quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.11.4 - Além do cogito(3)

II.11.4 - Além do cogito(3)

Retomando a questão dos tempos superpostos, observa-se que a realidade temporal é formada pelos instantes ativo do pensamento. Nesses instantes ativos, o tempo é reduzido sob pressão. Esses instantes surgem logo depois do primeiro repouso dinamizado, suspensos entre dois vazios (néants) dinamizados, o que o precedeu e o posterior, o que possibilita, observando essa redução do tempo sob pressão ou compressão, a confirmação da existência dessas lacunas dinamizadas.

O indivíduo, segundo Bachelard, consciente desses instantes ativos, tem pleno acesso ao seu imaculado mundo particular. A consciência desses instantes intensos, energizados, isola-o completamente do convívio com os outros e, inclusive, isola-o de seu próprio eu social. A orientação de vida da realidade vital não condiz mais com o seu novo entendimento sobre a essência das coisas, dos homens e do tempo. Esse estado de inação impele-o a rejeitar as exigências externas e sociais, criando dentro de si uma nova forma de se expressar no mundo, já que terá de conviver obrigatoriamente com a realidade de todos os dias.

O indivíduo que alcançou tal estágio, mas que deseja uma convivência pacífica com a realidade vital, procura assim organizar esses momentos inativos, fervilhantes, planejando dar consistência real ao que foi intuído, após o esvaziamento do tempo vital. Nesse estágio intermediário entre o cogito(3), ligado à realidade vital (não confundir com tempo vital), e o cogito(4), ligado à realidade espiritual, intui o mundo amorfo da pura espiritualidade, o que em Ciência da Literatura denomina-se Mundo do Silêncio ou Mundo do Vazio Criador.

O plano intermediário entre o cogito(3) e o cogito(4) (Bachelard postula a idéia dos intervalos vazios: intervalo entre aparência e essência, entre causa e efeito, etc.) é o plano da autêntica solidão do Artista literário moderno, no momento da intuição de sua futura criação, favorecendo a elaboração de um discurso incompreensível, gerador de textos insólitos.

Penso na incursão de Guimarães Rosa nesse plano, quando procuro decifrar, por exemplo o discurso insólito do índio Iawaretê, personagem-narrador da narrativa "Meu tio, o Iawaretê" da coletânea Estas estórias. Penso na incursão de Guimarães Rosa nesse plano intermediário, entre o tempo do pensamento e o tempo espiritual, observando as outras narrativas de Estas estórias, como, por exemplo, as narrativas "A simples e exata estória do burrinho do comandante", "Os chapéus transeuntes", "A estória do homem do pinguelo", "Páramo" e "Retábulo de São Nunca". Penso também na incursão nesse plano, observando as minúsculas narrativas de Ave Palavra, que transmitem ao leitor a sua profunda sensibilidade, em seus últimos anos de vida.

O escritor dialetizou por vários ângulos a sua criação ao longo de suas fases criativas, transmutando-se e transmutando o seu próprio fazer literário. As descontinuidades de seu psiquismo, ou seja, as descontinuidades psíquicas de um eu inserido num caótico mundo de pós-guerra, geraram as descontinuidades de sua obra. As narrativas da última fase não lembram mais a fase do Artista extasiado diante da beleza e colorido do Sertão das Gerais, recuperados nas narrativas de Sagarana, como não lembram também a fase do Artista maravilhado, diante da descoberta de um sertão particular, repleto de matéria mítica e de sertanejos sensíveis e ao mesmo tempo ferozes. No encadeamento do psiquismo humano há lacunas, há descontinuidades, e é lícito avaliá-las no plano da criação literária.

Para Bachelard,

(...) se há continuidade, ela não existe nunca no plano em que um exame particular incide. Por exemplo, a "continuidade" na eficácia das motivações intelectuais não reside no plano intelectual; nós a supomos no plano das paixões, no plano dos instintos, no plano dos interesses. As concatenações psíquicas são muitas vezes hipóteses.390

A continuidade psíquica nesse caso não é algo simplesmente concedido ao ser; é muito mais uma obra construída ritmicamente pelo próprio ser ao longo do tempo.

