quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.10.2 - Uma perspectiva dialética

II.10.2 - Uma perspectiva dialética

(...) Uma teoria do conhecimento do real que se desinteressa dos valores oníricos se priva de alguns interesses que impelem ao conhecimento.180

Bachelard refere-se ao método da filosofia contemporânea, que rejeita a ciência da matéria. Critica a adoção de um único método em detrimento dos outros; fala da importância de se estar aberto a outros tipos de experiência; lamenta que espíritos lúcidos neguem "os múltiplos vislumbres formados em zonas psíquicas mais tenebrosas"181; enfim, demonstra a validade de se ocupar com os valores oníricos, pouco dialetizados pelos filósofos atuais.

Os teóricos da literatura compreendem a importância das outras ciências, para o desvelamento do texto literário. Eduardo Portela, no seu livro Teoria Literária182, observa que a teoria da literatura, apesar de se posicionar como disciplina autônoma, necessita do apoio de disciplinas como a sociologia, antropologia, história, psicologia e outras. A colaboração evidentemente é indispensável, mas somente o texto indicará os métodos a serem utilizados.

Os textos de Guimarães Rosa por exemplo impulsionam a uma abordagem filosófica. Ele foi leitor de grandes filósofos, e isto se evidencia em sua obra. Em sua ENTREVISTA a Günter Lorenz fala de seu convívio com a filosofia e de sua admiração por Unamuno; enfim, não descarta a possibilidade de se posicionar como filósofo do sertão183.

Ao atingir a segunda fase de sua trajetória literária, Guimarães Rosa penetra na intimidade de sua matéria ficcional. Por isto, o retorno de Nhô Augusto ao arraial do Murici é um poema de amor ao sertão. Ele, submetido ao seu papel de ficcionista, observa as minúcias da caminhada, por intermédio da perspectiva dialetizada já quase maravilhada, com os olhos do coração. Recorda pequeninas belezas de sua terra natal (florezinhas, abelhas trabalhadoras, miúdas árvores, minúsculas formigas); apresenta ao leitor a sua intimidade com o sertão; realça seus próprios sonhos de infância.
Bachelard é um conhecedor de palavras sonhadas:

Assinalamos que todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema. Como indica claramente Francis Ponge, ao trabalhar oniricamente no interior das coisas nos dirigimos à raiz sonhadora das palavras.184

O objetivo de Bachelard, ao desenvolver suas considerações filosóficas sobre a água e os sonhos, foi "tentar mostrar, por trás das imagens que se mostram, as imagens que se ocultam", ou seja, "ir à própria raiz da força imaginante"185. Para o filósofo, a raiz da força imaginante só se exterioriza por intermédio da imaginação que dá vida à causa material, das imagens que se ocultam.

A imaginação que dá vida à causa formal, ao contrário, se exterioriza a partir das imagens que se mostram, em outras palavras, mediante um discurso objetivo, metonímico, significador, intelectualmente falando, dos aspectos palpáveis da natureza, mesmo os aspectos internos.

No primeiro capítulo de A terra e os devaneios do repouso, Bachelard cita Hans Carossa: "O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior de outra"186. Com base nesta citação, passa a desenvolver suas idéias sobre os devaneios da intimidade material. Assim ressalta que, orientado por esta vontade, a visão do homem torna-se aguçada, penetrante, detectando a passagem para a descoberta do que se oculta nas coisas. Para ele, esta vontade não propicia ver realmente; apenas permite formar estranhos devaneios tensos.

Guimarães Rosa, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, procurou olhar o sertão de sua infância com os olhos da recordação, ressaltando os aspectos ocultos do lugar, resgatando o além do vivenciado, com a ajuda dos devaneios poéticos, aliados à ficção.

