Seria um longo problema encontrar uma química
sentimental que nos faria determinar a nossa perturbação íntima através de
imagens no âmago das substâncias. Mas essa extroversão não seria vã. Ela nos
ajudaria a colocar nossos sofrimentos "para fora", a fazer nossos
sofrimentos funcionarem como se fossem imagens.308
Se
a química da hostilidade produziu uma
face de Riobaldo repleta de valentia e poder, a química sentimental refletirá a face do jagunço amoroso, narrando o
amor não concretizado. Parodiando Bachelard309, afirmamos: se Riobaldo é a
maior tentação do Artista, Diadorim é a tentação maior de Riobaldo.
Destacando-se o fato de o jagunço Diadorim se comportar como homem em mais de
quinhentas páginas, e, mesmo sabendo-se que Riobaldo, na velhice, já tem
conhecimento de toda a verdade, ou seja, que Diadorim era na realidade mulher,
as lembranças desse amor ainda incomodam o personagem-narrador. Assim, sob a
magnificência da Literatura, importam muito mais as horas de aflição e remorso
vividas pelo personagem, o mítico
macho que ama um outro homem. A química sentimental extravasa, nesta narrativa,
a perturbação íntima do Artista, seu conflito de homem sertanejo e ao mesmo
tempo moderno; denuncia um ser fragmentado: homem por excelência, repleto dos
valores do sertão, mas, hoje impregnado dos valores modernos e conhecedor dos
aspectos femininos que fazem parte da natureza masculina e vice versa,
dualidade esta hábil e ambiguamente destacada em Diadorim.
A
química sentimental em Grande Sertão: Veredas
também substancializa um combate. A intimidade do guerreiro Riobaldo está indiscutivelmente abalada. A agitação ativa desse amor simboliza o conflito da intimidade do Artista
moderno brasileiro: o homem nato do sertão e seu poder masculino conflituado
por deixar entrever a essência pura de sua sensibilidade estética com suas
nuanças femininas.
Bachelard auxilia-me:
Aqui está, para acabar de uma vez com essas pobres
imagens, uma página que não teremos dificuldade em psicanalisar, mediante um
simples sorriso. Ela é tirada de uma obra de tom sério, de uma obra que nunca
se afasta da maior seriedade. Se olharmos ao microscópio, diz Hemsterhuis, o
líquido seminal de um animal, há vários dias sem se aproximar de uma fêmea,
encontraremos "um número prodigioso dessas partículas, ou desses
animálculos de Leeuwenhock, mas todas em repouso e sem o menor sinal de
vida". Façam, ao contrário, com que uma única fêmea passe diante do macho
antes do exame microscópico, então "encontrarão todos esses animálculos
não só vivos, mas nadando todos no líquido, que aliás é espesso, com uma
rapidez prodigiosa". Deste modo, o sério filósofo confere ao
espermatozóide todas as agitações do desejo sexual. O ser microscópico registra
os incidentes psicológicos de um espírito "agitado" pelas paixões.310
Esta
citação é indispensável, para explicar os sentimentos conflituosos de Riobaldo
por Diadorim. A rejeição, a angústia, o nojo
do por tal sentimento são insuficientes para destruir o amor.
Senão,
vejamos:
(...) ele estava ali, mais vindo, a meia-mão de mim. E
eu — mal de não me consentir em nenhum afirmar das docementes coisas que são
feias — eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de
pensar. Mas sucedia uma duvidação, ranço de desgosto: eu versava aquilo em redondos
e quadrados. Só que coração meu podia mais. O corpo não traslada, mas muito
sabe, adivinha se não entende.311
O
coração do personagem pode mais, e
seu corpo adivinha a essência natural
feminina exalando do macho Diadorim.
O lado sexual do homem (seus espermas) percebe e responde ao chamado feminino,
também ativado. Os sentimentos amorosos do personagem estão dinamizados pelo
cheiro da fêmea, socialmente masculinizada. Os sentimentos estão em ebulição,
estão vivos, porque o demiurgo conhece os segredos de sua criação; o Criador
pode mais que o coração de sua criatura, pois conhece o poder da paixão por ele
idealizada e produzida.