Não seremos seres fortemente constituídos, vivendo num repouso bem assegurado, se não soubermos viver em nosso próprio ritmo, reencontrando, a nosso modo, o impulso de nossas origens à menor fadiga, ao menor desespero. É o que ilustra o belo mito de Siloé, que nos ensina a restituição corajosa, voluntária, pensada, de nossa alma de outrora.391

Em meio à vida desritmada das grandes cidades e do pós-guerra, o cidadão do mundo Guimarães Rosa, originário do sertão mineiro, reencontrou, na criação literária, o impulso que o fez retornar e retomar as suas origens. O Mito de Siloé (as fontes de Siloé) simbolizam o desejo humano de retornar a suas fontes primordiais. Em Isaías (Is 8, 5-6) e João (Jo 9, 1-41), há referências a este mito religioso, mito este que foi tão bem lembrado por Bachelard em seu ensaio "L'intuition de l'instant" em Étude sur la Siloë de Gaston Roupnel392.

No ensaio "L'intuition de l'instant", Bachelard renova as idéias de Gaston Roupnel, aceitando-as e confrontando-as com as idéias de Henri Bergson sobre o mesmo tema: a questão da duração (do tempo), questão esta sempre reativada desde que o Homem percebeu a sua capacidade de pensar.

Com base na afirmação de Roupnel de que não é o tempo que é uma realidade, é o instante, reexamina metafisicamente e dialeticamente as várias dimensões da duração, repensando cada estágio e determinando-lhe o seu devido valor.

O tempo seria então, ao contrário das várias postulações conhecidas sobre ele, uma realidade o mais restringida possível, acima do instante, e entre dois vazios. O tempo, pelo ponto de vista de Bachelard, reelaborado a partir das idéias de Einstein e Roupnel, desfaz-se e renasce intermitentemente, já que é conduzido de um instante a outro, em processo ascensional, engendrando sempre novas e diferentes durações. Por esta razão, Bachelard afirma que o instante gera a solidão, porque, dentro de sua importância metafísica, torna-se algo completamente despojado. Por esta razão, a força que determina a violência criadora do instante isola o indivíduo consciente do mundo social e de si mesmo, enquanto eu social, fazendo-o romper com o passado e impulsionando-o sempre para novas formas de vida.

A obra literária roseana passou por esse processo metafísico do tempo. Antes dela, e depois paralelamente a ela, o próprio Artista, enquanto ser social, também vivenciou essas gradações da duração. No capítulo "O Artista e suas máscaras", comentei suas transformações desde a infância numa região sertaneja até os mais altos graus de elevação sócio/intelectual que um homem pode aspirar na moderna sociedade.

Bachelard, reativando o pensamento de Roupnel, reafirma seus propósitos metafísicos sobre a questão do tempo.

Dès le seuil de sa méditation — et la méditation du temps est la tâche préliminaire à toute métaphysique — voilà donc le philosophe devant l'affirmation que le temps se présente comme l'instant solitaire, comme la conscience d'une solitude. Nous verrons, par la suite, comment se reformeront le fantôme du passé ou l'illusion de l'avenir; mais, avant tout, pour bien comprendre l'œuvre que nous expliquons, il faut se pénétrer de la totale égalité de l'instant présent et du réel. Ce qui est réel, comment échapperait-il à la marque de l'instant présent; mais reciproquement comment l'instant présent manquerait-il à s'empreindre sur le réel? Si mon être ne prend conscience de soi que dans l'instant présent comment ne pas voir que l'instant présent est le seul domaine où la réalité s'éprouve? Dussions-nous par la suite éliminer notre être, il faut en effet partir de nous-mêmes pour prouver l'être. Prenons donc d'abord notre pensée et nous allons la sentir sans cesse s'effacer avec l'instant qui passe, sans souvenir pour ce qui vient de nous quitter, sans espoir non plus, puisque sans conscience, pour ce que l'instant que vient nous livrera.393
No que tange a sua obra, o Ficcionista, em princípio, procurou organizar seus momentos fervilhantes, procurando dar consistência real a sua imensa intuição literária sobre o sertão da infância e adolescência. A consciência de sua solidão metafísica, em meio a uma elite intelectual, para ele, insatisfatória (um grupo que, segundo suas próprias palavras na Entrevista, só sabe transmitir bolas de papel, op.cit, p. 16), impulsiona-o à retomada literária dos valores primordiais de seu princípio de vida.

