quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.10.8 Sertão: sofrimento e conflito

II.10.8  Sertão: sofrimento e conflito

Seria um longo problema encontrar uma química sentimental que nos faria determinar a nossa perturbação íntima através de imagens no âmago das substâncias. Mas essa extroversão não seria vã. Ela nos ajudaria a colocar nossos sofrimentos "para fora", a fazer nossos sofrimentos funcionarem como se fossem imagens.308

Se a química da hostilidade produziu uma face de Riobaldo repleta de valentia e poder, a química sentimental refletirá a face do jagunço amoroso, narrando o amor não concretizado. Parodiando Bachelard309, afirmamos: se Riobaldo é a maior tentação do Artista, Diadorim é a tentação maior de Riobaldo. Destacando-se o fato de o jagunço Diadorim se comportar como homem em mais de quinhentas páginas, e, mesmo sabendo-se que Riobaldo, na velhice, já tem conhecimento de toda a verdade, ou seja, que Diadorim era na realidade mulher, as lembranças desse amor ainda incomodam o personagem-narrador. Assim, sob a magnificência da Literatura, importam muito mais as horas de aflição e remorso vividas pelo personagem, o mítico macho que ama um outro homem. A química sentimental extravasa, nesta narrativa, a perturbação íntima do Artista, seu conflito de homem sertanejo e ao mesmo tempo moderno; denuncia um ser fragmentado: homem por excelência, repleto dos valores do sertão, mas, hoje impregnado dos valores modernos e conhecedor dos aspectos femininos que fazem parte da natureza masculina e vice versa, dualidade esta hábil e ambiguamente destacada em Diadorim.

A química sentimental em Grande Sertão: Veredas também substancializa um combate. A intimidade do guerreiro Riobaldo está indiscutivelmente abalada. A agitação ativa desse amor simboliza o conflito da intimidade do Artista moderno brasileiro: o homem nato do sertão e seu poder masculino conflituado por deixar entrever a essência pura de sua sensibilidade estética com suas nuanças femininas.

Bachelard auxilia-me:

Aqui está, para acabar de uma vez com essas pobres imagens, uma página que não teremos dificuldade em psicanalisar, mediante um simples sorriso. Ela é tirada de uma obra de tom sério, de uma obra que nunca se afasta da maior seriedade. Se olharmos ao microscópio, diz Hemsterhuis, o líquido seminal de um animal, há vários dias sem se aproximar de uma fêmea, encontraremos "um número prodigioso dessas partículas, ou desses animálculos de Leeuwenhock, mas todas em repouso e sem o menor sinal de vida". Façam, ao contrário, com que uma única fêmea passe diante do macho antes do exame microscópico, então "encontrarão todos esses animálculos não só vivos, mas nadando todos no líquido, que aliás é espesso, com uma rapidez prodigiosa". Deste modo, o sério filósofo confere ao espermatozóide todas as agitações do desejo sexual. O ser microscópico registra os incidentes psicológicos de um espírito "agitado" pelas paixões.310

Esta citação é indispensável, para explicar os sentimentos conflituosos de Riobaldo por Diadorim. A rejeição, a angústia, o nojo do por tal sentimento são insuficientes para destruir o amor.

Senão, vejamos:

(...) ele estava ali, mais vindo, a meia-mão de mim. E eu — mal de não me consentir em nenhum afirmar das docementes coisas que são feias — eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação, ranço de desgosto: eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que coração meu podia mais. O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende.311

O coração do personagem pode mais, e seu corpo adivinha a essência natural feminina exalando do macho Diadorim. O lado sexual do homem (seus espermas) percebe e responde ao chamado feminino, também ativado. Os sentimentos amorosos do personagem estão dinamizados pelo cheiro da fêmea, socialmente masculinizada. Os sentimentos estão em ebulição, estão vivos, porque o demiurgo conhece os segredos de sua criação; o Criador pode mais que o coração de sua criatura, pois conhece o poder da paixão por ele idealizada e produzida.

