(...) Uma teoria do conhecimento do real que se
desinteressa dos valores oníricos se priva de alguns interesses que impelem ao
conhecimento.180
Bachelard
refere-se ao método da filosofia contemporânea, que rejeita a ciência da
matéria. Critica a adoção de um único método em detrimento dos outros; fala da
importância de se estar aberto a outros tipos de experiência; lamenta que
espíritos lúcidos neguem "os múltiplos vislumbres formados em zonas
psíquicas mais tenebrosas"181; enfim, demonstra a validade de se ocupar com os valores oníricos, pouco
dialetizados pelos filósofos atuais.
Os
teóricos da literatura compreendem a importância das outras ciências, para o
desvelamento do texto literário. Eduardo Portela, no seu livro Teoria Literária182, observa que a teoria
da literatura, apesar de se posicionar como disciplina autônoma, necessita do
apoio de disciplinas como a sociologia, antropologia, história, psicologia e
outras. A colaboração evidentemente é indispensável, mas somente o texto
indicará os métodos a serem utilizados.
Os
textos de Guimarães Rosa por exemplo impulsionam a uma abordagem filosófica.
Ele foi leitor de grandes filósofos, e isto se evidencia em sua obra. Em sua ENTREVISTA a Günter Lorenz fala de seu convívio com a
filosofia e de sua admiração por Unamuno; enfim, não descarta a possibilidade
de se posicionar como filósofo do sertão183.
Ao
atingir a segunda fase de sua trajetória literária, Guimarães Rosa penetra na
intimidade de sua matéria ficcional. Por isto, o retorno de Nhô Augusto ao
arraial do Murici é um poema de amor ao sertão. Ele, submetido ao seu papel de
ficcionista, observa as minúcias da caminhada, por intermédio da perspectiva
dialetizada já quase maravilhada, com os olhos do coração. Recorda pequeninas belezas de sua
terra natal (florezinhas, abelhas trabalhadoras, miúdas árvores, minúsculas
formigas); apresenta ao leitor a sua intimidade com o sertão; realça seus
próprios sonhos de infância.
Bachelard
é um conhecedor de palavras sonhadas:
Assinalamos que todo conhecimento da intimidade das
coisas é imediatamente um poema. Como indica claramente Francis Ponge, ao
trabalhar oniricamente no interior das coisas nos dirigimos à raiz sonhadora
das palavras.184
O
objetivo de Bachelard, ao desenvolver suas considerações filosóficas sobre a
água e os sonhos, foi "tentar mostrar, por trás das imagens que se
mostram, as imagens que se ocultam", ou seja, "ir à própria raiz da
força imaginante"185. Para o filósofo, a raiz da força imaginante só se exterioriza por
intermédio da imaginação que dá vida à causa material, das imagens que se
ocultam.
A
imaginação que dá vida à causa formal, ao contrário, se exterioriza a partir
das imagens que se mostram, em outras palavras, mediante um discurso objetivo,
metonímico, significador, intelectualmente falando, dos aspectos palpáveis da natureza, mesmo os aspectos
internos.
No
primeiro capítulo de A terra e os devaneios do repouso, Bachelard cita Hans Carossa: "O homem é a única criatura da
terra que tem vontade de olhar para o interior de outra"186. Com base nesta
citação, passa a desenvolver suas idéias sobre os devaneios da intimidade
material. Assim ressalta que, orientado por esta vontade, a visão do homem
torna-se aguçada, penetrante, detectando a passagem para a descoberta do que se
oculta nas coisas. Para ele, esta vontade não propicia ver realmente; apenas
permite formar estranhos devaneios tensos.
Guimarães
Rosa, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, procurou olhar o sertão de sua infância com os olhos da recordação,
ressaltando os aspectos ocultos do lugar, resgatando o além do vivenciado, com a ajuda dos devaneios poéticos, aliados à
ficção.
Evidentemente,
nesta primeira fase ficcional, não se aprofunda nos devaneios da intimidade
material, porque se encontra submetido aos dogmas das experiências
comunitárias, norteadoras de seu aprendizado sertanejo. Mesmo assim, começou,
servindo-se de uma linguagem primitiva, a remexer
uma camada singela da terra sertaneja, revelando-a, detectando pequenos
detalhes, que geralmente passam despercebidos a um olhar casual. Nesse estágio,
faz um burrinho velho entrar triunfalmente no mundo da reprodução ficcional. É o início da re-descoberta e do envolvimento
sentimental com um espaço visto muitas vezes no passado, voltando à cena por
intermédio de fragmentos da memória, das lembranças do que foi bem visto, e que será posteriormente bem sonhado.