Descrevendo
essa paixão, o Artista desenvolve sintagmaticamente um manual de moralidade,
destaca as regras básicas do mítico sertão, nas quais se insere o adágio
popular, reafirmador de velhas ideologias, homem
com homem dá lobisomem, e outros provérbios reformuladores desta mesma
orientação de moral. Questionando essa paixão, o Artista ultrapassa
paradigmaticamente o ensinamento moral, desenvolvendo profundas reflexões sobre
o amor e seus diversos níveis. Sua perturbação íntima reflete (extra-texto) a
perturbação do homem do século XX, abalado em seu poder, cedendo às exigências
da fêmea, que disputa com ele um lugar no cenário sócio-econômico. Reafirmando
tal ponto de vista, reforço que esta é uma interpretação extra-texto, uma vez
que o narrador procura resgatar velhas
tradições e ideologias.
O
mundo do sertão e seus personagens refazem antigas ideologias, mas o narrador
(ou um lado do mesmo) é moderno, ou seja, suas reflexões existenciais são uma
projeção da modernidade, portanto passíveis de serem questionadas pelo leitor.
O
Artista, nesses questionamentos de Riobaldo, coloca seus sofrimentos para fora, como orienta Bachelard. Suas
angústias de homem moderno, nativo do sertão, encontram respostas nas
indagações de seu personagem. Analisando o amor como coisa feia (amor entre homens) e, no final, mostrando que, em
verdade, Reinaldo/Diadorim é Maria Deodorina, analisa exatamente a química do
amor, pois dois seres diferentes (homem e mulher) não se enganam, quando o
assunto é uma mútua sensibilidade afetiva. Por estas razões, intuitivamente, o
personagem concebia sempre um instante de esquecimento das coisas racionais, uma duvidação, versando seus pensamentos
em redondos e quadrados, provando
inconscientemente que o coração não se
engana.
Esse
sentimento reflete a luta entre os
álcalis e os ácidos, de acordo com a filosofia bachelardiana, a luta entre o feminino e o masculino,
entre os opostos que se amam e não sabem que são opostos, já que a realidade
cotidiana os colocou como iguais no cenário da vida.
Ainda
Bachelard:
O homem saudável, para Hipócrates, é um composto
equilibrado de água e fogo. À menor indisposição, a luta dos dois elementos
hostis recomeça no corpo humano. Um surdo conflito manifesta-se ao menor
pretexto. Assim poderíamos inverter a perspectiva e preparar uma psicanálise da
saúde. A luta central seria captada na ambivalência do animus e da anima,
ambivalência que instala em cada um de nós uma luta de princípios contrários.312
Reportando-me
às minhas reflexões sobre os elementos na obra roseana, afirmei anteriormente
que os elementos eleitos eram a terra e a água amalgamadas. Afirmei também que
o fogo aparece como matéria de transição, a partir da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga,
alcançando o ápice dessa fase na narrativa romanesca Grande Sertão: Veredas.
Reafirmo,
esta fase operada pelo fogo em ebulição, a qual levará o Artista Guimarães Rosa
a uma nova reavaliação de seus elementos eleitos (terra e água), ainda
amalgamados, mas agora submetidos a uma visão profunda dessas mesmas matérias.
Em outras palavras, depois da transição operada pelo fogo, ele irá penetrar no
cerne desses elementos, revelando sua interioridade, para posteriormente
projetar-se no imaginário-em-aberto (cogito(4)), simbolizado pelo
elemento ar. Este elemento seria, de acordo com a nossa inclusiva e exclusiva
visão, um novo elemento de transição para o cogito(4), domínio que
inclui a ficção, distante temporalmente dos três cogitos normais da existência
ordinária.
Agora,
retomando a citação, posso inferir que há em Riobaldo (personagem saudável e
com sentimentos amorosos saudáveis) o composto equilibrado da água e do fogo,
seguindo a teoria de Hipócrates, reafirmada por Bachelard: a água, simbolizando
a pureza de seus sentimentos amorosos por Diadorim, e o fogo, simbolizando o
seu lado belicoso. A indisposição é o
seu amor impossível pelo também belicoso amigo. O engano histórico (ligado ao
plano da reprodução e não da criação literária) promove o conflito de Riobaldo,
possibilita o pretexto para que o
Artista desenvolva páginas e páginas de reflexão sobre esse amaldiçoado amor. O saudável personagem, com o seu composto de água e fogo equilibrado,
ou seja, homem em toda a extensão da
palavra, é um ser intimamente frágil, quando se trata de sentimentos amorosos.
Penso
agora na luta central, captada na ambivalência do animus e da anima. Penso primeiro na anima,
como alma, espírito ou mesmo outras significações que a reforçam, de acordo com
o momento histórico e seus valores: mente,
índole, coragem, valor, gênio, resolução, vontade, força, intenção. O animus embala e acalenta a intenção, ou seja, a anima.
