Na obra roseana, a cor que predomina é o verde: o verde das matas, do
reflexo dos rios, das asas dos periquitinhos e papagaios, que povoam o universo
de Sagarana (primeira fase); o
verde dos olhos de Diadorim, malsinando para
sempre a vida de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas;
os “reflexos de verdes metais em azul-e-preto" do peru de "As margens
da alegria"263; "a cobra-verde, atravessando a estrada"264, o verde
finalizando a primeira estória de Primeiras estórias:
Voava, porém, a luzinha verde vindo mesmo da mata, o
primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um
instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria.265
Nos sonhos do Artista brasileiro, o verde possui um valor ativo; é a
cor da substância sertaneja e a que melhor a expressa. Todo o seu
imaginário-em-aberto converge para o verde dos amplos espaços do sertão: o
verde da terra e o verde da água. Assim, terra revestida de verde, onde surgem
outras cores apenas para destacarem suas variações mentais. Por exemplo,
desejando mostrar o poder do mal, no sertão, ele destaca a cor preta: "O
diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até:
nas crianças"266.
O verde valoriza as lembranças e recordações do Artista, nato de um
mundo onde os espaços carecem de fechos:
E eis Riobaldo:
Tempos loucos... Burumbum! o cavalo se ajoelhou em
queda, morto quiçá, e eu já caindo para diante, abraçado em folhagens grossas,
ramada de cipós, que me balançavam e espetavam, feito eu estava pendurado em
teião de aranha... Aonde? Atravessei aquilo vida toda... De medo em ânsia,
rompi por rasgar com meu corpo aquele mato, fui, sei lá — e me despenquei mundo
abaixo, rolava para o oco de um grotão fechado de moitas, sempre me agarrava —
rolava mesmo assim: depois — depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelas que
não era tirado sangue, era um amasso verde, nos dedos, de folhas vivas que
puxei e masgalhei... Pousei no capim do fundo.267
Era um amasso verde de folhas
vivas: o verde recebe e valoriza as outras cores que o
iluminam, o verde é vivo: convivem com o verde do Sertão os altos claros das
Almas (Serra); a tigre preta da Serra do Tatu; a garoa rebrilhante da madrugada
na Serra dos Confins; a ciganinha roxa e a nhiíca amarelinha (flores); a terra
quase azul do Meãomeão. "O rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno"268, mas há também o rio
Verde e o Urucuia.
O sertão roseano é em verdade um arco-íris infinito sobre um fundo
miticamente verde (os lugares estão aí em
si para confirmar): nele cabem
Claráguas, fontes, sombreado e sol. Fazenda Boi-Preto,
dum Eleutério Lopes — mais antes do campo. Azulado, rumo a rumo com o
Queimadão. Aí foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho.
Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado; o
anis enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele
capim-marmelada é muito restível, redobra logo na brotação, tão verde-mar,
filho do menor chuvisco. De qualquer pano de mato, de de-entre quase encostar
de duas folhas, saíam em giro as todas as cores de borboletas. Como não se viu,
aqui se vê.269
Independente de todas as outras cores, o verde é a cor das matas, das
marcas de um valor profundo, sinalizando um passado de vivências verdadeiras. A
ciganinha roxa, a nhiíca amarelinha, o campo azulado não são apenas nomes que
se aplicam indistintamente, são antes "forças substanciais para uma
imaginação ativista"270.
O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis
todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí,
no intervalo, o senhor pega o silêncio e põe no colo.271
O vento é verde. As palmas dos buritis verdes balançando materializam o elemento
volátil. Eis aqui a intuição do processo de encaminhamento para o quarto
cogito, plano da espiritualidade, buscando o mimético mundo do silêncio
criador. Aí, no intervalo, o senhor pega
o silêncio e põe no colo. Eis aqui uma proposta de reelaboração do texto
escrito: o leitor atingindo os espaços abertos do não-dito, sob a proteção do vento verde. Muito em breve, o Artista
irá desmaterializar o sertão.