É nesse momento que o Artista retoma intuitivamente e simbolicamente o mito de Siloé, ou seja, retrocede literariamente ao seu passado (imaculado pelo poder das recordações) para beber na fonte pura de suas origens. Em sua clausura temporal, procura reformar o fantasma do passado, para iludir o porvir.

O tempo do pensamento o enclausurou no ápice de sua evolução mental e o induziu a reformar o sertão do passado, para livrá-lo do temor do futuro.

Eis as palavras de Riobaldo, seu personagem em Grande Sertão: Veredas:

Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora — digo por mim — o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o resto de curraleiro e de crioulo. Sempre, nos gerais, é à pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra. Mas, então, para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias e reumatismos, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo.394

O personagem revela o estado de espírito do Artista, naquela fase, e o seu desejo de recuperar um passado epicamente sem nódoa. O seu momento histórico/social, por ocasião da criação de Grande Sertão: Veredas, não era um momento reconfortante, já que a humanidade tentava se recuperar de uma recente guerra mundial. O Artista, enquanto cidadão do mundo, participara ativamente do conflito, em sua função de diplomata na fervilhante Europa. Portanto, o seu desejo de recuperar literariamente o sertão imaculado da infância era um desejo mais que justificado. Mais justificada ainda é a sua adesão intuitiva ao elemento fogo, como marca de mudança narrativa, já que o fogo está intimamente ligado à idéia de guerra. O Artista percebe que as guerras sempre existiram e que o sertão, miticamente reconstruído, não deixava de ser ele também um reduto de pura violência. Riobaldo e os jagunços simbolizam o instinto guerreiro da humanidade; o amor, que o envolveu e o fez idolatrar o guerreiro Diadorim, simboliza o desejo de paz, inerente ao homem que pensa e direciona seus próprios instintos.

O mito de Siloé se faz presente implicitamente em Grande Sertão: Veredas, porque o Artista psiquicamente traumatizado pelas seqüelas do pós-guerra, já que vivenciou como diplomata os problemas da Segunda Guerra Mundial, quis retomar literariamente a felicidade da infância. Essa infância repleta de mitos e superstições também fôra povoada de estórias de guerreiros-jagunços, seres que aterrorizavam o mundo infantil nas longas noites sertanejas ou mesmo nas cidadezinhas interioranas, iluminadas pelo fogo acolhedor do fogão a lenha; seres relembrados pelos mais velhos e experientes, ansiosos para demonstrarem aos jovens o espírito heróico daqueles que no passado sustentaram o futuro.

O Artista, cansado e desiludido com o Mundo, procurou um novo ritmo de vida que o fizesse reencontrar as suas origens e o restituísse à felicidade de outrora. O elemento fogo iluminou as lembranças e as recordações das fontes e rios do sertão do passado, fazendo-o conscientizar-se de sua antiga tranqüilidade. O elemento fogo restituiu-lhe os instantes claros do passado épico de seus ancestrais, mas obrigou-o posteriormente a elaborar um novo ritmo de vida. Ele viu-se intimado, pela sua própria consciência singular, a romper com o aspecto heróico de seu passado. Depois de quinhentas e sessenta e três páginas escritas sob o comando da perspectiva maravilhada, páginas de retorno e retomada de valores puros, foi necessário romper (matar) literariamente com o passado, para que ele renascesse diferente nas páginas das narrativas seguintes. O longo narrar do épico e ao mesmo tempo lírico jagunço Riobaldo e a morte do singular guerreiro Diadorim representam esse instante de lúcida conscientização.

