quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.10.6 O colorido do sertão roseano

II.10.6  O colorido do sertão roseano

Na obra roseana, a cor que predomina é o verde: o verde das matas, do reflexo dos rios, das asas dos periquitinhos e papagaios, que povoam o universo de Sagarana (primeira fase); o verde dos olhos de Diadorim, malsinando para sempre a vida de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas; os “reflexos de verdes metais em azul-e-preto" do peru de "As margens da alegria"263; "a cobra-verde, atravessando a estrada"264, o verde finalizando a primeira estória de Primeiras estórias:

Voava, porém, a luzinha verde vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria.265

Nos sonhos do Artista brasileiro, o verde possui um valor ativo; é a cor da substância sertaneja e a que melhor a expressa. Todo o seu imaginário-em-aberto converge para o verde dos amplos espaços do sertão: o verde da terra e o verde da água. Assim, terra revestida de verde, onde surgem outras cores apenas para destacarem suas variações mentais. Por exemplo, desejando mostrar o poder do mal, no sertão, ele destaca a cor preta: "O diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças"266.

O verde valoriza as lembranças e recordações do Artista, nato de um mundo onde os espaços carecem de fechos:

E eis Riobaldo:

Tempos loucos... Burumbum! o cavalo se ajoelhou em queda, morto quiçá, e eu já caindo para diante, abraçado em folhagens grossas, ramada de cipós, que me balançavam e espetavam, feito eu estava pendurado em teião de aranha... Aonde? Atravessei aquilo vida toda... De medo em ânsia, rompi por rasgar com meu corpo aquele mato, fui, sei lá — e me despenquei mundo abaixo, rolava para o oco de um grotão fechado de moitas, sempre me agarrava — rolava mesmo assim: depois — depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelas que não era tirado sangue, era um amasso verde, nos dedos, de folhas vivas que puxei e masgalhei... Pousei no capim do fundo.267

Era um amasso verde de folhas vivas: o verde recebe e valoriza as outras cores que o iluminam, o verde é vivo: convivem com o verde do Sertão os altos claros das Almas (Serra); a tigre preta da Serra do Tatu; a garoa rebrilhante da madrugada na Serra dos Confins; a ciganinha roxa e a nhiíca amarelinha (flores); a terra quase azul do Meãomeão. "O rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno"268, mas há também o rio Verde e o Urucuia.

O sertão roseano é em verdade um arco-íris infinito sobre um fundo miticamente verde (os lugares estão aí em si para confirmar): nele cabem

Claráguas, fontes, sombreado e sol. Fazenda Boi-Preto, dum Eleutério Lopes — mais antes do campo. Azulado, rumo a rumo com o Queimadão. Aí foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado; o anis enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, redobra logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco. De qualquer pano de mato, de de-entre quase encostar de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboletas. Como não se viu, aqui se vê.269

Independente de todas as outras cores, o verde é a cor das matas, das marcas de um valor profundo, sinalizando um passado de vivências verdadeiras. A ciganinha roxa, a nhiíca amarelinha, o campo azulado não são apenas nomes que se aplicam indistintamente, são antes "forças substanciais para uma imaginação ativista"270.

O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio e põe no colo.271

O vento é verde. As palmas dos buritis verdes balançando materializam o elemento volátil. Eis aqui a intuição do processo de encaminhamento para o quarto cogito, plano da espiritualidade, buscando o mimético mundo do silêncio criador. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio e põe no colo. Eis aqui uma proposta de reelaboração do texto escrito: o leitor atingindo os espaços abertos do não-dito, sob a proteção do vento verde. Muito em breve, o Artista irá desmaterializar o sertão.

Por ora, o narrador-personagem, por intermédio das lembranças do Artista, olha a natureza, remexe a poeira mítica da terra, penetra-a, participa dela, integra-a, envolvido intimamente pela sua essência vital. Antes, em Sagarana, início de sua trajetória ficcional, ele apenas admirara o sertão.

A admiração é a forma primária e ardente do conhecimento que enaltece o seu objeto, que o valoriza. Um valor, no primeiro encontro, não se avalia: admira-se.272

O primeiro encontro ficcional com o sertão em Sagarana inspirou-lhe admiração. Agora, em Grande Sertão: Veredas, utilizando-se de comparações, confrontações psíquicas, o Artista participa da substancialidade de sua matéria ficcional, ancorada temporariamente na base de sua futura imaginação sem limites.

O verde é a substância eleita em meio a diversas cores que compõem o sertão; simboliza a intimidade do sertanejo com a sua matéria literária, encarna as qualidades de um mundo imaculado.

As verdades da imaginação, segundo Bachelard, não são aceitas pelo crítico clássico. Nós preferimos "seguir a imaginação em sua encarnação das qualidades"273, procurando surpreender o momento da desmaterialização do sertão.

Sonhando a intimidade do sertão, em Grande Sertão: Veredas, o sonhador sertanejo procura valorizar a cor de certas substâncias: o verde da terra e o verde da água, ou seja, os reflexos da mata nas superfícies dos rios.