Contando
a estória do burrinho, revela o poder encantatório das palavras, desfiando os
nomes pelos quais são conhecidas as diversas raças de bois no sertão. Reproduz,
assim, a criatividade do homem sertanejo, a sua riqueza vocabular,
ultrapassando os limites da língua socialmente imposta. Este início (Sagarana) é realmente um detectar superficial do sertão, mas posteriormente ele
obriga o leitor a repensar o princípio do ato
de ver, pelo prisma da perspectiva dialética, o que levará à visão em profundidade das fases
seguintes.
O
desejo de uma futura transposição da crosta
do sertão inicia-se a partir de A
hora e
vez de Augusto Matraga. Daí em diante, o Artista
passa a revolver a terra sertaneja (incluindo
Grande
Sertão: Veredas), posteriormente penetra-a de
maneira mais íntima, sob o predomínio do elemento ar, nas narrativas da
coletânea Primeiras estórias,
para apresentar na última fase um espaço ilimitado, submetido a um discurso
insólito e emaranhado.
A
partir da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, dialetiza o sertão, transforma-o em objeto, coloca-se em seu
interior, por meio do devaneio possessivo. Em Grande Sertão: Veredas, apodera-se de sua matéria ficcional, ainda dialetizando-a, mas também
engrandecendo-a e, na fase final, transforma e recria a própria criação, sob os
incitamentos da imaginação material dinâmica, sem limites visíveis.
A hora e vez de
Augusto Matraga exemplifica o primeiro momento de
passagem para o segundo cogito, notadamente dialético: o pequeno sertão da
infância começa seu processo de grandeza para o âmbito da universalidade. Nessa
fase, o Artista miniaturiza o sertão, para penetrar nele, questioná-lo,
transformá-lo. O fato de miniaturizá-lo não o diminui. Bachelard, citando Max
Jacob, ressalta: "O minúsculo é enorme, basta ir em imaginação
habitá-lo"187.
Para
que houvesse essa passagem, fez seu narrador romper com a perspectiva anulada das narrativas iniciais de Sagarana, que ressaltava apenas os aspectos exteriores do sertão e tolhia
"toda a curiosidade voltada para o interior das coisas"188. Depois da cisão,
passa a desenvolver pensamentos questionadores e a satisfazer sua profunda
curiosidade em relação às minúcias ocultas de um lugar até então, socialmente,
pouco admirado. O Artista sonha, a
partir desta mudança, o sertão regional de sua infância, procurando descobrir o
processo que o transformará num espaço diferente, visto ainda pelo ângulo da perspectiva dialética associada à perspectiva maravilhada (Grande Sertão: Veredas) e, posteriormente, recria um novo espaço, captado pelo ângulo da perspectiva de intensidade substancial
infinita189, espaço este encontrado em todas as narrativas sonhadas a partir de Primeiras estórias, livro cujo
título impõe a pensar e repensar a questão.
Retomando
o que foi dito até aqui, em sua primeira fase (Sagarana), o
Artista se encanta com a descoberta do sertão, realçando ficcionalmente apenas
imagens superficiais. Isto acontece, porque se encontra submetido aos sonhos
profundos, "onde germinam virtudes de origem"190; encontra-se no "centro da
noite", sob a inspiração apenas do relaxamento dos olhos. Sonha o sertão
da infância, vai ao centro de suas próprias recordações em movimentos
circulares, retirando de lá sua própria segurança psíquica, para enfrentar os inesperados da modernidade. As
narrativas de Sagarana, com a
exceção de A hora e
vez de Augusto Matraga, são o momento da busca do
sertão minúsculo, em seu sentido geográfico. Este é ainda um espaço estreito e
limitado, porque foi concebido sob as ordens do discurso linear, ligado aos
sonhos fechados e circulares do sono
profundo. Assim, reafirmando o que foi dito, A hora e vez de Augusto Matraga
é o momento do sertão miniaturizado, diferente da idéia de minúsculo como espaço
estreito.