Descrevendo essa paixão, o Artista desenvolve sintagmaticamente um manual de moralidade, destaca as regras básicas do mítico sertão, nas quais se insere o adágio popular, reafirmador de velhas ideologias, homem com homem dá lobisomem, e outros provérbios reformuladores desta mesma orientação de moral. Questionando essa paixão, o Artista ultrapassa paradigmaticamente o ensinamento moral, desenvolvendo profundas reflexões sobre o amor e seus diversos níveis. Sua perturbação íntima reflete (extra-texto) a perturbação do homem do século XX, abalado em seu poder, cedendo às exigências da fêmea, que disputa com ele um lugar no cenário sócio-econômico. Reafirmando tal ponto de vista, reforço que esta é uma interpretação extra-texto, uma vez que o narrador procura resgatar velhas tradições e ideologias.

O mundo do sertão e seus personagens refazem antigas ideologias, mas o narrador (ou um lado do mesmo) é moderno, ou seja, suas reflexões existenciais são uma projeção da modernidade, portanto passíveis de serem questionadas pelo leitor.

O Artista, nesses questionamentos de Riobaldo, coloca seus sofrimentos para fora, como orienta Bachelard. Suas angústias de homem moderno, nativo do sertão, encontram respostas nas indagações de seu personagem. Analisando o amor como coisa feia (amor entre homens) e, no final, mostrando que, em verdade, Reinaldo/Diadorim é Maria Deodorina, analisa exatamente a química do amor, pois dois seres diferentes (homem e mulher) não se enganam, quando o assunto é uma mútua sensibilidade afetiva. Por estas razões, intuitivamente, o personagem concebia sempre um instante de esquecimento das coisas racionais, uma duvidação, versando seus pensamentos em redondos e quadrados, provando inconscientemente que o coração não se engana.

Esse sentimento reflete a luta entre os álcalis e os ácidos, de acordo com a filosofia bachelardiana, a luta entre o feminino e o masculino, entre os opostos que se amam e não sabem que são opostos, já que a realidade cotidiana os colocou como iguais no cenário da vida.

Ainda Bachelard:

O homem saudável, para Hipócrates, é um composto equilibrado de água e fogo. À menor indisposição, a luta dos dois elementos hostis recomeça no corpo humano. Um surdo conflito manifesta-se ao menor pretexto. Assim poderíamos inverter a perspectiva e preparar uma psicanálise da saúde. A luta central seria captada na ambivalência do animus e da anima, ambivalência que instala em cada um de nós uma luta de princípios contrários.312

Reportando-me às minhas reflexões sobre os elementos na obra roseana, afirmei anteriormente que os elementos eleitos eram a terra e a água amalgamadas. Afirmei também que o fogo aparece como matéria de transição, a partir da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, alcançando o ápice dessa fase na narrativa romanesca Grande Sertão: Veredas.

Reafirmo, esta fase operada pelo fogo em ebulição, a qual levará o Artista Guimarães Rosa a uma nova reavaliação de seus elementos eleitos (terra e água), ainda amalgamados, mas agora submetidos a uma visão profunda dessas mesmas matérias. Em outras palavras, depois da transição operada pelo fogo, ele irá penetrar no cerne desses elementos, revelando sua interioridade, para posteriormente projetar-se no imaginário-em-aberto (cogito(4)), simbolizado pelo elemento ar. Este elemento seria, de acordo com a nossa inclusiva e exclusiva visão, um novo elemento de transição para o cogito(4), domínio que inclui a ficção, distante temporalmente dos três cogitos normais da existência ordinária.

Agora, retomando a citação, posso inferir que há em Riobaldo (personagem saudável e com sentimentos amorosos saudáveis) o composto equilibrado da água e do fogo, seguindo a teoria de Hipócrates, reafirmada por Bachelard: a água, simbolizando a pureza de seus sentimentos amorosos por Diadorim, e o fogo, simbolizando o seu lado belicoso. A indisposição é o seu amor impossível pelo também belicoso amigo. O engano histórico (ligado ao plano da reprodução e não da criação literária) promove o conflito de Riobaldo, possibilita o pretexto para que o Artista desenvolva páginas e páginas de reflexão sobre esse amaldiçoado amor. O saudável personagem, com o seu composto de água e fogo equilibrado, ou seja, homem em toda a extensão da palavra, é um ser intimamente frágil, quando se trata de sentimentos amorosos.