Quem sonha com a matéria beneficia-se de uma espécie de enraizamento pivotante de suas impressões. A materialidade defronta-se então com a idealidade das impressões, o devaneio objetiva-se por uma espécie de obrigação externa e interna. Nasce uma espécie de materialismo fascinante que pode deixar lembranças imperecíveis em uma alma.274

Relembrando o sertão, ele descobre todas as veredas coloridas que o compõem, caminhos insólitos que pairam em suas lembranças. A sólida terra sertaneja adquire qualidades ideais; os rios, lagoas, e os minúsculos fios de água transformam-se em matéria indefinida, sob a idealidade das impressões do adulto.

O Artista mitifica o passado em Grande Sertão: Veredas, purifica-o ficcionalmente, porque necessita realçar um espaço puro nas lembranças, envolvido e quase tragado pelas impurezas do mundo moderno. Ele lava ficcionalmente o passado do sertão, porque, pelo prisma da realidade, já não o vê puro e imaculado.

Eis aqui alguns trechos comprovadores:

Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? tem seus motivos. Agora — digo por mim — o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. (...)

Para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias e reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo.275

Apesar do aparente despoder, o personagem-narrador teima em apresentar ao doutor a face imaculada do sertão, refletora de um intenso colorido:

Lhe mostrar os altos claros das Almas; rio despenha de lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. (...) A garoa rebrilhante da dos Confins, madrugada quando o céu embranquece. (...) no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão — depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. ventos de não se deixar formar orvalho (...) O senhor vá lá, verá. (...) Claráguas, fontes, sombreado e sol (...) De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboleta. Como não se viu, aqui se vê. Porque nos gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular — cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme.276

O Artista recupera um sertão limpo através das lembranças; dignifica os altos claros das Almas (Serra das Almas), a garoa rebrilhante do amanhecer, o ar seco e limpo, produtor de grandes e belas borboletas; apresenta ao leitor a sua íntima relação com o passado.

O sertão brasileiro (principalmente a extensão que engloba as Gerais) nunca foi puro, pois que produto da Era Moderna; mas o Dom Quixote sertanejo o visualiza assim. A verdadeira realidade do sertão é conflituosa: os vaqueiros sempre se sentiram deslocados no comércio (cidade, burgo, povoado, arraial ou ajuntamento de casas); o sertão brasileiro sempre foi contaminado pelo mundo moderno, seja por meio dos espertos negociantes portugueses ou dos mascates turcos e suas quinquilharias.

Nesta fase de transição, ainda submetido ao elemento fogo e à perspectiva maravilhada, o Artista recupera a pureza mítica do sertão: o fogo-princípio do início de tudo, o fogo que propiciou a Riobaldo a amar o jagunço Diadorim.

E estávamos conversando, perto do rego — bicame de velha fazenda, onde o agrião dá flor. Desse lusfús, ia escurecendo. Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam, (...)

Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. (...) Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria a boca; mas era um delém que me tirava para ele — o irremediável extenso da vida.

E eu — mal de não me consentir em nenhum afirmar das docementes coisas que são feias — eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação, ranço de desgosto: eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que coração meu podia mais. O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende. Perto de muita água, tudo é feliz.

Se eu não tivesse passado por um lugar, uma mulher, a combinação daquela mulher acender a fogueira, eu nunca mais, nesta vida, tinha topado com o Menino?277

Bachelard, relendo as idéias dos alquimistas do passado, esclarece que eles consideravam como enganadora a aparência da realidade278. Isto porque eles lidavam com os segredos das substâncias. O Criador Literário, conhecedor dos segredos das substâncias de seu sertão ficcional, descobre algo parecido em relação à realidade intuída por ele. A realidade enganadora induz a um jagunço a amar um outro jagunço e, ao mesmo tempo, rejeitá-lo, porque o valente tem plena consciência de seus instintos viris. E, mesmo assim, a realidade engana o personagem ficcional por longo tempo. A realidade enganadora que transformou Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins em Reinaldo, ou Diadorim, o jagunço matador. A realidade engana, mas o coração não.

"Diadorim acendeu um foguinho. (...) Diadorim no relume das brasas": eis aqui o fogo-princípio do coração, crepitante e substancial, exprimindo a pureza do amor diferente; um simples foguinho revelando o verdadeiro amor, o verdadeiro fogo da paixão, denunciando o segredo de um coração que não se engana. No entanto, apesar do fogo transformador, a matéria eleita, no princípio do fazer ficcional do Artista, está presente e se renova, porque perto de muita água, tudo é feliz. A água será sempre a matéria essencial (futuramente aliada ao ar), muito além da substancialidade do sertão. A água (e sua profundidade) permitindo a ultrapassagem do visível.