Liberto dos mundos longínquos, das experiências
telescópicas, devolvido pela noite íntima e concentrada a uma existência
primitiva, o homem em seu sono profundo reencontra o espaço carnal formador.
Tem os mesmos sonhos de seus órgãos: seu corpo vive na simplicidade dos germes
espaciais reparadores, com vontade de restaurar as formas fundamentais.191
O
Artista da primeira fase reencontra seu espaço
carnal formador graças à intevenção das lembranças profundas (sonhos
profundos); cada personagem e cada coisa representando uma partícula de seu eu
sertanejo. Assim, traz à luz "raízes, vermes, bichinhos"192, pássaros,
sementinhas, mariposas, sapos, destacando o plano das imagens formais e sentimentais, confortavelmente instalado em seus
sonhos seguros e repousantes.
Mas
há um momento de aguda reflexão: que sertão é este que agora povoa seus sonhos
com seres imaginários? É realmente o pequeno lugar da infância? "Os
fenômenos do infinitamente pequeno assumem um aspecto cósmico"193. A hora e vez de Augusto Matraga é o
marco dessa fase dialética, em que o
sertão miniaturizado alcança uma grandeza diferente. Rompendo com a perspectiva
anulada, marca principal das narrativas de Sagarana, repensa
o princípio do ato de ver,
desenvolvendo questionamentos e reflexões; aberto à curiosidade de entender e
alcançar o interior da matéria.
Dialetizando o seu próprio ato de ver
e criar o mundo sertanejo, passa
também a remexer a terra, ainda fofa,
do sertão.
Por
meio da perspectiva dialética, transpõe os limites visíveis de sua matéria
ficcional, miniaturizando-a, olhando os tesouros de sua intimidade,
apoderando-se daquele espaço, amparado pelo poder da imaginação questionadora.
Consequentemente, faz o personagem Augusto sonhar com um "deus
valentão", astucioso, "que ficava lá em-cima, sem descuido,
garantindo tudo"194, porque será a partir de então que o seu narrador terá condições de
mudar os rumos da narrativa, sob a imposição de seu próprio ato de criar.
A
narrativa se modifica também graças ao elemento fogo, como marca de mudança
irreversível, e à "dialética do externo e interno"195 de que fala Bachelard e assim visualiza-se o
narrador se contagiando pelas minúcias do sertão, mas que na verdade são os
devaneios íntimos do Criador, os fragmentos de suas lembranças, buscando
recuperar os pequenos detalhes de um lugar do passado, detalhes irrecuperáveis
ao nível substancial.
Graças
à ficção, o Artista visita os
recantos do sertão, revê aspectos que
normalmente são olhados com pouca atenção, reflete
sobre o bem e o mal, acompanha o
personagem em seu retorno ao arraial do Murici, como se estivesse seguindo
"a Fada das Migalhas em sua carruagem grande como uma ervilha, com todas
as cerimônias dos velhos tempos"196, revelando um universo de intimidade bem
protegida.
Se consentimos dar uma realidade primária à imagem, se
não limitamos as imagens a simples expressões, sentimos subitamente que o
interior (...) possui o valor de uma felicidade primitiva. Viveríamos felizes
se reencontrássemos aí os sonhos primitivos da felicidade, da intimidade bem
protegida. Decerto, a felicidade é expansiva, tem necessidade de expansão. Mas
também tem necessidade de concentração, de intimidade. Assim, quando a
perdemos, quando a vida proporcionou "maus sonhos", sentimos saudade
da intimidade da felicidade perdida. Os primeiros devaneios ligados à imagem
íntima do objeto são devaneios de felicidade. Toda a intimidade objetiva
seguida em um devaneio natural é um germe
de felicidade.197
Para
o homem que venceu os obstáculos de origem, submetido às imposições da vida
moderna, as recordações do sertão da infância são devaneios de felicidade. Por
isto, como assinalo no capítulo "Sertão:
cenário da verdadeira representação do Artista", o narrador (alter ego do Artista) mostra apenas um determinado sertão, definindo
poeticamente a situação desse espaço. Em seus devaneios felizes não há lugar
para discutir a decadência do sertão geográfico, subserviente às imperfeições
do mundo moderno; quando muito, essas imperfeições são detectadas por um leitor-crítico, quase que intuitivamente, graças
às pequenas referências sócio-ideológicas, difíceis de serem eliminadas
totalmente do texto.
