhada

Observando e dialetizando o sertão em A hora e vez de Augusto Matraga, o Artista remexe a poeira da realidade sertaneja e se deslumbra com o que antevê. Propõe-se a seguir, em Grande Sertão: Veredas, a examinar e descrever o interior maravilhoso de uma comunidade primitiva, sob os ditames da perspectiva maravilhada, ainda ligada à perspectiva dialética. Por esta perspectiva há a ultrapassagem da crosta, e um sertão diferente do sertão da primeira fase surge, mas ainda conservando a influência da perspectiva anterior.

Diz Bachelard:

A terceira perspectiva de intimidade que queremos estudar é a que nos revela um interior maravilhoso, um interior esculpido e colorido com mais prodigalidade do que as mais belas flores. Tão logo a ganga é retirada, assim que o geodo é aberto, um mundo cristalino nos é revelado; a seção de um cristal bem polido revela flores, entrelaçamento, figuras. Não se para mais de sonhar. Essa escultura interna, esses desenhos íntimos em três dimensões, essas efígies e retratos estão ali como belezas adormecidas.281

Não se para mais de sonhar, porque, além de alcançar o estágio da perspectiva maravilhada, o sonhador está saindo da "meia-noite psíquica, onde (germinavam) virtudes de origem"282, e retornando ao plano dos sonhos aumentadores, dilatados e retos, da vigília do amanhecer. Encontra-se no espaço intermediário entre o sono profundo e o despertar, começando já a administrar seus sonhos grandiosos e coloridos, escrevendo as quinhentas e sessenta e três páginas de Grande Sertão: Veredas, num só fôlego.

(...) O centro possui forças novas. O ser era plástico, ei-lo agora plasmador. Em lugar de um espaço arredondado, eis agora um espaço com dimensões preferidas, direções desejadas, eixos de agressão. Como são jovens as mãos quando se fazem a si próprias promessas de ação, promessas de antes do amanhecer! O polegar toca o teclado dos outros quatro dedos. Uma argila de sonho responde a esse tato delicado. O espaço onírico próximo ao despertar possui feixes de retas finas; a mão que espera o despertar é um tufo de músculos, desejos e projetos.283

Nos domínios do devaneio do despertar (multiplicidade do cheio, do maravilhado), o Artista não se preocupa em recuperar sintagmaticamente as imagens reprodutoras do sertão (não há mais a seqüência lógica das imagens). Agora, o espaço ficcional é horizontal e vertical e "enche-se de objetos que provocam mais do que convidam"284. O longo narrar de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, representa o auge dessa fase. As forças oníricas se multiplicam, os sonhos se dilatam e o sertão do passado se transforma numa imensa travessia de vida, subordinado à memória, aos questionamentos e às recordações.

O narrador em primeira pessoa pede emprestado o olhar do Criador Literário. Este também foi, na infância, habitante daquele lugar de pura maravilha. Viu as árvores, as flores, os caminhos, o povo; conheceu o calor e o frio; partilhou dos hábitos; ouviu as estórias de honradez e bravura, mas adquiriu, posteriormente, outros valores. Ao desenvolver sua longa narrativa, sob a imposição da perspectiva maravilhada, descobre um outro sertão (já pré-anunciado em "São Marcos" e A hora e vez de Augusto Matraga), "obscuro e fechado"285, e, ao mesmo tempo, amplo e infinito. Sob a magia da perspectiva maravilhada (o que teoricamente é chamado de plano mítico-substancial) ele descobre o lado resplandescente dessa realidade que o faz sonhar, obrigando seu narrador a acompanhá-lo em seus devaneios luminosos.

Vejamos um trecho de A hora e vez de Augusto Matraga:

E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo muito bonito, como são todas as coisas, nos caminhos do sertão.

Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d'arco florido e de um solene pau-d'óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez, teve de escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão.286

O narrador aqui obriga seu personagem a apreciar o aspecto exterior do sertão. Submetido à perspectiva dialética, o Artista coloca o sertão da infância diante de seus olhos e, posteriormente, transporta-se, como num passe de mágica, para o interior desse sertão, miniaturizando-se, para acompanhar de perto o olhar do narrador, descobrindo, aos poucos, as riquezas desse temporariamente minúsculo espaço.

E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava estrada a fora, um pedaço antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga, ainda mais vermelho — e o tié-piranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu.287

De acordo com Bachelard, "todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema"288. O Artista, mediante seu narrador, até então captara apenas as belezas externas do sertão; agora, depara-se com a intimidade desse mesmo sertão. O minúsculo começa a transformar-se em imenso, sob as ordens dessa visita minuciosa do olhar atento.

