Em
sua última fase ficcional, o Artista deforma
o sertão da infância e adolescência. As formas conceituais que o compuseram até
então morrem com Diadorim, em Grande Sertão: Veredas.
Essa longa narrativa marca o fim de um ciclo de criação literária, em que as
substâncias sociais, míticas e ficcionais se amalgamavam, materializadas e
questionadoras.
Depois
da intromissão do elemento fogo, depois de um longo narrar, dialético e
maravilhado, as terras e rios do sertão roseano já não serão recriados sob as
antigas perspectivas ficcionais que comandavam o olhar e mão do sonhador.
Agora, um novo elemento, o ar, direciona o Artista, sustentando a sua íntima
escalada aos cogitos superiores do pensamento puro. Nesta fase, e em outra dimensão
do pensamento, ele está hipnotizado pelo seu novo vôo horizontal, depois da
ascensão vertical ao autêntico individualismo. Afastado agora das imagens primeiras de sua matéria
ficcional e propenso a mudar o seu ângulo de visão, vê-se submetido unicamente
a seus próprios devaneios dinâmicos.
Se
antes já manuseava um discurso dialetal insolitíssimo, a partir de Primeiras estórias, o discurso ficcional será totalmente aberto aos movimentos aéreos de
sua poderosa imaginação. A novidade, de ora em diante, não será mais a
descoberta de um sertão pitoresco e mítico: será o próprio ato de criar um
mundo além das imposições conceituais.
Sua
imaginação literária, neste último estágio, livre dos conceitos cerceadores,
abeira-se do plano da loucura ou, usando outra terminologia, da espiritualidade transcendente. O reino da pura imaginação — plano
literário — seria para nós, teóricos da literatura, o cogito(4)
pensado, com reservas, por Bachelard, já que, para ele, apenas três cogitos
permitiriam ao ser pensante uma vida normal e equilibrada. O cogito(3),
no caso, já ocasionaria um distanciamento entre o indivíduo que o alcançasse e
a massa, solidamente ancorada no cogito(1) das ideologias sacralizadas.
A
imaginação, segundo Bachelard, seria "a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção"375, ao contrário do que
a psicologia moderna ensina, ou seja, que a imaginação é a faculdade de formar imagens.
A
partir de Primeiras
estórias, o Artista começa a deformar criativamente tudo o que fora re-formado nas anteriores páginas de recuperação ficcional do
sertão. O encantamento inicial, os inúmeros questionamentos existenciais, os
pensamentos transmutativos, eram características de um escritor de substâncias
palpáveis, que, naquela fase, vivenciava o cogito(2), plano habitado
apenas por uma pequena porção de seres pensantes.
As
verticais labaredas do fogo
consumidor — que inegavelmente marcaram Grande Sertão: Veredas: labaredas de amor e labaredas de guerra — induziram-no a um íntimo
contato com o elemento ar. Isto porque o ar
em movimento é uma espécie de fogo. Quando frio, o ar está repleto de
milhares de partículas, que por sua vez estão repletas de energia potencial,
inertes; quando quente, as partículas entram em um movimento tão acelerado, que
sua energia potencial é transformada em energia cinética (movimento), podendo
ser então vislumbrada sob a forma de
energia luminosa ou energia calorífica. Mas isto não é privilégio apenas do ar:
a lava de um vulcão é a terra transformada em fogo; o vapor de um geiser é a água também transformada em fogo. É importante
salientar que, quando uso aqui nestes exemplos a palavra fogo, estou a referir-me a um fogo
microscópico, ou seja, a própria energia calorífica, e portanto não quero
dizer que um e outro elementos possam coexistir em harmonia, pois, por exemplo,
uma chuva pode apagar um incêndio, um sopro pode apagar uma vela, um punhado de
terra pode extingüir uma fogueira. Em contrapartida, quando o fogo é o elemento
dominante nesta disputa de elementos,
ele pode modificar a estrutura da terra e/ou da água, liquefazendo-as ou
vaporizando-as. Quando associado ao ar, o fogo se harmoniza com ele, mas
reafirmo que nem sempre o ar se harmoniza com o fogo (o sopro e a vela, como já
foi mencionado). O ar, volúvel e infiel, acasala-se indistintamente com a
terra, a água e o fogo.