Penso agora na luta central, captada na ambivalência do animus e da anima. Penso primeiro na anima, como alma, espírito ou mesmo outras significações que a reforçam, de acordo com o momento histórico e seus valores: mente, índole, coragem, valor, gênio, resolução, vontade, força, intenção. O animus embala e acalenta a intenção, ou seja, a anima.

O animus de Riobaldo embala e acalenta seu amor pelo jagunço Diadorim, e há uma ambivalência (sentimentos opostos) prejudicando esse amor: os sentimentos feios de Riobaldo não se ajustam aos sinceros sentimentos de Diadorim, já que este tem acesso à sua condição de mulher, e aquele, no plano da História, não conhece esse fato, apenas o pressente.

O animus de Riobaldo, prejudicado por essa ambivalência, apenas dele e não de Diadorim, reforça sua anima belicosa (sua índole, sua coragem, sua força, sua vontade de matar, por exemplo); seu animus é pura intenção: de ferir, ofender, atacar (animus laedendi); de matar (animus necandi); de possuir a coisa, o amor de Diadorim, por exemplo (animus rem sibi habendi); assim, anima e animus instalados no interior do personagem, representando a luta dos sentimentos condenados.

O Artista literário apropria-se desses sentimentos contrários, recobrindo-os e, ao mesmo tempo, desvelando-os com as imagens singulares de sua imaginação agitada. Se a sua imaginação está agitada, é porque o seu interior está agastado, sofrendo os males da modernidade, ansiando por um mundo perfeito, já conhecido pelo passado infantil. As imagens desse conflito estão dinamizadas, porque ele se vale do dinamismo próprio das crianças; recorda as estórias da infância, colocando nelas as suas angústias de adulto. A história linear refaz a ideologia sertaneja, enfraquecida pelo advento da modernidade, mas as longas meditações do personagem revelam as lutas interiores do homem restrito às leis degradadas da sociedade moderna.

Bachelard diz: "toda luta é dualidade"313, e Rogel Samuel, em suas produtivas aulas, altamente filosóficas, de Teoria Literária e ainda não registradas em livro, afirma: todo contato é sexualizado. Refazendo esses pensamentos (o pensamento do filósofo francês e o pensamento do filósofo brasileiro), penso, por minha vez, na dualidade do amor de Riobaldo por Diadorim, sua luta contra esse sentimento, como reflexo do íntimo contato entre os dois: eles se amam (um instintivamente e outro conscientemente), porque sentem o apelo das essências naturais, seja esse apelo homo ou heterossexual. Por questões notadamente morais (já que a narrativa representa os valores puros do sertão, em confronto com a prolífera criatividade do Artista moderno), Diadorim é mulher, ao final da narrativa, refazendo velhos arquétipos, como o da virgem antiga e medieval, por exemplo, nas vestes do guerreiro indomável.

Assim, Rogel Samuel tem razão ao afirmar que todo contato é sexualizado, seja contato entre mãe e filho(a), pai e filha(o), amigo e amiga, amigo(a) e amigo(a), sacerdote e devota, professor(a) e aluna(o) e outros. O ato da mãe, ao amamentar o filho recém-nascido, produz um contato sexualizado. O amor entre o homem e a mulher (os opostos em luta constante), principalmente, refletem essa dualidade e sexualização. O amor como eterna briga, em que não há vencido nem vencedor.

Aqui, no entanto, o surdo conflito alcança proporções maiores, porque, para Riobaldo, o sentido de dualidade amorosa inexiste, já que ele conhece Diadorim como um seu-igual. Esta dualidade é um conflito interno, ou seja, dualidade entre o nível material e o nível espiritual. Assim, a dualidade, nesta narrativa, ao contrário do que diz Bachelard, é o não-existir da dualidade: a luta interna foi provocada por essa falta de elementos químicos, escondida pela imagem auto-imposta, que o faz distanciar-se sexualmente e aproximar-se espiritualmente de Diadorim.