Nesta fase de transição (fase criativa), o Artista brasileiro observou o lugar da infância poeticamente, questionadoramente, transmutativamente, e viu, nessas minúcias, belezas encantatórias. Esta fase propiciou-lhe o reconhecimento de um plano maravilhoso (no sentido técnico do termo), de "um interior esculpido e colorido com mais prodigalidade do que as mais belas flores"289, um mundo submetido à perspectiva maravilhada do narrador sertanejo, agora quase moderno.

Graças a essa fase embrionária, ou de transição, ou dialética (A hora e vez de Augusto Matraga), o escritor se predispõe a criar a sua obra maior: Grande Sertão: Veredas, obra de ficção, repleta de matéria mítica, e muitas vezes classificada erradamente como narrativa épica.

Caminhando com Nhô Augusto pelos caminhos do sertão, em A hora e vez de Augusto Matraga, espiando o buraco de tatu, escavado no barranco, ele, muito além do narrador, alcançou a possibilidade de remexer a fundo os segredos de sua matéria de análise, graças ao poder da imaginação dilatada.

Depois, não parou mais de sonhar, e, em Grande Sertão: Veredas, páginas e páginas vieram à tona (perspectiva maravilhada), registrando e recriando a grandeza de um mundo até então obscuro e fechado, modelado inicialmente pela técnica da oralidade. Remexendo a poeira desse mundo de formas vagas, intuiu o momento da criação e o abandono da repetição; percebeu que essas formas vagas necessitavam ser significadas.

A criação de Grande Sertão: Veredas é o momento do embasamento de suas novas perspectivas ficcionais. Nesta fase, Artista e narrador se unem intimamente, formando o aspecto singular do personagem. Por intermédio desta união, busca a profundidade do interior do sertão, remexe a superfície da terra, retira a ganga do geodo, e esculpe, com esta nova matéria, as várias figuras e formas, que compõem o espaço místico/mítico de suas lembranças, espaço saído dos impulsos estéticos dos sonhos mais ousados.

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. (...) Esses gerais são sem tamanho.290

Eis o momento de penetração na crosta de terra do sertão. Submetido à perspectiva maravilhada, o Artista, remexe a poeira da terra, ultrapassa a crosta e retira do fundo os segredos abrigados sob toneladas de pó.

Os gerais são sem tamanho, e, agora, também, são sem tamanho os sonhos sertanejos do Criador. O rio Urucuia passa a adquirir dimensões especiais, e seus reflexos proporcionam imagens grandiosas. A matéria água aqui recebe a gota de tinta, permitindo-lhe uma penetração maior em seus domínios. As paisagens diversas do sertão reproduzem dantescamente uma realidade várias vezes relembrada nos momentos de solidão.

Observadas deste prisma, em Grande Sertão: Veredas, convivem as duas perspectivas bachelardianas, aqui retomadas como bases teóricas: a dialética (iniciada com A hora e vez de Augusto Matraga) e a maravilhada.

O personagem-narrador Riobaldo, sujeitando-se à vontade da imaginação minuciosa do Artista (perspectiva dialética), insinua-se em toda parte, alcança todos os espaços, conhece todas as veredas do sertão; enrola-se em suas divagações, suspira pensativamente seu passado.

Travestido de Riobaldo, o Artista visita sua infância inesquecível, ancorada no plano das probabilidades infinitas; transita nos recantos desse espaço, ressuscita os jagunços, que povoaram seus sonhos infantis, seus medos e superstições. Valendo-se dessa visita, protege-se das angústias do mundo moderno, realidade palpável e angustiante, repleta de seres ansiosos e doentes.

O sertão, nesta narrativa, é simbolicamente o sussurro (o chamado), que o induz a penetrar as camadas profundas das confortantes recordações; é o abrigo entre as finas camadas de terra, ou entre os suaves reflexos das águas (o Verde, o Chico, o das Almas, o Urucuia, o rio maior, berço dos deuses sertanejos).

Aumentadas nos sonhos da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol.291

A dialética do pequeno e do grande se instala nas páginas de Grande Sertão: Veredas. A imaginação criadora transmuda o seu objeto de análise: as areias do Suçuarão (deserto) realçam o "estralal do sol"292 e a fome intensa, real, dos jagunços: "Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. (...) O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava"293; o rio das Almas se agigantava, caindo dos altos claros da montanha das Almas294; Essas lembranças de paisagens denunciam um sertão alargadamente mítico.

Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim. (...) Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas... Isto — no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão — depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. Ventos de não deixar se formar orvalho... Um punhado quente de vento, passante entre duas palmas de palmeira... Lembro, deslembro.295

O escritor brasileiro revira o pó da terra, suas substâncias, em seus aspectos grandes e pequenos. "Se sabes pôr para fora o que está dentro e para dentro o que está fora, diz um alquimista, és um mestre da obra"296. A terra do Meãomeão é quase azul, não da cor azul do céu, é um céu-azul vivoso, só visível nos sonhos ousados. Ele revira e limpa o sertão. Esse dito sertão é puro e limpo, mesmo circundado pelas impurezas da modernidade, porque nascido das imaculadas recordações da infância.

Foi um arraso de um tirotêi, p'ra cima do lugar Serra-Nova, distrito de Rio Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte político, com muitos soldados fardados no meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depois ficou capitão. Agüentamos hora mais hora, e já dávamos quase de cercados. (...) Trape por meu cavalo — que achei — pulei em meu assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava. (...) Uma duas ou três balas se cravaram na borraina da minha sela, perfuraram de arrancar quase muita a paina do encheio. (...) Baleado veio também o surrão que eu tinha nas costas, com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentou minha coxa, sem me ferir, o senhor veja: bala faz o que quer — se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos loucos... Burumbum!297

Tempos loucos, tempo épico, tempo escondido na poeira sertaneja. Os alimentos são perigosos: a mandioca doce convive com a mandioca brava, que pode matar; as águas dos rios, riachos e poços possuem qualidades díspares, pois podem matar a sede, no sentido salutar do verbo matar, mas também matar realmente o sedento, se estiverem contaminadas por minerais ou plantas nocivas à saúde. "Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas — que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo"298.

O apenas visível, que nos contos de Sagarana cerceava a imaginação literária, foi transposto. O pequeno sertão, reduto de retorno e busca permanentes, transformou-se, tornou-se um gigante, graças à imaginação maravilhada do sonhador. Agora, o sertão é apenas do Criador, porque cabe por inteiro em suas mãos demiúrgicas, dilatando-se infinitamente por intermédio de seu olhar. "O minúsculo é enorme! Para assegurar-se disso, basta ir em imaginação habitá-lo"299. As pequenas guerras entre jagunços alcançam proporções épicas, ampliadas pela perspectiva maravilhada. Realçados por esta perspectiva, os alimentos tornam-se perigosos, as águas dos rios, riachos e poços, venenosas. Os limites visíveis foram transpostos: o Artista capta a essência dos elementos e os diviniza.

O amor também é dialetizado, alcançando, agora, a perspectiva maravilhada:

Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. (...) Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim. (...) Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia — voava reto para ele.300

O personagem-narrador, alter ego do Artista, vive o avesso do amor; questiona este sentimento desconhecido que o incomoda e o enleva; sentimento possível nos domínios do mito.

Depois da mítica luta, em Serra-Nova, distrito de Rio Pardo, no ribeirão Traçadal, surge o mítico amor do jagunço Riobaldo por seu amigo Diadorim. "O verdadeiro amor é selvagem e triste; é uma palpitação a dois nas trevas..."301. O mundo mítico é o mundo das trevas. Diadorim, dos longos silêncios, dos olhos verdes misteriosos, é a essência do amor mitificado. Graças a esse amor, Riobaldo aprendeu a apreciar as belezas sem-dono do sertão: os rios, as cachoeiras; o cio da tigre preta na Serra do Tatu; a gargaragem de onça; a garoa rebrilhante da Serra dos Confins; a madrugada quando o céu embranquece; a garoa da Serra-da-Raizama, "onde até os pássaros calculam o giro da lua — se diz — e canguçu monstra pisa em volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro"302.

Dialetizando o sertão e revolvendo a terra mítica — Deus e diabo, masculino e feminino, bem e mal, juventude e velhice... —, o Artista se extasia com as descobertas de seu personagem, extasia-se também com o repensar de velhas ideologias. O amor, em Grande Sertão: Veredas, é maior, é selvagem e triste, porque Diadorim representa o próprio sertão, eternamente amado, morto em seu jazigo do passado, mas vivo nas recordações do amante; um amor não concretizado por exigências históricas.

Agora, já é possível compreender a ambigüidade de tal relacionamento: Diadorim é um jagunço, corajoso, imbatível, é Homem; o sertão é másculo. O personagem-narrador não aceita amar a um seu igual. No entanto, o Artista ama o sertão da infância, e o sertão da infância é por força ambíguo, é feminino e masculino, é aconchegante e terno, mas é também violento e guerreiro. E eis aqui a dialética do masculino/feminino: o sertão é Diadorim e Diadorim é o sertão. Sertão criado sob a égide do mito e do místico. Os anjos não têm sexo definido; as duas essências existem e se transmutam.

