O caráter sacrificado por uma psicologia da imaginação
que se ocupa apenas da constituição das
imagens é um caráter essencial, evidente, conhecido de todos: é a mobilidade das imagens. Existe uma
oposição — no reino da imaginação assim como em tantos outros domínios — entre
a constituição e a mobilidade. E, como a descrição das formas é mais fácil do
que a descrição dos movimentos, fica explicado por que a psicologia se ocupa a
princípio da primeira tarefa. No entanto, é a segunda que é mais importante. A
imaginação para uma psicologia completa é, antes de tudo, um tipo de mobilidade
espiritual, o tipo da mobilidade espiritual maior, mais viva, mais vivaz. Cumpre,
pois, acrescentar sistematicamente ao estudo de uma imagem particular o estudo
de sua mobilidade, de sua fecundidade, de sua vida.317
A
imaginação, para Bachelard, é a faculdade que o homem possui de deformar as imagens estáveis que
compõem o seu universo existencial. Esta deformação, produzida pela ação
imaginante, leva-o a libertar-se das primeiras formas que seus olhos registram,
ocasionando uma explosão de imagens que ultrapassam o sensivelmente dado da
realidade. O escritor seria então aquele que aspira detectar imagens novas,
dando asas à imaginação e, com isto, criando imagens móveis a partir de imagens
estáveis.
O
filósofo, ao afirmar isto, procura questionar as pesquisas psicológicas sobre a
imaginação que, ao invés de observar o aspecto móbil das imagens, fixam-se na
etimologia da palavra, na qual se lê que imaginação é simplesmente a faculdade
de formar imagens. Assim, o escritor
e/ou o poeta da estética modernista estariam além da simples percepção do real
ou mesmo além da memória familiar e dos hábitos cotidianos ligados às cores e
às formas, criando imagens literárias sob o comando de seu próprio imaginário
sem limites visíveis. A necessidade de permanente novidade produz o texto
literário, repleto de formas em movimentos, ágeis, propiciadoras de inúmeras e
diferentes imagens, a partir do princípio imaginário que as criou. O escritor,
ao contrário do psicólogo, rejeita as imagens estáveis, prefere as imagens
móveis e ocasionais, que conduzem a uma explosão de imagens tortuosas. O
verdadeiro criador literário, aquele que se liberta da simples descrição das
formas, consegue alcançar o cogito da complexa descrição dos movimentos, reduto
exclusivo da espiritualidade.
A
psicologia da imaginação puramente racional não compartilha dessas idéias do filósofo.
Ocupada em constituir imagens, ao
invés de observar seus aspectos móveis, distancia-se cada vez mais de uma
compreensão salutar do assunto, o que possibilitaria a solução de vários
problemas mentais que afetam o homem moderno. Uma psicologia da imaginação só
seria completa, se estudasse a imaginação, observando sua mobilidade espiritual
e, sobretudo, sabendo como determiná-la.
O
filósofo refaz a idéia do mobilismo heraclitiano, em que a essência das coisas
é una e múltipla ao mesmo tempo, transformando-se constantemente, indiferente
às leis impostas, distanciadas da vontade de apreensão e organização da
realidade, vontade esta ligada às idéias puramente racionais.
Assim,
para Bachelard, a mobilidade de uma imagem não é indeterminada, ou seja, há a possibilidade
de fixá-la, defini-la; há como determinar-lhe o aspecto móbil.
A
mobilidade partiria então de uma mobilidade específica, propensa a uma
descrição minuciosa de suas qualidades voláteis. Por este prisma, a psicologia
da imaginação do movimento determinaria então a mobilidade das imagens. Esta
determinação possibilitaria ao estudioso "traçar, para cada imagem, um
verdadeiro hodógrafo que lhe resumiria o cinetismo"318. O caminho de apreensão (hodo),
tortuoso, em curva, não abalaria a validade do pensamento reflexivo, ao
contrário, lhe resumiria seus aspectos energéticos, excitáveis, determinando os
momentos de aceleração e retardamentos próprios da matéria em movimento.
