quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.9 - O Sonho do Artista: Elo de Ligação com o Cogito(4)

II.9 -  O Sonho do Artista: Elo de Ligação com o Cogito(4)

O sonho do personagem Nhô Augusto é a passagem do tempo horizontal para o tempo vertical, ambos reais, mas esta passagem, em verdade, está ligada ao Artista Literário, enquanto personalidade ativa do mundo vital. Sob o predomínio do ficcional e servindo-se do sonho do personagem, o Artista, direcionando o narrador, quebra o eixo temporal, linear, que o mantinha preso à História, encaminhando-se verticalmente em direção ao Desconhecido. O sonho do personagem é a libertação do Artista, porque quem comanda o sonho, dentro do espaço da criação, é o Artista. O sonho significa a liberdade criativa do Artista Literário. Nesse estado de espírito, recontando o sonho do Nhô Augusto valendo-se da fala do narrador, ele alcança o tempo instantâneo, lacunar, criando um espaço além da realidade histórica. O sonho prolonga seu instante de raciocínio, induzindo-o a uma sensação de parada no tempo e favorecendo a entrada do narrador no plano da criação, plano que, no caso, é seu território particular. Com a quebra do ritmo normal da narrativa, o próprio ficcionista (não o narrador) passou a desenvolver uma atividade nova, reformalizando pensamentos, reflexões, meditações, enfim, repensando verticalmente.

Bachelard discrimina três níveis de pensamento, nomeando-os como cogito(1), cogito(2) e cogito(3). O penso, logo existo cartesiano, de acordo com Bachelard, estaria ligado ao cogito(1), aspecto prático do pensamento. Ao colocar esta assertiva no cogito(1), Bachelard não pretende desmerecer as idéias de Descartes, apenas tem consciência de que o filósofo do século XVII ainda estava vivenciando o início de um novo ciclo na história do pensamento ocidental.

No plano do cogito(1), o sujeito não precisa pensar, simplesmente repete o que já foi pensado antes por alguém mais esclarecido. O cogito(1) estaria portanto ligado às três dimensões do mundo visível (altura, comprimento e largura), repetindo apenas a realidade. Na repetição, ainda segundo Bachelard, a realidade se mantém, não há quebras, só preenchimentos, que reforçam o linear. Há uma história seqüencial que permite segurança, estabilidade e acomodação.

Falando de uma segunda etapa do pensamento, ou o penso que penso, Bachelard caracteriza um segundo cogito, prevendo ou antecipando ou planejando um pensamento, que vai gerar uma ação inédita, ação esta que se está desenvolvendo e vai chegar a uma evidência posteriormente. O cogito(2) liga-se também ao tempo linear, mas já permite um avanço no tempo vertical, formalizando uma complexidade inicial de pensamento. Com o cogito(2), mesmo ligado às paixões, ao tempo linear, já se começa a verticalizar o pensamento com dúvidas e argumentações.

Imaginando que o plano horizontal esteja ligado à vivência, enquanto realidade, e o plano vertical, ligado à existência, enquanto formalização do ser, e descobrindo com Bachelard um terceiro estágio do pensamento, deduz-se que este pensamento superior concentraria por sua vez os três planos (o que Bachelard denomina como cogito ao cubo) e seria o limite do poder formalizante. Este terceiro estágio do pensamento, ou o penso que penso que penso, ou cogito(3), além de liberar o pensamento da descrição fenomênica, enquanto Doutrina específica, possibilita o indivíduo a nomear as "existências consecutivas"140, ligadas às superposições temporais, baseado apenas na intuição.

Bachelard esclarece que seu objetivo é esboçar suas idéias sobre o tempo vertical, desenvolvendo passo a passo o caminho que leva ao tempo infinito, tempo espiritual, o qual só pode ser captado pela intuição. Seu raciocínio se desenvolve com base em uma descrição intuitiva ao nível da inspiração, e, exercitando-a, descobre que esta descrição é perfeitamente adaptável ao tempo presente. Impulsionado por este exercício, procura tornar acessível a sabedoria do espiritual, adaptada ao tempo do pensamento.

Auxiliada por Bachelard, chego a um entendimento dos vários graus temporais inseridos na narrativa A hora e vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa.