O Artista conhece os meandros de seu próprio sonho, as veredas do plano mágico e as exigências do mundo moderno. Ele pode amar o sertão; seu personagem Riobaldo Tatarana (seu indiscutível alter ego) pode amar o guerreiro Diadorim?

Seu personagem (másculo) não pode amar Diadorim, seu companheiro de lutas épicas, porque a sociedade moderna impõe preceitos de vida. A dialética masculino/feminino se faz presente, ao longo da narrativa, para salvar esse amor, concebido além dos limites da realidade ordinária: o lado feminino do sertão aparece em sua grandeza mítica, transformando o macho em fêmea; transformando Reinaldo/Diadorim em Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, "— que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor..."303.

O Artista se contagia com a sua descoberta: seu amor pelo sertão é uma palpitação a dois nas trevas, nas trevas do pensamento mítico e criador. O seu íntimo sertão é masculino e forte, e feminino e frágil, assim como Diadorim e Maria Deodorina, duas pessoas distintas numa só encarnação; a terceira pessoa (essência divina) é o Sertão. O Artista aprofunda-se neste ato de remexer a poeira da terra e penetrá-la, porque cada vez mais busca o seu passado sertanejo: mundo mítico, estranho, verde e andrógino; mundo de Riobaldo Tatarana e Diadorim, o jagunço de olhos verdes (o verde do sertão), estranhos e silenciosos (sertão estranho e silencioso), Diadorim, a dos silêncios.

Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível.304

Eis o chamado do sertão. Não é muito difícil, agora, compreender os estranhamentos de Diadorim, o jagunço de olhos verdes, diferentes e silenciosos. Aquela beleza verde. Para o sertanejo do passado é impossível possuir novamente o sertão, apesar do chamado que vem de distâncias temporais. Para o adulto citadino, nascido nas Gerais, o sertão da infância encontra-se distante no tempo, suspenso no plano vertical infinito, porque houve um momento de rejeição no passado; no momento, restam apenas as lembranças.

Aqui faz-se indispensável uma observação: o sertão do passado morre com Diadorim (o sertão em seu aspecto mítico-pagão), mas será ressuscitado na fase seguinte (Primeiras estórias, Estas estórias, até o final), pela perspectiva de intensidade substancial infinita, "onde o interior (do sertão) é conquistado no infinito da profundeza para o infinito dos tempos"305.

Falarei, posteriomente, em minha analise e interpretação da narrativa A terceira margem do rio, de um sertão intacto, vivo, irreal, depositado numa canoinha de nada, rio abaixo, rio acima, navegando ao sabor das recordações sem limites.

O Artista intui e antecipa este futuro momento narrativo: "as coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo da unha; e com efeito tudo é grátis quando sucede, no reles do momento"306. As coisas acontecem suspensas no instante entre o antes e o depois (propiciando uma terceira margem surreal), no vertical do tempo infinito e solitário. Riobaldo, por ora, copia o seu destino, porque seu Criador, no plano da pura maravilha, descobriu que Diadorim é o sertão e vice-versa, assim como Riobaldo, o cego Borromeu, e todos os outros personagens, inclusive o narrador.

Na meia-detença, ouvi um limpado de garganta. Virei para trás. Só era o cego Borromeu, que moveu os braços e as mãos; feio, feito negro que embala clavinote. Sem nem sei por que, mal que perguntei: — "Você é o sertão?!"307

No meio da batalha, Riobaldo descobre o lado feio do sertão: o cego Borromeu é feio e representa também o sertão (Diadorim é o lado bonito); o cego inspira medo e nojo, assim como as batalhas sangrentas entre jagunços. O cego não mata, mas os jagunços matam; o sertão mata e morre miticamente (seu aspecto pagão) nos sonhos do Artista, assim como o suave e destemido Diadorim, ou Maria Deodorina, também prestes a morrer num combate extraordinário, mas que ficará eternamente vivo no mundo da ficção.

Não ter de tolerar de ver assim o chamado: o sertão chama o Artista mediante as lembranças da infância. Seu interior maravilhoso, colorido, inspira-lhe férteis páginas. As belezas da natureza, os combates entre jagunços (matéria mítica), o Amor maior (matéria poético/ficcional), vêm à tona saídos da imaginação maravilhada. A terra do sertão (masculina e feminina) se amalgama aos rios (femininos e masculinos), entrelaçam-se.

E eis uma nova dialética: terra/masculina e rios/femininos e vice-versa. As águas são naturalmente femininas, simbolizando Amor, Maternidade, Encantamento, mas podem também transformar-se em matéria masculina de acordo com a visão de quem as vê. A terra e a água, amalgamadas miticamente, inspiram esta fase roseana, dialética e maravilhada, que levará o Artista, posteriormente, aos cogitos superiores de seus intelecto singular.


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