Cette connaissance de l'instant créateur, où la trouverons-nous plus sûrement que dans le jaillissement de notre conscience? N'est-ce pas là que l'élan vital est le plus actif? Pourquoi essayer de revenir à quelque puissance sourde et enfouie qui a manqué plus ou moins son propre élan, qui ne l'a pas achevé, qui ne l'a pas même continué, alors que se déroulent sous nos yeux dans le présent actif, les mille accidents de notre propre culture, les mille tentatives de nous renouveler et de nous créer? Revenons donc au point de départ idéaliste, acceptons de pendre pour champ d'expérience notre propre esprit dans son effort de connaissance. La connaissance est par excellence une œvre temporelle.395

De acordo com Bachelard, o conhecimento do instante criador (conhecimento ligado ao tempo do pensamento) impede o risco de se deixar levar no jorro das emoções desencontradas. Nesse plano estreito e dinamizado não há espaço para o elan vital. Depois desse conhecimento, por que então retomar uma potência surda e derrotada, destruída em seu próprio elan, que não acaba, que nem mesmo continua, mas que explana sob nossos olhos, no presente ativo, os mil acidentes de nossa própria cultura, as mil tentativas de renovarmo-nos e de renovarmos as nossas crenças? Depois desse conhecimento, num esforço de conscientização, aceitamos pensar o espírito no plano temporal, já que o conhecimento é por excelência uma obra temporal.

Essayons alors de détacher notre esprit des liens de la chair des prisons matérielles. Dès qu'on le libère, et dans la proportion où on le libère, on s'aperçoit qu'il reçoit mille incidents, que la ligne de son rêve se brise en mille segments suspendus à mille sommets. L'esprit, dans son œvre de connaissance, se présente comme une file d'instants nettement séparés.396

Em outras palavras, conforme o texto, o filósofo reconhece que é inerente ao ser humano separar a matéria do espírito, mas, quando há a liberação do espírito, e na dimensão exata onde se o liberou, é possível perceber que este plano intermediário revela mil acidentes, e que a linha divisória se quebra em mil segmentos todos importantes. O espírito (matéria amorfa), no tempo do pensamento, se présente comme une file d'instants nettement séparés. O psicólogo, por exemplo, observando os vazios existenciais, escreve uma história, como qualquer historiador, tecendo aí as ligações da duração. Em cada íntimo, no qual a gratuidade (o vazio) possui um sentido claro, não se agarra mais a causalidade, doadora de uma poderosíssima força à duração, e isto torna-se indiretamente um problema, ou seja, procurar buscar as causas dos vazios em um espírito onde nascem apenas idéias.

Bachelard revela ainda a sua total adesão aos pensamentos roupnelianos, ao rejeitar explicitamente os pensamentos de Bergson, e esta rejeição se deve ao fato de que falta a Bergson, ao lado de suas idéias sobre a duração, "concéder une réalitè décisive à l'instant"397.

Na verdade, não foi exatamente uma rejeição, já que ele convivera com as idéias bergsonianas por algum tempo, antes de seu envolvimento com as revolucionárias idéias de Gaston Roupnel sobre o instante dinamizado. O que o levou a reconsiderar a questão e a tomar o partido de Roupnel foi uma severa reflexão a que se impôs, buscando inclusive nas idéias de Einstein, sobre a relatividade do tempo, o apoio necessário para recolocar a questão.