Evidentemente, nesta primeira fase ficcional, não se aprofunda nos devaneios da intimidade material, porque se encontra submetido aos dogmas das experiências comunitárias, norteadoras de seu aprendizado sertanejo. Mesmo assim, começou, servindo-se de uma linguagem primitiva, a remexer uma camada singela da terra sertaneja, revelando-a, detectando pequenos detalhes, que geralmente passam despercebidos a um olhar casual. Nesse estágio, faz um burrinho velho entrar triunfalmente no mundo da reprodução ficcional. É o início da re-descoberta e do envolvimento sentimental com um espaço visto muitas vezes no passado, voltando à cena por intermédio de fragmentos da memória, das lembranças do que foi bem visto, e que será posteriormente bem sonhado.

Contando a estória do burrinho, revela o poder encantatório das palavras, desfiando os nomes pelos quais são conhecidas as diversas raças de bois no sertão. Reproduz, assim, a criatividade do homem sertanejo, a sua riqueza vocabular, ultrapassando os limites da língua socialmente imposta. Este início (Sagarana) é realmente um detectar superficial do sertão, mas posteriormente ele obriga o leitor a repensar o princípio do ato de ver, pelo prisma da perspectiva dialética, o que levará à visão em profundidade das fases seguintes.

O desejo de uma futura transposição da crosta do sertão inicia-se a partir de A hora e vez de Augusto Matraga. Daí em diante, o Artista passa a revolver a terra sertaneja (incluindo Grande Sertão: Veredas), posteriormente penetra-a de maneira mais íntima, sob o predomínio do elemento ar, nas narrativas da coletânea Primeiras estórias, para apresentar na última fase um espaço ilimitado, submetido a um discurso insólito e emaranhado.

A partir da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, dialetiza o sertão, transforma-o em objeto, coloca-se em seu interior, por meio do devaneio possessivo. Em Grande Sertão: Veredas, apodera-se de sua matéria ficcional, ainda dialetizando-a, mas também engrandecendo-a e, na fase final, transforma e recria a própria criação, sob os incitamentos da imaginação material dinâmica, sem limites visíveis.


A hora e vez de Augusto Matraga exemplifica o primeiro momento de passagem para o segundo cogito, notadamente dialético: o pequeno sertão da infância começa seu processo de grandeza para o âmbito da universalidade. Nessa fase, o Artista miniaturiza o sertão, para penetrar nele, questioná-lo, transformá-lo. O fato de miniaturizá-lo não o diminui. Bachelard, citando Max Jacob, ressalta: "O minúsculo é enorme, basta ir em imaginação habitá-lo"187.

Para que houvesse essa passagem, fez seu narrador romper com a perspectiva anulada das narrativas iniciais de Sagarana, que ressaltava apenas os aspectos exteriores do sertão e tolhia "toda a curiosidade voltada para o interior das coisas"188. Depois da cisão, passa a desenvolver pensamentos questionadores e a satisfazer sua profunda curiosidade em relação às minúcias ocultas de um lugar até então, socialmente, pouco admirado. O Artista sonha, a partir desta mudança, o sertão regional de sua infância, procurando descobrir o processo que o transformará num espaço diferente, visto ainda pelo ângulo da perspectiva dialética associada à perspectiva maravilhada (Grande Sertão: Veredas) e, posteriormente, recria um novo espaço, captado pelo ângulo da perspectiva de intensidade substancial infinita189, espaço este encontrado em todas as narrativas sonhadas a partir de Primeiras estórias, livro cujo título impõe a pensar e repensar a questão.

Retomando o que foi dito até aqui, em sua primeira fase (Sagarana), o Artista se encanta com a descoberta do sertão, realçando ficcionalmente apenas imagens superficiais. Isto acontece, porque se encontra submetido aos sonhos profundos, "onde germinam virtudes de origem"190; encontra-se no "centro da noite", sob a inspiração apenas do relaxamento dos olhos. Sonha o sertão da infância, vai ao centro de suas próprias recordações em movimentos circulares, retirando de lá sua própria segurança psíquica, para enfrentar os inesperados da modernidade. As narrativas de Sagarana, com a exceção de A hora e vez de Augusto Matraga, são o momento da busca do sertão minúsculo, em seu sentido geográfico. Este é ainda um espaço estreito e limitado, porque foi concebido sob as ordens do discurso linear, ligado aos sonhos fechados e circulares do sono profundo. Assim, reafirmando o que foi dito, A hora e vez de Augusto Matraga é o momento do sertão miniaturizado, diferente da idéia de minúsculo como espaço estreito.