Por ora, o narrador-personagem, por intermédio das lembranças do
Artista, olha a natureza, remexe a poeira mítica da terra, penetra-a, participa
dela, integra-a, envolvido intimamente pela sua essência vital. Antes, em Sagarana, início de sua trajetória ficcional, ele apenas admirara o sertão.
A admiração é a forma primária e ardente do
conhecimento que enaltece o seu objeto, que o valoriza. Um valor, no primeiro
encontro, não se avalia: admira-se.272
O primeiro encontro ficcional com o sertão em Sagarana inspirou-lhe admiração. Agora, em Grande Sertão: Veredas, utilizando-se de comparações, confrontações psíquicas, o Artista
participa da substancialidade de sua matéria ficcional, ancorada
temporariamente na base de sua futura imaginação sem limites.
O verde é a substância eleita em meio a diversas cores que compõem o
sertão; simboliza a intimidade do sertanejo com a sua matéria literária,
encarna as qualidades de um mundo imaculado.
As verdades da imaginação, segundo Bachelard, não são aceitas pelo
crítico clássico. Nós preferimos "seguir a imaginação em sua encarnação
das qualidades"273, procurando surpreender o momento da desmaterialização do sertão.
Sonhando a intimidade do sertão, em Grande Sertão: Veredas, o sonhador sertanejo procura valorizar a cor de certas substâncias: o
verde da terra e o verde da água, ou seja, os reflexos da mata nas superfícies
dos rios.
Quem sonha com a matéria beneficia-se de uma espécie
de enraizamento pivotante de suas impressões. A materialidade defronta-se então
com a idealidade das impressões, o devaneio objetiva-se por uma espécie de
obrigação externa e interna. Nasce uma espécie de materialismo fascinante que
pode deixar lembranças imperecíveis em uma alma.274
Relembrando o sertão, ele descobre todas as veredas coloridas que o
compõem, caminhos insólitos que pairam em suas lembranças. A sólida terra
sertaneja adquire qualidades ideais; os rios, lagoas, e os minúsculos fios de
água transformam-se em matéria indefinida, sob a idealidade das impressões do
adulto.
O Artista mitifica o passado em Grande Sertão: Veredas, purifica-o ficcionalmente, porque necessita realçar um espaço puro
nas lembranças, envolvido e quase tragado pelas impurezas do mundo moderno. Ele
lava ficcionalmente o passado do
sertão, porque, pelo prisma da realidade, já não o vê puro e imaculado.
Eis aqui alguns trechos comprovadores:
Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar
de territórios, para sortimento de conferir o que existe? tem seus motivos.
Agora — digo por mim — o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes
demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada.
Os bandos bons de valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí
pena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no comércio vestidos de
roupa inteira de couro, acham que traje de gibão é feio e capiau. (...)
Para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o
senhor entestar viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias e
reumatismo, aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo.275
Apesar do aparente despoder,
o personagem-narrador teima em apresentar ao doutor a face imaculada do sertão,
refletora de um intenso colorido:
Lhe mostrar os altos claros das Almas; rio despenha de
lá, num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. (...) A garoa
rebrilhante da dos Confins, madrugada quando o céu embranquece. (...) no
Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio!
Lá geia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão —
depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul
vivoso, igual um ovo de macuco. ventos de não se deixar formar orvalho (...) O
senhor vá lá, verá. (...) Claráguas, fontes, sombreado e sol (...) De qualquer
pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saíam em giro as
todas as cores de borboleta. Como não se viu, aqui se vê. Porque nos gerais, a
mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular — cá cresce,
vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do
limpo, desta luz enorme.276
O Artista recupera um sertão limpo através das lembranças; dignifica os
altos claros das Almas (Serra das Almas), a garoa rebrilhante do amanhecer, o
ar seco e limpo, produtor de grandes e belas borboletas; apresenta ao leitor a sua íntima relação com o passado.
O sertão brasileiro (principalmente a extensão que engloba as Gerais)
nunca foi puro, pois que produto da Era Moderna; mas o Dom Quixote sertanejo o
visualiza assim. A verdadeira realidade do sertão é conflituosa: os vaqueiros
sempre se sentiram deslocados no comércio (cidade, burgo, povoado, arraial ou
ajuntamento de casas); o sertão brasileiro sempre foi contaminado pelo mundo
moderno, seja por meio dos espertos negociantes portugueses ou dos mascates turcos e suas quinquilharias.