O
animus de Riobaldo embala e acalenta
seu amor pelo jagunço Diadorim, e há uma ambivalência
(sentimentos opostos) prejudicando esse amor: os sentimentos feios de Riobaldo não se ajustam aos
sinceros sentimentos de Diadorim, já que este tem acesso à sua condição de
mulher, e aquele, no plano da História,
não conhece esse fato, apenas o pressente.
O
animus de Riobaldo, prejudicado por
essa ambivalência, apenas dele e não de
Diadorim, reforça sua anima
belicosa (sua índole, sua coragem, sua força, sua vontade de matar, por
exemplo); seu animus é pura intenção:
de ferir, ofender, atacar (animus laedendi); de matar (animus necandi); de possuir a coisa,
o amor de Diadorim, por exemplo (animus
rem sibi habendi); assim, anima e
animus instalados no interior do
personagem, representando a luta dos sentimentos condenados.
O
Artista literário apropria-se desses sentimentos contrários, recobrindo-os e,
ao mesmo tempo, desvelando-os com as imagens singulares de sua imaginação
agitada. Se a sua imaginação está agitada, é porque o seu interior está agastado,
sofrendo os males da modernidade, ansiando por um mundo perfeito, já conhecido
pelo passado infantil. As imagens desse conflito estão dinamizadas, porque ele
se vale do dinamismo próprio das crianças; recorda as estórias da infância,
colocando nelas as suas angústias de adulto. A história linear refaz a
ideologia sertaneja, enfraquecida pelo advento da modernidade, mas as longas
meditações do personagem revelam as lutas interiores do homem restrito às leis
degradadas da sociedade moderna.
Bachelard
diz: "toda luta é dualidade"313, e Rogel Samuel, em suas produtivas aulas,
altamente filosóficas, de Teoria Literária e ainda não registradas em livro,
afirma: todo contato é sexualizado.
Refazendo esses pensamentos (o pensamento do filósofo francês e o pensamento do
filósofo brasileiro), penso, por minha vez, na dualidade do amor de Riobaldo por Diadorim, sua luta contra esse
sentimento, como reflexo do íntimo contato entre os dois: eles se amam (um
instintivamente e outro conscientemente), porque sentem o apelo das essências
naturais, seja esse apelo homo ou heterossexual. Por questões notadamente
morais (já que a narrativa representa os valores puros do sertão, em confronto
com a prolífera criatividade do Artista moderno), Diadorim é mulher, ao final da
narrativa, refazendo velhos arquétipos, como o da virgem antiga e medieval, por
exemplo, nas vestes do guerreiro indomável.
Assim,
Rogel Samuel tem razão ao afirmar que todo
contato é sexualizado, seja contato entre mãe e filho(a), pai e filha(o),
amigo e amiga, amigo(a) e amigo(a), sacerdote e devota, professor(a) e aluna(o)
e outros. O ato da mãe, ao amamentar o filho recém-nascido, produz um contato
sexualizado. O amor entre o homem e a mulher (os opostos em luta constante),
principalmente, refletem essa dualidade e sexualização. O amor como eterna
briga, em que não há vencido nem vencedor.
Aqui,
no entanto, o surdo conflito alcança
proporções maiores, porque, para Riobaldo, o sentido de dualidade amorosa
inexiste, já que ele conhece Diadorim como um seu-igual. Esta dualidade é um conflito interno, ou seja, dualidade
entre o nível material e o nível espiritual. Assim, a dualidade, nesta
narrativa, ao contrário do que diz Bachelard, é o não-existir da dualidade: a luta interna foi provocada por essa falta de elementos químicos, escondida
pela imagem auto-imposta, que o faz distanciar-se sexualmente e aproximar-se
espiritualmente de Diadorim.
Para a imaginação, toda substância fica
necessariamente dividida assim que deixa de ser elementar. Essa divisão não é
plácida. Assim que a imaginação se refina, já não se satisfaz com uma
substância de vida simples e uniforme. A menor desordem imaginada no interior
das substâncias, o sonhador julga-se testemunha de uma agitação, de uma luta
pérfida.314
Aqui,
terra e água, substâncias materiais, ficam divididas em seus aspectos
primários, objetivos exteriores, depois da intromissão do elemento fogo,
substância calorífica e não dividida (não há fora e dentro nesse
elemento, no seu aspecto ativo, visível). Esta substância (o fogo) ilumina o
olhar em profundidade do Artista, obriga-o a atingir o aspecto elementar dessas
matérias, na procura de um novo tipo de substância altamente essencial. A busca
da essência dessas matérias ocasiona movimentação, fermentação, agitação da
imaginação que trabalha; o desejo de ultrapassar a face (aparência) desses
elementos e penetrar no âmago que os completa.