A crítica einsteiniana da duração objetiva despertou-o de seus sonhos dogmáticos, abalando sua confiança na tese bergsoniana e induzindo-o a uma nova tomada de posição. Ele conscientizou-se que a crítica einsteiniana destrói o absoluto que dura (essência do pensamento bergsoniano sobre a duração), mas resguarda o absoluto que é, ou seja, o absoluto do instante. Para ele, o que Einstein nomeia como realidade é apenas o lapso do tempo, o longo do tempo. Em outras palavras, no método einsteiniano de medir o tempo, este longo se revela relativo.

Para Bachelard, no que concerne a Bergson, este apenas sublinha o todo da sucessão temporal em inúteis jogos de cálculo, valendo-se de uma teoria da duração submetida à causa imediata da consciência.

Inspirado nas intuições roupnelianas, ele descobre como, aos poucos, se constrói a duração com os instantes inativos (instantes sem duração), o que prova o caráter metafísico primordial do instante, ao mesmo tempo que prova, também, o caráter indireto e mediador da duração.

Por esse aspecto, a criação literária de Guimarães Rosa se modifica, depois do impacto maravilhado de Grande Sertão: Veredas. As narrativas seguintes, a partir de Primeiras estórias, revelam as marcas metafísicas dos instantes singulares, que decidiram as mudanças de seu novo discurso criador. Submetido a um novo impacto (o impacto da consciência do infinito), o Artista inicia a sua escalada dimensional, nos domínios do cogito(3), ansiando ultrapassar os limites de uma criação literária ainda presa aos valores vitais. Os valores do espírito se insinuam em sua última fase criadora. O além do terceiro cogito acena-lhe como uma promessa de transgressão vital. E, no entanto, o Artista tem consciência da impossibilidade de uma total adesão criadora ao que se encontra fora das imposições sócio-vitais.

A narrativa "Meu tio, o Iawaretê" revela dramaticamente esta impossibilidade. Ali se detecta a vontade do Artista de eliminar o narrador (os narradores, experientes e/ou modernos?); detecta-se o desejo do criador literário, já quase nos limites que separam o plano vital do plano espiritual, em destruir sua mais notável criatura ficcional, o narrador das experiências primordiais.

A simbologia de um narrador-índio é fundamental para que o escritor complete o seu ciclo de criação literária. Urge portanto eliminar do espaço da criação todos os narradores, sejam eles experientes ou modernos; urge instalar-se nesse espaço o poder do próprio demiurgo, senhor de vida e morte, inclusive da vida e morte de seu narrador. A narrativa "Meu tio, o Iawaretê" realiza esse desejo do Artista do sertão. Ele mata no final seu personagem, o índio Iawaretê, assim como já eliminara em Grande Sertão: Veredas a possibilidade de continuação de relatos romanescos sertanejos submetidos à forte contribuição da matéria épica. De ora em diante, a conscientização dos instantes reveladores de pensamentos grandiosos se fará cada vez mais presente em seus escritos até o final.

De ora em diante, até o final, sua inteligência, já próxima a ultrapassar o cogito(3), não se submeterá mais aos valores vitais. O Artista ultrapassou os limites de suas forças criadoras, abrindo um novo caminho em direção ao não-dito. Sua literatura agora apenas revelará fragmentos de vida, já que é impossível mostrar o silêncio sem a contribuição especular da realidade. Seus pensamentos agora não ditam regras de vida, mas a vida também não impõe preceitos e ideologias em seus escritos. Cada palavra, cada frase, cada parágrafo de Estas estórias, Tutaméia e algumas narrativas de Ave, palavra parecem flutuar num plano longínquo da realidade sensível. Essa idéia de flutuação seria aqui, nesta reflexão teórico-crítica, uma nomeação muito frágil daquilo que apreende-se como a força do instante dinamizado. As horas de pensamentos inéditos e fecundos, que nasceram depois de seus inúmeros repousos fervilhantes, deixaram um rastro luminoso em suas narrativas finais. E, no entanto, essas narrativas finais, narrativas ímpares, são muito pouco avaliadas pelos críticos literários que se ocupam em analisar a criação ficcional de João Guimarães Rosa. É preciso destacar o poder sobrenatural que se evola dessas últimas narrativas. É preciso que se avalie a extensão da caminhada literária do Artista até o último estágio do pensamento humano, ainda aceito como normal no âmbito das diretrizes de vida ditas normais. O Artista Guimarães Rosa iludiu os preceitos sociais de normalidade, transportando para o espaço da criação literária os pensamentos descontínuos do cogito(3), já a um passo de romper com os valores vitais, em direção ao plano espiritual de difícil acesso. Ele iludiu os preceitos sociais de normalidade, porque soube equilibrar, sob o patrocínio da literatura, este plano de autêntica solidão, no qual se viu inserido, com o plano da realidade vital, no qual o indivíduo deve se sujeitar às normas sócio-existenciais. Assim, a anormalidade do indivíduo solitário, multifacetado, se instala no discurso literário, e o homem Guimarães Rosa será para sempre reverenciado como um dos maiores criadores da literatura brasileira.