Liberto dos mundos longínquos, das experiências telescópicas, devolvido pela noite íntima e concentrada a uma existência primitiva, o homem em seu sono profundo reencontra o espaço carnal formador. Tem os mesmos sonhos de seus órgãos: seu corpo vive na simplicidade dos germes espaciais reparadores, com vontade de restaurar as formas fundamentais.191

O Artista da primeira fase reencontra seu espaço carnal formador graças à intevenção das lembranças profundas (sonhos profundos); cada personagem e cada coisa representando uma partícula de seu eu sertanejo. Assim, traz à luz "raízes, vermes, bichinhos"192, pássaros, sementinhas, mariposas, sapos, destacando o plano das imagens formais e sentimentais, confortavelmente instalado em seus sonhos seguros e repousantes.

Mas há um momento de aguda reflexão: que sertão é este que agora povoa seus sonhos com seres imaginários? É realmente o pequeno lugar da infância? "Os fenômenos do infinitamente pequeno assumem um aspecto cósmico"193. A hora e vez de Augusto Matraga é o marco dessa fase dialética, em que o sertão miniaturizado alcança uma grandeza diferente. Rompendo com a perspectiva anulada, marca principal das narrativas de Sagarana, repensa o princípio do ato de ver, desenvolvendo questionamentos e reflexões; aberto à curiosidade de entender e alcançar o interior da matéria. Dialetizando o seu próprio ato de ver e criar o mundo sertanejo, passa também a remexer a terra, ainda fofa, do sertão.

Por meio da perspectiva dialética, transpõe os limites visíveis de sua matéria ficcional, miniaturizando-a, olhando os tesouros de sua intimidade, apoderando-se daquele espaço, amparado pelo poder da imaginação questionadora. Consequentemente, faz o personagem Augusto sonhar com um "deus valentão", astucioso, "que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo"194, porque será a partir de então que o seu narrador terá condições de mudar os rumos da narrativa, sob a imposição de seu próprio ato de criar.

A narrativa se modifica também graças ao elemento fogo, como marca de mudança irreversível, e à "dialética do externo e interno"195 de que fala Bachelard e assim visualiza-se o narrador se contagiando pelas minúcias do sertão, mas que na verdade são os devaneios íntimos do Criador, os fragmentos de suas lembranças, buscando recuperar os pequenos detalhes de um lugar do passado, detalhes irrecuperáveis ao nível substancial.

Graças à ficção, o Artista visita os recantos do sertão, revê aspectos que normalmente são olhados com pouca atenção, reflete sobre o bem e o mal, acompanha o personagem em seu retorno ao arraial do Murici, como se estivesse seguindo "a Fada das Migalhas em sua carruagem grande como uma ervilha, com todas as cerimônias dos velhos tempos"196, revelando um universo de intimidade bem protegida.

Se consentimos dar uma realidade primária à imagem, se não limitamos as imagens a simples expressões, sentimos subitamente que o interior (...) possui o valor de uma felicidade primitiva. Viveríamos felizes se reencontrássemos aí os sonhos primitivos da felicidade, da intimidade bem protegida. Decerto, a felicidade é expansiva, tem necessidade de expansão. Mas também tem necessidade de concentração, de intimidade. Assim, quando a perdemos, quando a vida proporcionou "maus sonhos", sentimos saudade da intimidade da felicidade perdida. Os primeiros devaneios ligados à imagem íntima do objeto são devaneios de felicidade. Toda a intimidade objetiva seguida em um devaneio natural é um germe de felicidade.197

Para o homem que venceu os obstáculos de origem, submetido às imposições da vida moderna, as recordações do sertão da infância são devaneios de felicidade. Por isto, como assinalo no capítulo "Sertão: cenário da verdadeira representação do Artista", o narrador (alter ego do Artista) mostra apenas um determinado sertão, definindo poeticamente a situação desse espaço. Em seus devaneios felizes não há lugar para discutir a decadência do sertão geográfico, subserviente às imperfeições do mundo moderno; quando muito, essas imperfeições são detectadas por um leitor-crítico, quase que intuitivamente, graças às pequenas referências sócio-ideológicas, difíceis de serem eliminadas totalmente do texto.