Nesta fase de transição, ainda submetido ao elemento fogo e à
perspectiva maravilhada, o Artista recupera a pureza mítica do sertão: o
fogo-princípio do início de tudo, o fogo que propiciou a Riobaldo a amar o
jagunço Diadorim.
E estávamos conversando, perto do rego — bicame de
velha fazenda, onde o agrião dá flor. Desse lusfús, ia escurecendo. Diadorim
acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas passavam muitas, por
entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam, (...)
Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me
alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se
hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas
quisquilhas da natureza. (...) Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das
brasas. Quase que a gente não abria a boca; mas era um delém que me tirava para
ele — o irremediável extenso da vida.
E eu — mal de não me consentir em nenhum afirmar das
docementes coisas que são feias — eu me esquecia de tudo, num espairecer de
contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação, ranço de desgosto:
eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que coração meu podia mais. O
corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende. Perto de muita
água, tudo é feliz.
Se eu não tivesse passado por um lugar, uma mulher, a
combinação daquela mulher acender a fogueira, eu nunca mais, nesta vida, tinha
topado com o Menino?277
Bachelard, relendo as idéias dos alquimistas do passado, esclarece que
eles consideravam como enganadora a aparência da realidade278. Isto porque eles lidavam com os
segredos das substâncias. O Criador
Literário, conhecedor dos segredos das substâncias de seu sertão ficcional,
descobre algo parecido em relação à realidade intuída por ele. A realidade
enganadora induz a um jagunço a amar um outro jagunço e, ao mesmo tempo,
rejeitá-lo, porque o valente tem
plena consciência de seus instintos viris. E, mesmo assim, a realidade engana o
personagem ficcional por longo tempo. A realidade enganadora que transformou
Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins em Reinaldo, ou Diadorim, o jagunço
matador. A realidade engana, mas o coração não.
"Diadorim acendeu um
foguinho. (...) Diadorim no relume das brasas": eis aqui o fogo-princípio
do coração, crepitante e substancial, exprimindo a pureza do amor diferente; um
simples foguinho revelando o verdadeiro amor, o verdadeiro fogo da paixão,
denunciando o segredo de um coração que não se engana. No entanto, apesar do
fogo transformador, a matéria eleita, no princípio do fazer ficcional do
Artista, está presente e se renova, porque perto
de muita água, tudo é feliz. A água será sempre a matéria essencial
(futuramente aliada ao ar), muito além da substancialidade do sertão. A água (e
sua profundidade) permitindo a ultrapassagem do visível.
Nesta longa narrativa, o fogo está presente, como elemento de
transmutação: fogo-de-amor, de-guerra, de crenças e descrenças; fogo mítico,
enquanto revolvimento da terra, miticamente sonhada; fogo mítico transmitindo
um calor diferente. Os outros elementos (terra, água e ar) não mostrariam
jamais o calor de dois olhares que se cruzam, ou o embate violento de uma luta
entre jagunços. As lembranças estão em sua fase acalorada, múltipla, diegética
e mimética, sob a força dinâmica do elemento que queima, em suas fases de
ternas chamas e grossas labaredas.
O fogo mítico (fogo-princípio) de A hora e vez de Augusto Matraga, fogo punidor e religioso, deu início a essa transformação, para o
fogo das paixões maiores. E eis a
dialética de transição: o pequeno e o grande fogo. Em Grande Sertão: Veredas, o fogo
transcende os limites do pequeno, alcançando a exuberante grandeza do íntimo
fogo do amor e das grandes causas; fogo que abala e queima uma alma que sonha no plano das emoções maiores. Só o fogo
para avivar o colorido intenso do sertão. Só o fogo para acalorar toda a existência de Riobaldo, submetendo-o ao pacto com o
diabo (pacto inexistente), e ao amor pecaminoso
por Diadorim. Só o fogo para fazê-lo lutar como um endemoniado na juventude, e
aquietá-lo na velhice, brasas de fogueira, quase extintas.