Sob
a proteção das imagens voláteis, o verdadeiro discurso literário transmite uma
linguagem viva. O escritor determina esta vivacidade e os leitores a recebem
renovada, indutora de esperanças e sentimentos especiais. As palavras, as
frases, ou mesmo, os longos períodos infundem uma nova forma de viver, revelam
novas possibilidades existenciais jamais pensadas.
Pensando
na obra de Guimarães Rosa, por este aspecto é possível detectar, a partir de Grande Sertão: Veredas, estas imagens literárias repletas de vivacidade. Se antes o leitor de
Sagarana se extasiava com a descrição
do real (percepção do autor ligada à memória familiar), de ora em diante e
graças à ação imaginante do escritor, refletirá também as formas antes
indefinidas. Caminheiro de uma via desconhecida para o homem comum, o escritor
induz o leitor reflexivo a segui-lo nos meandros desse universo singular,
obriga-o a perfazer um trajeto contínuo do real ao imaginário, transcendendo o
pensamento ordinário.
Libertando-se
da realidade opressiva, repensando a imaginação
sem imagens (imaginação além das imagens usuais) a Literatura-Arte alcança
o cogito(4) da pura espiritualidade. O escritor possui esta
capacidade: alcança o cogito(4) criativamente, abstendo-se de
tornar-se uma pessoa excêntrica socialmente; a excentricidade estaria contida
apenas em sua capacidade de exprimir literariamente a novidade dos pensamentos
incomuns.
Como encontrar uma medida comum dessa solicitação a
viver e a falar? Isso só pode ocorrer multiplicando-se as experiências de
figuras literárias, de imagens móveis, restituindo, conforme o conselho de Nietzsche,
a todas as coisas o seu movimento próprio, classificando e comparando os
diversos movimentos de imagens, contando todas as riquezas dos tropos que se
induzem ao redor de um vocábulo. A propósito de qualquer imagem que nos
impressiona, devemos indagar-nos: qual o arroubo lingüístico que essa imagem
libera em nós? Como a separamos do fundo por demais estável das recordações
familiares?319
As
palavras plurissignificativas possibilitam a descoberta desse fenômeno de
excitabilidade lingüística, determinam a aceleração e o retardamento das
imagens voláteis. A imaginação se engrandece e ao mesmo tempo seduz, e é uma
sedução diferente da sedução registrada pela perspectiva anulada, perspectiva
esta desinteressada dos valores oníricos. A imaginação, assim, prefere a
sedução do que se imagina, não se prendendo à sedução do que se vê. A
imaginação procura o caminho curvo, ou labiríntico, da perspectiva de
intensidade substancial infinita, procura a ausência, consciente de que a
essência da verdade encontra-se no âmbito do não-dito.
E
eis Riobaldo afirmando, em Grande Sertão: Veredas:
Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não
vejo! — só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada.
Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na
outra banda é num ponto mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou.320
A
imaginação dinâmica do Criador impulsiona as reflexões do personagem Riobaldo.
O personagem não vê as coisas, quem
as vê é o criador, agora conhecedor de uma outra realidade. O criador denuncia
a imaginação evasiva do personagem (ausência / sem lei), tão diferente da
imaginação dinâmica, porque sente que são poucos os que se conscientizam e
vivenciam todas as imagens da travessia. A travessia
das coisas até a sublimação discursiva e, posteriormente, a conscientização de
uma sublimação dialética, é um desafio que os assinalados têm de enfrentar. O Artista do sertão, em Grande Sertão: Veredas, conduz seu personagem por entre os vários estágios da imaginação. Na
verdade, atravessa realmente o sertão
do passado. Sob a luz da etimologia, põe-se de través, obliquamente, no intuito
de alcançar a margem do imaginário-em-aberto.
Assim,
seu personagem atravessa as coisas e não as vê, porque não conhece os rumos da viagem. O personagem moderno
jamais saberá os rumos de seu destino, mesmo quando é ele que comanda o relato,
já velho e sem perspectivas de vida ativa. A perspectiva sintagmática em Grande Sertão: Veredas é um grande engano. Não há total linearidade ao longo da narrativa,
não há um final glorioso para o herói, na velhice um simples barranqueiro do
rio São Francisco. O aparente aspecto linear não bastaria para preencher as
quinhentas e sessenta e três páginas da narrativa; as longas reflexões do
personagem ao contrário denunciam os íntimos e importantes Vazios do Artista.