As lembranças íntimas do passado sertanejo possuem o valor de uma felicidade primitiva e perdida, simbolizam o retorno ao berço, aos primeiros passos protegidos em direção ao futuro.

Aumentadas no sonho da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol.198

Aumentado pelas recordações da infância, o sertão real vai se transformar aos poucos em sertão roseano, pelo prisma da perspectiva dialética do Criador. Graças a esta questionadora lente de aumento, o minúsculo se dilatará, modificando o sentido da narrativa. O personagem Nhô Augusto, nas páginas finais, retornando ao arraial do Murici, "achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas nos caminhos do sertão"199. Guiado pelo narrador, totalmente submetido aos devaneios de felicidade do Artista, pára, a cada passo, para espiar/revelar cada milímetro de intimidade da caminhada.

Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d'arco florido e de um solene pau-d'óleo, que ambos conservavam muito de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez, teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão.

E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava estrada a fora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga, ainda mais vermelho — e o tié-piranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu.

Viajou nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas malocas, de tecto e paredes de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, onde os barranqueiros lhe davam comida, de pirão com pimenta e peixe. Depois, seguiu.200

Sonhando intimamente o sertão da infância e revelando substancialmente suas imagens, sem abandonar as imagens poéticas, o Artista passa a aliar as duas forças imaginantes (formal e material) de que dispõe. Nas fases seguintes, deixou que as duas forças atuassem conjuntamente, mas houve um aprimoramento realçando a imaginação material associada à imaginação criadora, valorizando mais os aspectos íntimos do sertão, ligados a uma atividade material infinita; uma imaginação saída dos devaneios infinitos, possuindo uma riqueza inesgotável, muito próxima do autêntico lirismo.

Os contos de Sagarana (anteriores) simbolizaram o momento dos sonhos móveis e metamorfoseantes, mas ainda assim observa-se neles o já referido princípio de densidade assinalado por Bachelard. Basta apreciar, por este aspecto, a narrativa "São Marcos", apresentando já tal característica, mas ainda ressaltando as "exuberâncias da beleza formal"201.

Valorizando posteriormente a intimidade do sertão de origem, dando forma literária aos devaneios infinitos, o Artista realça o seu poder de transformar uma realidade historicamente deteriorada, sofrendo os abalos de uma mal-formação social numa nova realidade, nascida da redescoberta de uma intimidade vivenciada no passado, possuidora do poder misterioso e contínuo dos sonhos bem sonhados. Essa intimidade foi resgatada do infinitamente pequeno da realidade sertaneja. Ele revolveu a terra, posteriormente escavou a crosta, procurando a verdadeira raiz dessa realidade, e conseguiu suplantar a matéria sem forma e sem vida das marcas exteriores que pouco revelam.

Realçando o infinitamente pequeno (o interior do sertão), sustentado pela tenacidade da imaginação material, provou que este interior foi conquistado no infinito de sua própria profundeza de indivíduo pensante, alcançando a seguir o infinito dos tempos.
  

Amplificando o destino de Nhô Augusto, ligou o pequeno sertão geográfico ao grande Sertão roseano de caráter universal. A lamparina de azeite da preta salvadora alcançou os espaços do Mundo. A destruição do personagem experiente (sua morte) renovou o universo narrativo.

Depois da concentração diante da chama, surge Grande Sertão: Veredas, submetido à perspectiva maravilhada, mas ainda dialética, de um olhar que vê com maior nitidez, pois se encontra iluminado pelo fogo das recordações da infância.



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