quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.10.9 - Os diversos graus da imaginação na obra roseana

II.10.9 - Os diversos graus da imaginação na obra roseana

O caráter sacrificado por uma psicologia da imaginação que se ocupa apenas da constituição das imagens é um caráter essencial, evidente, conhecido de todos: é a mobilidade das imagens. Existe uma oposição — no reino da imaginação assim como em tantos outros domínios — entre a constituição e a mobilidade. E, como a descrição das formas é mais fácil do que a descrição dos movimentos, fica explicado por que a psicologia se ocupa a princípio da primeira tarefa. No entanto, é a segunda que é mais importante. A imaginação para uma psicologia completa é, antes de tudo, um tipo de mobilidade espiritual, o tipo da mobilidade espiritual maior, mais viva, mais vivaz. Cumpre, pois, acrescentar sistematicamente ao estudo de uma imagem particular o estudo de sua mobilidade, de sua fecundidade, de sua vida.317

A imaginação, para Bachelard, é a faculdade que o homem possui de deformar as imagens estáveis que compõem o seu universo existencial. Esta deformação, produzida pela ação imaginante, leva-o a libertar-se das primeiras formas que seus olhos registram, ocasionando uma explosão de imagens que ultrapassam o sensivelmente dado da realidade. O escritor seria então aquele que aspira detectar imagens novas, dando asas à imaginação e, com isto, criando imagens móveis a partir de imagens estáveis.

O filósofo, ao afirmar isto, procura questionar as pesquisas psicológicas sobre a imaginação que, ao invés de observar o aspecto móbil das imagens, fixam-se na etimologia da palavra, na qual se lê que imaginação é simplesmente a faculdade de formar imagens. Assim, o escritor e/ou o poeta da estética modernista estariam além da simples percepção do real ou mesmo além da memória familiar e dos hábitos cotidianos ligados às cores e às formas, criando imagens literárias sob o comando de seu próprio imaginário sem limites visíveis. A necessidade de permanente novidade produz o texto literário, repleto de formas em movimentos, ágeis, propiciadoras de inúmeras e diferentes imagens, a partir do princípio imaginário que as criou. O escritor, ao contrário do psicólogo, rejeita as imagens estáveis, prefere as imagens móveis e ocasionais, que conduzem a uma explosão de imagens tortuosas. O verdadeiro criador literário, aquele que se liberta da simples descrição das formas, consegue alcançar o cogito da complexa descrição dos movimentos, reduto exclusivo da espiritualidade.

A psicologia da imaginação puramente racional não compartilha dessas idéias do filósofo. Ocupada em constituir imagens, ao invés de observar seus aspectos móveis, distancia-se cada vez mais de uma compreensão salutar do assunto, o que possibilitaria a solução de vários problemas mentais que afetam o homem moderno. Uma psicologia da imaginação só seria completa, se estudasse a imaginação, observando sua mobilidade espiritual e, sobretudo, sabendo como determiná-la.

O filósofo refaz a idéia do mobilismo heraclitiano, em que a essência das coisas é una e múltipla ao mesmo tempo, transformando-se constantemente, indiferente às leis impostas, distanciadas da vontade de apreensão e organização da realidade, vontade esta ligada às idéias puramente racionais.

Assim, para Bachelard, a mobilidade de uma imagem não é indeterminada, ou seja, há a possibilidade de fixá-la, defini-la; há como determinar-lhe o aspecto móbil.

A mobilidade partiria então de uma mobilidade específica, propensa a uma descrição minuciosa de suas qualidades voláteis. Por este prisma, a psicologia da imaginação do movimento determinaria então a mobilidade das imagens. Esta determinação possibilitaria ao estudioso "traçar, para cada imagem, um verdadeiro hodógrafo que lhe resumiria o cinetismo"318. O caminho de apreensão (hodo), tortuoso, em curva, não abalaria a validade do pensamento reflexivo, ao contrário, lhe resumiria seus aspectos energéticos, excitáveis, determinando os momentos de aceleração e retardamentos próprios da matéria em movimento.

Sob a proteção das imagens voláteis, o verdadeiro discurso literário transmite uma linguagem viva. O escritor determina esta vivacidade e os leitores a recebem renovada, indutora de esperanças e sentimentos especiais. As palavras, as frases, ou mesmo, os longos períodos infundem uma nova forma de viver, revelam novas possibilidades existenciais jamais pensadas.

Pensando na obra de Guimarães Rosa, por este aspecto é possível detectar, a partir de Grande Sertão: Veredas, estas imagens literárias repletas de vivacidade. Se antes o leitor de Sagarana se extasiava com a descrição do real (percepção do autor ligada à memória familiar), de ora em diante e graças à ação imaginante do escritor, refletirá também as formas antes indefinidas. Caminheiro de uma via desconhecida para o homem comum, o escritor induz o leitor reflexivo a segui-lo nos meandros desse universo singular, obriga-o a perfazer um trajeto contínuo do real ao imaginário, transcendendo o pensamento ordinário.

Libertando-se da realidade opressiva, repensando a imaginação sem imagens (imaginação além das imagens usuais) a Literatura-Arte alcança o cogito(4) da pura espiritualidade. O escritor possui esta capacidade: alcança o cogito(4) criativamente, abstendo-se de tornar-se uma pessoa excêntrica socialmente; a excentricidade estaria contida apenas em sua capacidade de exprimir literariamente a novidade dos pensamentos incomuns.