Para a imaginação, toda substância fica necessariamente dividida assim que deixa de ser elementar. Essa divisão não é plácida. Assim que a imaginação se refina, já não se satisfaz com uma substância de vida simples e uniforme. A menor desordem imaginada no interior das substâncias, o sonhador julga-se testemunha de uma agitação, de uma luta pérfida.314

Aqui, terra e água, substâncias materiais, ficam divididas em seus aspectos primários, objetivos exteriores, depois da intromissão do elemento fogo, substância calorífica e não dividida (não há fora e dentro nesse elemento, no seu aspecto ativo, visível). Esta substância (o fogo) ilumina o olhar em profundidade do Artista, obriga-o a atingir o aspecto elementar dessas matérias, na procura de um novo tipo de substância altamente essencial. A busca da essência dessas matérias ocasiona movimentação, fermentação, agitação da imaginação que trabalha; o desejo de ultrapassar a face (aparência) desses elementos e penetrar no âmago que os completa.

Assim, o sonhador, depois de apreciar e revirar a poeira da terra, ou mesmo de se encantar com os reflexos da água, empreende uma viagem à profundidade dessas matérias, submetido ao desejo secreto de ultrapassar a crosta da terra, apreciando seu interior desconhecido, e ao desejo de se aprofundar no elemento água, desvendando seus íntimos segredos.

Depois da intervenção do fogo, a imaginação do Artista se refina, não aceita mais reproduzir velhas ideologias de vida.

Eis aqui a problemática central de Grande Sertão: Veredas, iniciada com a agitação visualizada em A hora e vez de Augusto Matraga: o fogo ativo e suas altas labaredas, domesticadas e ao mesmo tempo beligerantes, promovem a desordem no interior do universo ficcional, feito de terra e água. O Artista é testemunha dessa agitação e conflito e é cruel ao expor seus personagens ao efeito do fogo punidor, ao sofrimento produzido por um elemento que não possui meio-termos.

Em A hora e vez de Augusto Matraga, o personagem sofre a punição pelo fogo (mítico), pois o Artista necessita eliminá-lo da categoria de herói, transformando-o em personagem ficcional.

Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, sofre uma purificação pelo fogo: a chama, agora domesticada, impulsionando o olhar do criador para o alto, purifica-o, pois é a chama dos sentimentos conflituosos e interiorizados. A chama vertical não aceita mais as humildes substâncias da vida comunitária do sertão; urge desordenar o mundo ordenado das lembranças, urge castigar os heróis do passado, pois estes não souberam acompanhar a evolução dos tempos. O Artista hostiliza o passado, porque ama em demasia esse passado; há muita afinidade entre ele e o sertão. Nhô Augusto (herói) é castigado, transforma-se em complicado personagem moderno; Riobaldo (misto de herói épico e personagem romanesco) é purificado em prol de uma verdade: a verdade de sua própria essência ficional (estética modernista), que determinou a sua história infeliz, visto que jamais terá o prêmio de suas heróicas demandas, ou seja, o amor de Diadorim.

Os acontecimentos narrativos, insólitos, próprios da estética modernista, impõem os devidos finais aos personagens. Esses finais são apenas acontecimentos da modernidade, não possuem o aparato das antigas narrativas. O Artista se revela e revela o seu momento histórico, já que não possui o distanciamento e a grandiloqüência do narrador épico.

Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar. Assim seja que o senhor uma idéia se faça. Altas misérias nossas. Mesmo eu — que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo — mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim, passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro! — nanje os dias e as noites não recordo. (...) acho que se perpassou, no zúo de um minuto mito: briga de beija-flor. Agora que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor — se transforma, se compõem em uma espécie de decorrido formoso.315

O personagem desta estética não é herói à moda épica, é apenas vítima das ocorrências do cotidiano. A vítima (Riobaldo) é uma face ficcional do Artista; ele (o Artista) é portanto sua própria vítima, se queimando também no fogo purificador das lembranças abrasadoras. Agora, torna-se mais fácil perceber o pessimismo que caracteriza o personagem, refletor do pessimismo do homem moderno.

Segundo Bachelard, só a imaginação pessimista "insere o tumulto no âmago das substâncias"316, e quando compreende-se o pessimismo na obra de Guimarães Rosa, vê-se, por um outro ângulo, o todo de sua criação literária: é o pessimismo (ou a solidão) da modernidade (do discurso moderno) que macula o espaço puro do sertão roseano, refletor de antigas substâncias. Foi preciso que o sertão limpo estivesse em perigo de contaminação, para que o Artista moderno se sentisse motivado a conservar-lhe sua dimensão de pureza.




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