Assim,
o sonhador, depois de apreciar e revirar a poeira da terra, ou mesmo de
se encantar com os reflexos da água,
empreende uma viagem à profundidade
dessas matérias, submetido ao desejo secreto de ultrapassar a crosta da terra,
apreciando seu interior desconhecido, e ao desejo de se aprofundar no elemento
água, desvendando seus íntimos segredos.
Depois
da intervenção do fogo, a imaginação do Artista se refina, não aceita mais reproduzir velhas ideologias de vida.
Eis
aqui a problemática central de Grande Sertão: Veredas,
iniciada com a agitação visualizada
em A hora e
vez de Augusto Matraga: o fogo ativo e suas altas
labaredas, domesticadas e ao mesmo tempo beligerantes, promovem a desordem no interior do universo
ficcional, feito de terra e água. O Artista é testemunha dessa agitação e
conflito e é cruel ao expor seus
personagens ao efeito do fogo punidor, ao sofrimento produzido por um elemento
que não possui meio-termos.
Em
A hora e
vez de Augusto Matraga, o personagem sofre a punição pelo fogo (mítico), pois o
Artista necessita eliminá-lo da categoria de herói, transformando-o em
personagem ficcional.
Riobaldo,
em Grande
Sertão: Veredas, sofre uma purificação pelo fogo: a chama, agora domesticada, impulsionando o
olhar do criador para o alto, purifica-o, pois é a chama dos sentimentos
conflituosos e interiorizados. A chama vertical não aceita mais as humildes
substâncias da vida comunitária do sertão; urge desordenar o mundo ordenado das lembranças, urge castigar os heróis do passado, pois
estes não souberam acompanhar a evolução dos tempos. O Artista hostiliza o passado, porque ama em demasia esse passado; há muita afinidade entre ele e o sertão. Nhô
Augusto (herói) é castigado, transforma-se em complicado personagem moderno;
Riobaldo (misto de herói épico e personagem romanesco) é purificado em prol de
uma verdade: a verdade de sua própria essência ficional (estética modernista),
que determinou a sua história infeliz, visto que jamais terá o prêmio de suas
heróicas demandas, ou seja, o amor de Diadorim.
Os
acontecimentos narrativos,
insólitos, próprios da estética modernista, impõem os devidos finais aos
personagens. Esses finais são apenas acontecimentos
da modernidade, não possuem o aparato das antigas narrativas. O Artista se
revela e revela o seu momento histórico, já que não possui o distanciamento e a
grandiloqüência do narrador épico.
Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não
contar. Assim seja que o senhor uma idéia se faça. Altas misérias nossas. Mesmo
eu — que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-dobro de lumes, e
tudo, graúdo e miúdo, guardo — mesmo eu não acerto no descrever o que se passou
assim, passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas
dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro! — nanje os dias e as noites
não recordo. (...) acho que se perpassou, no zúo de um minuto mito: briga de
beija-flor. Agora que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a
lembrança demuda de valor — se transforma, se compõem em uma espécie de
decorrido formoso.315
O
personagem desta estética não é herói à moda épica, é apenas vítima das ocorrências do cotidiano. A vítima (Riobaldo) é uma face ficcional
do Artista; ele (o Artista) é portanto sua própria vítima, se queimando também
no fogo purificador das lembranças abrasadoras. Agora, torna-se mais fácil
perceber o pessimismo que caracteriza
o personagem, refletor do pessimismo do homem moderno.
Segundo
Bachelard, só a imaginação pessimista "insere o tumulto no âmago das
substâncias"316, e quando compreende-se o pessimismo na obra de Guimarães Rosa, vê-se,
por um outro ângulo, o todo de sua criação literária: é o pessimismo (ou a
solidão) da modernidade (do discurso moderno) que macula o espaço puro do sertão roseano, refletor de antigas
substâncias. Foi preciso que o sertão limpo
estivesse em perigo de contaminação, para que o Artista moderno se sentisse
motivado a conservar-lhe sua dimensão de pureza.
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