Se, nas duas primeiras seqüências, o narrador roseano se ligou ao ato de pensar cronológico, rememorando o passado, imitando e dando continuidade ao passado, reforçando as experiências que lhe foram legadas pela sua condição de herdeiro de valores sertanejos, a partir das últimas seqüências da narrativa, ou melhor, especificamente a partir do sonho de Nhô Augusto141, passa a "pensar como alguém que pensa"142 o próprio destino da narrativa (e quem pensa é o Artista), introduzindo uma determinada vontade de Poder no âmbito da narração, definindo a sua própria pessoa, nova pessoa, ser demiúrgico, como único gerador de pensamentos e ações. Por isto, afirmei em minha PROPOSIÇÃO anterior (O NARRADOR TOMA A VEZ) que o narrador do século XX tomou a vez do personagem Augusto Matraga, porque houve uma brecha na estória, no momento em que ficcionista do século XX fez o narrador se aproximar do nível extra-linear da narrativa. No decurso da evolução de seu próprio pensamento, fez evoluir o narrador, transformou-o em um novo personagem, fazendo evoluir também o personagem Nhô Augusto, ambos refletores de sua ação pensante.

No início, repetindo o que já foi dito, Nhô Augusto destacou-se por sua personalidade substancial, e o narrador experiente, à moda tradicional, reproduziu uma "realidade embaraçada pelo peso das paixões e dos instintos, entregue ao impulso do tempo transitivo"143.

Posteriormente, o narrador, ainda experiente, ainda tradicional, mas propenso a uma mudança temporal, foi levado, intencionalmente ou não, a quebrar o tempo linear da história, fazendo o personagem se espiritualizar (sob o comando de dogmas religiosos), fazendo-o tomar consciência de uma nova forma de ser. Na verdade, quem se conscientiza de uma nova atividade formal, pensante, é o Artista do século XX, porque é ele que conduz o narrador, eleva-o ao expoente três, libera-o pelo pensamento complexo, concentra-o em si mesmo. Sob esta nova atitude pensante, o tempo vertical passa a predominar na narrativa, permitindo ao narrador (nesta última seqüência, já modificado) descrever a realidade sertaneja de Minas Gerais, baseando-se nos pensamentos do Artista sobre o sertão mineiro. O narrador do século XX (agora alter ego do Artista, agora distanciado dos valores da experiência comunitária) pensa ele mesmo, ou seja, o sertão é ele, o sertão é o que ele pensa intuitivamente.

O sertão, poetizado, em certos trechos da narrativa, emerge instantâneo, oferecendo ao analista ou ao intérprete uma visão completa e essencial de suas minúcias, visão esta que só poderá ser entendida, se houver comunhão anímica entre Artista e Leitor. O narrador roseano, nos trechos poetizados, imobiliza o sertão do passado, recordando transmutativamente, questionadoramente, dialeticamente, um tempo que ficou indelevelmente suspenso em seu mundo imaginário.

Entretanto, para que fique claro o meu pensamento sobre a narrativa assinalada, é preciso dizer que estou analisando o raciocínio de um narrador, induzido evidentemente pelo Artista Literário do século XX, situado em um plano de obra intermediário entre o antes e o depois. A hora e vez de Augusto Matraga faz parte de uma coletânea de contos (Sagarana) da primeira fase literária de Guimarães Rosa, ligada à narrativa linear, de contos reprodutores de experiências fenomênicas. Esta última narrativa de Sagarana, aqui verificada, antecede a obra máxima do autor, Grande Sertão: Veredas. Depois do narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, quase todos os narradores roseanos passaram a pensar de acordo com as características do cogito(3), sob a ação pensante do próprio Artista/Criador. Além de Grande Sertão: Veredas, as narrativas seguintes, como "A terceira margem do rio", “Darandina” e outros contos complexos de Guimarães Rosa, por exemplo, os contos de Tutaméia, enquadram-se perfeitamente às idéias de Bachelard, sobre o tempo ou instantes de tempo suspensos entre o antes e o depois.

No tempo vertical ocorre uma eclosão de formas que nada têm a ver com a sucessão de formas do tempo linear. Essa eclosão de formas do tempo vertical se encontra no limite do tempo vital contínuo (sempre pensando verticalmente), sobrepondo-se ao tempo vivido, participando também de todos os instantes. Esse tempo pode adquirir também muita qualidade por ser um acúmulo de forças, que se insere a seguir numa sucessão ordenada e que estaria no limiar de um outro plano (do espírito) fora do vital.

No que se refere ao fator subjetivo de formalização, a verdade do sujeito geralmente se encontra fora do alcance do conhecimento objetivo. Só subjetivamente se consegue a formalização, a definição, a concretização de uma idéia superior.

Bachelard, mesmo querendo alcançar o plano do cogito(4), mesmo querendo formalizar o descontínuo, alerta para o fato de que "a verdadeira região do repouso formal, onde ficaríamos contentes de nos manter"144 é o cogito(3). Isto quer dizer que apesar de estar acima do mundo fenomênico, pela inteligência, pela percepção intuitiva, pelo desprendimento das paixões, pelo desenvolvimento de seu novo ser, o filósofo opta pelo permanência consciente no referido cogito, primeiro estágio de evolução do indivíduo superior, mas que, mesmo assim, ainda é um estágio ligado à realidade física.



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