As labaredas dos combates
iluminam a narrativa, e as armas-de-fogo propiciam agitação permanente. O
sertão, neste momento, é sonhado com ardor, não é o suave calor das pequenas chamas das lembranças que o faz grandioso.
Segundo Bachelard, essas nuanças do fogo estão ligadas a dois tipos de
imaginação: a introvertida e a extrovertida. O calor interioriza-se e o fogo se
expande, "é o calor que merece o nome de terceira dimensão, conforme a metafísica sonhada de um
Schelling"279. O verde do sertão e todas as outras cores recebem a expansão do fogo
que caracteriza a imaginação extrovertida. A imaginação extrovertida, nesta
fase, necessita de grandes e coloridas imagens, propiciadoras de transcendência
dos limites estreitos do sertão real; precisa mostrar o lado exuberante de uma
realidade singela. A terra e a água, amalgamadas, não possuem esse poder. Urge
portanto aceitar a interferência de um elemento mais poderoso, que reinvente o
âmago do sertão, para que o Artista possa descobri-lo em sua grandeza.
Visita o quadro de tua vida, cada tábua de teu quarto,
a cada canto, e enrodilha-te para alojar-te na última e mais íntima das
espirais de tua concha de caracol.280
Grande Sertão: Veredas é o retorno questionador e maravilhado ao sertão da infância. Para que
este espaço seja visível em suas minúcias, impõe-se estar iluminado. O
personagem-narrador é dono de seu narrar, por que a matéria enfocada está
inteira nas mãos do Artista.
Sob a aparência de Riobaldo, ele se une intimamente ao sertão de
origem. Assim o amor por Diadorim (jagunço de olhos verdes), o amor pelo verde
(sertão?) exala um incômodo apelo sexual. O devaneio diante do fogo é um
devaneio sexual. O verde sertão é misterioso; Diadorim é misterioso, velado,
incompreensivelmente feminino. A aparência é masculina, seja do sertão ou do
personagem, mas o interior é feminino, aconchegante.
Em sua escalada aos cogitos superiores, para alojar-se, páginas
adiante, na última e mais íntima das espirais de sua própria concha de caracol,
o Artista por ora necessita percorrer, revolver e colorir as camadas íntimas da
terra do sertão e sentir a temperatura morna e andrógina de seus rios.
Grande Sertão: Veredas, graças a esse fogo sexualizado, une a matéria ficcional ao espírito
de seu criador, denuncia o vício e a virtude como componentes da alma. A
ambigüidade se manifesta na narrativa e se faz necessária para que o Artista,
posteriormente, possa romper a crosta da terra sertaneja e descobrir seus
subterrâneos desconhecidos, veredas desconhecidas, rios desconhecidos, cores
desconhecidas. O Artista da terra e água amalgamadas necessitou do fogo sexualizado para unir-se amorosamente a sua criação literária, e
modelá-la mediante um discurso diferente, pela perspectiva maravilhada.
Assim, o devaneio do fogo reúne, numa longa narrativa, as minúcias da
natureza (as florezinhas coloridas, os verdes arbustos, os animais, os combates
à moda épica, a cavalaria medieval, o pícaro renascentista – face popular dos
quinhentos/seiscentos, simbolizada na figura do cego), o ficcional e o poético.
As imagens do sertão aqui são coloridas e excessivas, porque o criador
misturou alquimicamente elementos diversos, sem descaracterizá-los, cada um a
seu tempo. Inclusive, o ar (ligado por ora à imaginação evasiva e aberta)
contribui para engrandecer o sertão nesta fase: o diabo na rua, no meio do redemunho. Mas é o fogo, inegavelmente,
o elemento que ilumina a narrativa, engrandecendo as batalhas e santificando o
Amor. Aqui não há união entre matérias diferentes. O fogo não se acasala com
nenhum outro elemento, manifestando-se e extinguindo-se solitariamente. Se
penso em um acasalamento, nesta narrativa, será ainda a junção da água e da
terra, matérias formadoras do sertão propriamente dito.
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