Nesta longa narrativa, o fogo está presente, como elemento de transmutação: fogo-de-amor, de-guerra, de crenças e descrenças; fogo mítico, enquanto revolvimento da terra, miticamente sonhada; fogo mítico transmitindo um calor diferente. Os outros elementos (terra, água e ar) não mostrariam jamais o calor de dois olhares que se cruzam, ou o embate violento de uma luta entre jagunços. As lembranças estão em sua fase acalorada, múltipla, diegética e mimética, sob a força dinâmica do elemento que queima, em suas fases de ternas chamas e grossas labaredas.

O fogo mítico (fogo-princípio) de A hora e vez de Augusto Matraga, fogo punidor e religioso, deu início a essa transformação, para o fogo das paixões maiores. E eis a dialética de transição: o pequeno e o grande fogo. Em Grande Sertão: Veredas, o fogo transcende os limites do pequeno, alcançando a exuberante grandeza do íntimo fogo do amor e das grandes causas; fogo que abala e queima uma alma que sonha no plano das emoções maiores. Só o fogo para avivar o colorido intenso do sertão. Só o fogo para acalorar toda a existência de Riobaldo, submetendo-o ao pacto com o diabo (pacto inexistente), e ao amor pecaminoso por Diadorim. Só o fogo para fazê-lo lutar como um endemoniado na juventude, e aquietá-lo na velhice, brasas de fogueira, quase extintas.

As labaredas dos combates iluminam a narrativa, e as armas-de-fogo propiciam agitação permanente. O sertão, neste momento, é sonhado com ardor, não é o suave calor das pequenas chamas das lembranças que o faz grandioso.

Segundo Bachelard, essas nuanças do fogo estão ligadas a dois tipos de imaginação: a introvertida e a extrovertida. O calor interioriza-se e o fogo se expande, "é o calor que merece o nome de terceira dimensão, conforme a metafísica sonhada de um Schelling"279. O verde do sertão e todas as outras cores recebem a expansão do fogo que caracteriza a imaginação extrovertida. A imaginação extrovertida, nesta fase, necessita de grandes e coloridas imagens, propiciadoras de transcendência dos limites estreitos do sertão real; precisa mostrar o lado exuberante de uma realidade singela. A terra e a água, amalgamadas, não possuem esse poder. Urge portanto aceitar a interferência de um elemento mais poderoso, que reinvente o âmago do sertão, para que o Artista possa descobri-lo em sua grandeza.

Visita o quadro de tua vida, cada tábua de teu quarto, a cada canto, e enrodilha-te para alojar-te na última e mais íntima das espirais de tua concha de caracol.280

Grande Sertão: Veredas é o retorno questionador e maravilhado ao sertão da infância. Para que este espaço seja visível em suas minúcias, impõe-se estar iluminado. O personagem-narrador é dono de seu narrar, por que a matéria enfocada está inteira nas mãos do Artista.

Sob a aparência de Riobaldo, ele se une intimamente ao sertão de origem. Assim o amor por Diadorim (jagunço de olhos verdes), o amor pelo verde (sertão?) exala um incômodo apelo sexual. O devaneio diante do fogo é um devaneio sexual. O verde sertão é misterioso; Diadorim é misterioso, velado, incompreensivelmente feminino. A aparência é masculina, seja do sertão ou do personagem, mas o interior é feminino, aconchegante.

Em sua escalada aos cogitos superiores, para alojar-se, páginas adiante, na última e mais íntima das espirais de sua própria concha de caracol, o Artista por ora necessita percorrer, revolver e colorir as camadas íntimas da terra do sertão e sentir a temperatura morna e andrógina de seus rios.

Grande Sertão: Veredas, graças a esse fogo sexualizado, une a matéria ficcional ao espírito de seu criador, denuncia o vício e a virtude como componentes da alma. A ambigüidade se manifesta na narrativa e se faz necessária para que o Artista, posteriormente, possa romper a crosta da terra sertaneja e descobrir seus subterrâneos desconhecidos, veredas desconhecidas, rios desconhecidos, cores desconhecidas. O Artista da terra e água amalgamadas necessitou do fogo sexualizado para unir-se amorosamente a sua criação literária, e modelá-la mediante um discurso diferente, pela perspectiva maravilhada.

Assim, o devaneio do fogo reúne, numa longa narrativa, as minúcias da natureza (as florezinhas coloridas, os verdes arbustos, os animais, os combates à moda épica, a cavalaria medieval, o pícaro renascentista – face popular dos quinhentos/seiscentos, simbolizada na figura do cego), o ficcional e o poético.

As imagens do sertão aqui são coloridas e excessivas, porque o criador misturou alquimicamente elementos diversos, sem descaracterizá-los, cada um a seu tempo. Inclusive, o ar (ligado por ora à imaginação evasiva e aberta) contribui para engrandecer o sertão nesta fase: o diabo na rua, no meio do redemunho. Mas é o fogo, inegavelmente, o elemento que ilumina a narrativa, engrandecendo as batalhas e santificando o Amor. Aqui não há união entre matérias diferentes. O fogo não se acasala com nenhum outro elemento, manifestando-se e extinguindo-se solitariamente. Se penso em um acasalamento, nesta narrativa, será ainda a junção da água e da terra, matérias formadoras do sertão propriamente dito.


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