Como encontrar uma medida comum dessa solicitação a viver e a falar? Isso só pode ocorrer multiplicando-se as experiências de figuras literárias, de imagens móveis, restituindo, conforme o conselho de Nietzsche, a todas as coisas o seu movimento próprio, classificando e comparando os diversos movimentos de imagens, contando todas as riquezas dos tropos que se induzem ao redor de um vocábulo. A propósito de qualquer imagem que nos impressiona, devemos indagar-nos: qual o arroubo lingüístico que essa imagem libera em nós? Como a separamos do fundo por demais estável das recordações familiares?319

As palavras plurissignificativas possibilitam a descoberta desse fenômeno de excitabilidade lingüística, determinam a aceleração e o retardamento das imagens voláteis. A imaginação se engrandece e ao mesmo tempo seduz, e é uma sedução diferente da sedução registrada pela perspectiva anulada, perspectiva esta desinteressada dos valores oníricos. A imaginação, assim, prefere a sedução do que se imagina, não se prendendo à sedução do que se vê. A imaginação procura o caminho curvo, ou labiríntico, da perspectiva de intensidade substancial infinita, procura a ausência, consciente de que a essência da verdade encontra-se no âmbito do não-dito.

E eis Riobaldo afirmando, em Grande Sertão: Veredas:

Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou.320

A imaginação dinâmica do Criador impulsiona as reflexões do personagem Riobaldo. O personagem não vê as coisas, quem as vê é o criador, agora conhecedor de uma outra realidade. O criador denuncia a imaginação evasiva do personagem (ausência / sem lei), tão diferente da imaginação dinâmica, porque sente que são poucos os que se conscientizam e vivenciam todas as imagens da travessia. A travessia das coisas até a sublimação discursiva e, posteriormente, a conscientização de uma sublimação dialética, é um desafio que os assinalados têm de enfrentar. O Artista do sertão, em Grande Sertão: Veredas, conduz seu personagem por entre os vários estágios da imaginação. Na verdade, atravessa realmente o sertão do passado. Sob a luz da etimologia, põe-se de través, obliquamente, no intuito de alcançar a margem do imaginário-em-aberto.

Assim, seu personagem atravessa as coisas e não as vê, porque não conhece os rumos da viagem. O personagem moderno jamais saberá os rumos de seu destino, mesmo quando é ele que comanda o relato, já velho e sem perspectivas de vida ativa. A perspectiva sintagmática em Grande Sertão: Veredas é um grande engano. Não há total linearidade ao longo da narrativa, não há um final glorioso para o herói, na velhice um simples barranqueiro do rio São Francisco. O aparente aspecto linear não bastaria para preencher as quinhentas e sessenta e três páginas da narrativa; as longas reflexões do personagem ao contrário denunciam os íntimos e importantes Vazios do Artista.

A sublimação discursiva de Riobaldo está em conflito com a sublimação dialética do escritor moderno. Enquanto Riobaldo procura um além em sua travessia de vida (as imagens mais inconsistentes de suas lembranças),

Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. (...) mas, conforme eu vinha: (...). Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem ...

Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga.321

seu Criador procura alongar a narrativa submetido aos próprios questionamentos existenciais. O sertão de Grande Sertão: Veredas não é o sertão real, apenas conduz o psiquismo imaginante de quem o idealiza. A travessia de Riobaldo é uma incógnita. No momento da intuição (prenúncio da narrativa ou proposta de criação literária), o Criador do Sertão possuía apenas algumas poucas certezas: uma pequena estrutura linear, o desenlace de Diadorim e a velhice do personagem narrador. O todo da narrativa foi acontecendo complexamente, subordinado aos pensamentos transmutativos. Em verdade, é o desenlace de Diadorim que sustenta o fio narrativo. Riobaldo cria sua estória de vida dentro da história pessoal de seu Criador. Assim, há coerência, regularidade, no aparente caos dialético, ou seja, o Artista define o seu desejo de mobilidade.

A imaginação dinâmica do Criador ficcional conduz os pensamentos de Riobaldo. O grande Urutu Branco é prisioneiro do Artista moderno.

Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhas rezas. Ahã. Deamar, deamo ... Relembro Diadorim. (...) Moço: toda saudade é uma espécie de velhice.
Mas aí, eu estava contando (...) Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? (...) Do sol e tudo, o senhor pode completar imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido.

Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. Pois ia me esquecendo: (...) Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo.

Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. (...). O que vale são outras coisas.

Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. (...) E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. (...) Ao doido, doideras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim é como conto. (...) Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão. Não sei.322

Por intermédio da indução da imaginação dinâmica, é o Artista que fala, que possui a força de transcender o espaço do sertão. Quem tem consciência da desordem narrativa não é o personagem, é o escritor moderno, liberto dos grilhões das narrativas experientes do corpus de Sagarana.

O Artista conheceu o mundo antes de escrever sobre o sertão da infância, depois percebeu que o sertão continha o mundo e vice-versa. O sertão está em todos os lugares, é onde os espaços carecem de fechos. O sertão foi o ponto de partida para as longas reflexões sobre o ato de viver. Em cada recanto do mundo, como cidadão do mundo, ele sonhou com aquele recanto do passado.

A estória de Riobaldo é uma travessia de vida, um convite a uma viagem ao país do imaginário-em-aberto; e, no entanto, no plano das probabilidades de vida, é uma estória verossímil. O amor e o ódio, a tristeza e a alegria, o bem e o mal, Deus e o diabo, são referentes da realidade cotidiana. A realidade semântica da imaginação dinâmica forma uma camada à parte que se distingue (há uma nítida separação) do aspecto linear que orienta o fio narrativo. O plano linear impõe limites à estória (imaginação formal), a imaginação dinâmica abre o leque das profundas indagações de quem não conhece o porvir.

Depois de Grande Sertão: Veredas, o escritor rompe definitivamente com o narrador memorialista, aceitando a criação transgressora do psiquismo aéreo.



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