A
sublimação discursiva de Riobaldo está em conflito com a sublimação dialética
do escritor moderno. Enquanto Riobaldo procura um além em sua travessia de vida (as imagens mais inconsistentes de
suas lembranças),
Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem
nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. (...) mas, conforme eu vinha:
(...). Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas
acontecerem ...
Não devia de estar relembrando isto, contando assim o
sombrio das coisas. Lenga-lenga.321
seu Criador procura
alongar a narrativa submetido aos próprios questionamentos existenciais. O
sertão de Grande
Sertão: Veredas não é o sertão real, apenas conduz o psiquismo imaginante de quem o
idealiza. A travessia de Riobaldo é uma incógnita. No momento da intuição
(prenúncio da narrativa ou proposta de criação literária), o Criador do Sertão
possuía apenas algumas poucas certezas: uma pequena estrutura linear, o
desenlace de Diadorim e a velhice do personagem narrador. O todo da narrativa
foi acontecendo complexamente, subordinado aos pensamentos transmutativos. Em
verdade, é o desenlace de Diadorim que sustenta o fio narrativo. Riobaldo cria sua estória de vida dentro da
história pessoal de seu Criador. Assim, há coerência, regularidade, no aparente
caos dialético, ou seja, o Artista define o seu desejo de mobilidade.
A
imaginação dinâmica do Criador ficcional conduz
os pensamentos de Riobaldo. O grande Urutu Branco é prisioneiro do Artista
moderno.
Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas
guardadas, a poder de minhas rezas. Ahã. Deamar, deamo ... Relembro Diadorim.
(...) Moço: toda saudade é uma espécie de velhice.
Mas aí, eu estava contando (...) Como vou achar ordem
para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras
quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança
em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? (...) Do sol e tudo, o senhor
pode completar imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido.
Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o
mesmo é. Pois ia me esquecendo: (...) Sei que estou contando errado, pelos
altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do
comum, disse ao senhor quase tudo.
Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de
contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. (...).
O que vale são outras coisas.
Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito
entrançado. (...) E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for
jagunço, mas a matéria vertente. (...) Ao doido, doideras digo. Mas o senhor é
homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa,
e rediz, então me ajuda. Assim é como conto. (...) Vou lhe falar. Lhe falo do
sertão. Do que não sei. Um grande sertão. Não sei.322
Por
intermédio da indução da imaginação dinâmica, é o Artista que fala, que possui
a força de transcender o espaço do sertão. Quem tem consciência da desordem
narrativa não é o personagem, é o escritor moderno, liberto dos grilhões das
narrativas experientes do corpus de Sagarana.
O
Artista conheceu o mundo antes de escrever sobre o sertão da infância, depois
percebeu que o sertão continha o mundo e vice-versa. O sertão está em todos os lugares, é onde os espaços carecem de fechos.
O sertão foi o ponto de partida para as longas reflexões sobre o ato de viver.
Em cada recanto do mundo, como cidadão do mundo, ele sonhou com aquele recanto
do passado.
A
estória de Riobaldo é uma travessia de vida, um convite a uma viagem ao país do
imaginário-em-aberto; e, no entanto, no plano das probabilidades de vida, é uma
estória verossímil. O amor e o ódio, a tristeza e a alegria, o bem e o mal,
Deus e o diabo, são referentes da realidade cotidiana. A realidade semântica da
imaginação dinâmica forma uma camada à parte que se distingue (há uma nítida
separação) do aspecto linear que orienta o fio narrativo. O plano linear impõe
limites à estória (imaginação formal), a imaginação dinâmica abre o leque das
profundas indagações de quem não conhece o porvir.
Depois
de Grande
Sertão: Veredas, o escritor rompe definitivamente
com o narrador memorialista, aceitando a criação transgressora do psiquismo
aéreo.
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