As
lembranças íntimas do passado sertanejo possuem o valor de uma felicidade
primitiva e perdida, simbolizam o retorno ao berço, aos primeiros passos
protegidos em direção ao futuro.
Aumentadas no sonho da infância, vejo de muito perto
as migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol.198
Aumentado
pelas recordações da infância, o
sertão real vai se transformar aos poucos em sertão roseano, pelo prisma da perspectiva dialética do Criador.
Graças a esta questionadora lente de aumento, o minúsculo se dilatará,
modificando o sentido da narrativa. O personagem Nhô Augusto, nas páginas
finais, retornando ao arraial do Murici, "achava muitas coisas bonitas, e
tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas nos caminhos do sertão"199. Guiado pelo
narrador, totalmente submetido aos devaneios de felicidade do Artista, pára, a
cada passo, para espiar/revelar cada
milímetro de intimidade da caminhada.
Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no
barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de
presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de
um pau-d'arco florido e de um solene pau-d'óleo, que ambos conservavam muito
de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez, teve de se escapar, depressa,
para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um
rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o
Itacambira, com a vaqueirama encourada — piquete de cinco na testa, em cada
talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando
cantigas do alto sertão.
E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um
urubu reumático, que claudicava estrada a fora, um pedaço, antes de querer
voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas dos
morros, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua
vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da
linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do
sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um
tié-piranga, ainda mais vermelho — e o tié-piranga pousou num ramo do
barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava,
porque tinha agora um ramo que era de mulungu.
Viajou nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam
dormida nas malocas, de tecto e paredes de palmas de buriti. Retornou à beira
do rio, onde os barranqueiros lhe davam comida, de pirão com pimenta e peixe.
Depois, seguiu.200
Sonhando
intimamente o sertão da infância e revelando substancialmente suas imagens, sem
abandonar as imagens poéticas, o Artista passa a aliar as duas forças
imaginantes (formal e material) de que dispõe. Nas fases seguintes, deixou que
as duas forças atuassem conjuntamente, mas houve um aprimoramento realçando a
imaginação material associada à imaginação criadora, valorizando mais os
aspectos íntimos do sertão, ligados a uma atividade material infinita; uma
imaginação saída dos devaneios infinitos, possuindo uma riqueza inesgotável,
muito próxima do autêntico lirismo.
Os
contos de Sagarana (anteriores) simbolizaram o momento dos sonhos móveis e
metamorfoseantes, mas ainda assim observa-se neles o já referido princípio de
densidade assinalado por Bachelard. Basta apreciar, por este aspecto, a
narrativa "São Marcos", apresentando já tal característica, mas ainda
ressaltando as "exuberâncias da beleza formal"201.
Valorizando
posteriormente a intimidade do sertão de origem, dando forma literária aos
devaneios infinitos, o Artista realça o seu poder de transformar uma realidade
historicamente deteriorada, sofrendo os abalos de uma mal-formação social numa
nova realidade, nascida da redescoberta
de uma intimidade vivenciada no passado, possuidora do poder misterioso e
contínuo dos sonhos bem sonhados. Essa intimidade foi resgatada do
infinitamente pequeno da realidade sertaneja. Ele revolveu a terra, posteriormente escavou a crosta, procurando a verdadeira raiz dessa realidade, e
conseguiu suplantar a matéria sem forma e sem vida das marcas exteriores que
pouco revelam.
Realçando
o infinitamente pequeno (o interior do sertão), sustentado pela tenacidade da
imaginação material, provou que este interior foi conquistado no infinito de sua própria profundeza de
indivíduo pensante, alcançando a seguir o infinito dos tempos.
Amplificando
o destino de Nhô Augusto, ligou o pequeno sertão geográfico ao grande Sertão
roseano de caráter universal. A lamparina de azeite da preta salvadora alcançou
os espaços do Mundo. A destruição do personagem experiente (sua morte) renovou
o universo narrativo.
Depois
da concentração diante da chama, surge Grande Sertão: Veredas,
submetido à perspectiva maravilhada,
mas ainda dialética, de um olhar que
vê com maior nitidez, pois se encontra iluminado pelo fogo das recordações da infância.
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