II.11.5 - Conclusão: Recriando o passado


O Artista sertanejo sonhou com as qualidades íntimas do sertão, mas essas qualidades saíram de seu próprio interior. Ao invés de penetrar a crosta da terra sertaneja, como um trabalhador braçal, revolveu-a, remexeu-a, ludicamente, para reabastecer-se de lembranças, para induzir-se a um profundo resgate de sua própria essência. O desejo de purificar miticamente o sertão da infância, no início da retomada ficcional de seu rosto primitivo, significou a vontade de limpar a sua casa interior dos miasmas, que impregnam a vida moderna.

A obra totalizadora (suas várias fases) revela um espírito altamente transmutativo: as dialéticas bem e mal, amor e ódio, alegria e tristeza, independentes das várias perspectivas ficcionais que permearam suas etapas criativas, compõem os fragmentos de seu próprio ser, dilacerado cotidianamente pelas imposições da sociedade moderna.

O Artista ficcional, de acordo com a sua visão muito particular do sertão, lutou contra a extinção de um mundo primitivo. Sobressaíram-se nessa luta suas angústias existenciais, por intermédio dos longos questionamentos de seus narradores; seus sobressaltos íntimos, mediante as descobertas cotidianas de seus personagens infantis, de Primeiras estórias; o sentimento de culpa do filho do sertão, consciente do desaparecimento do Pai nas águas eternais das recordações. É lícito reafirmar que a valorização desse mundo primitivo alcançou um êxito extraordinário, e este êxito só aconteceu porque o escritor valorizou a sua condição de homem sertanejo. O médico, nas narrativas iniciais, o diplomata, nas narrativas finais de Estas estórias (suas faces de homem citadino), só aparecem para ressaltar os valores imaginários do sertão do passado. A narrativa "A simples e exata estória do burrinho do comandante", do corpus de Estas estórias, é uma revalorização indireta desse passado. Mesmo que aparentemente o mundo marítimo do Comandante se mostre diferente e distanciado do sertão das primeiras narrativas, seu discurso evoca uma quase semelhança com o discurso de Riobaldo. Não há ligação aparente entre os dois mundos, mas a lembrança de "um burrinho mignon, a quem o pêlo crespo, as breves patas delgadas e as orelhas de enfeite, faziam pessoa de terreiro e brinquedo, indígena na poesia"398, propicia o sutil contraponto.

No intuito de finalizar esta minha propedêutica, imponho-me a realçar o fato de que as narrativas assinaladas sempre continuarão a impulsionar novas buscas teóricas; mas, por enquanto, ancorada em minhas reflexões transmutativas, penso que este burrinho do Comandante, um náufrago do mar que enfrenta inúmeros perigos, repete a coragem e a inteligência daquele outro burrinho pedrês, sertanejo, iniciador das etapas evolutivas da incomum criação literária de Guimarães Rosa.






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