Dominante
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D o m in a d o
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Terra
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Água
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Ar
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Fogo
|
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Terra
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terra
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água ajusta
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ar ajusta
|
apaga
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Água
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dilui a terra
|
água
|
ar ajusta
|
apaga
|
Ar
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espalha terra
|
espalha água
|
ar
|
apaga
|
Fogo
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liquefaz
|
vaporiza
|
ar harmoniza
|
fogo
|
Recuperando
os pensamentos iniciais deste capítulo, a imaginação literária (o que em
Ciência da Literatura denomina-se Criação
Literária), ligada à linguagem, possibilita ao Ficcionista libertar-se da
realidade, criando imagens diferentes das imagens usuais.
Assim,
já na primeira narrativa de Primeiras estórias,
"As margens da alegria", o Criador Literário, planando livremente no
seu cogito particular, apodera-se da imaginação infantil, imita o pensamento da
criança e cria um mundo diferente, renovado, só acessível a poucos leitores.
Nesta
fase, o Artista vivencia o cogito(3), como indivíduo ainda ligado às normas do bom senso, mas, literariamente, penetra aos poucos na
camada insólita do cogito(4) revolvendo o material amorfo que a
compõe, e retirando de lá um discurso instável, ainda não constituído,
provocador, denunciador da mobilidade das imagens376. Conhecedor desses dois cogitos
superiores, está muito à vontade
nesses dois planos distintos do pensamento. Graças a esses conhecimentos, é
muito fácil para o indivíduo (indivíduo no seu sentido etimológico) ver a
realidade de acordo com o olhar da criança, perceber as nuanças mentais dos
loucos, resgatar e renovar imagens antigas ou ultrapassar os limites do
possível.
Os
personagens da coletânea Primeiras estórias
convivem com o invisível, com a desordem,
seja ela lingüística ou social, porque agora aquele deus-que-garante-tudo, que se insinuou em A hora e vez de Augusto Matraga, está plenamente consciente de seu poder de criação. Nestes cogitos superiores,
a poesia sem forma vaga fluidamente,
propiciando ao ficcionista-poeta-do-sertão apreendê-la em sua essência. Nas
narrativas de Primeiras estórias e nas
obras seguintes, ele manipula o próprio inconsciente e o inconsciente do
leitor. O antigo sonhador de sonhos profundos da meia-noite psíquica (sonhos de
origem, enovelados e vitais) está agora nos últimos estágios dos sonhos do
amanhecer, buscando as linhas retas e verticais que o levarão ao infinito. Com
o olhar semi-cerrado e as mãos firmes ele não se incomoda mais com as
exigências substanciais da realidade vital.
O
Artista retoma conscientemente a perspectiva dialética iniciada nas páginas de A hora e vez de
Augusto Matraga, mas agora associa-a a uma nova
perspectiva (não mais a maravilhada, ligada à matéria mítica), associa-a à perspectiva de intensidade substancial
infinita. O ar, a substância que a compõe, é invisível, mas é
cientificamente comprovado como matéria integrante dos quatro elementos que
sustentam a vida.
Na
primeira narrativa de Primeiras estórias,
"As margens da alegria", o Artista inicia o seu processo de elevação
psíquica ao âmbito da criação literária: sua imaginação voa livremente, intimamente ligada aos devaneios da vontade, distanciando-se cada vez mais do domínio da
forma constituída eruditamente. Narra a aventura do menino do campo na grande
cidade em construção, colocando em relevo a poesia que surge do nada,
apreendida somente pelo olhar da criança, normalmente atenta aos convites da
imaginação. Instalado nesse plano elevado, no cogito(3) de sua
individualidade, ele agora possui o poder de duplicar e recriar literariamente
a pureza de seus primeiros anos de vida, socialmente rejeitada nos anos de
mocidade.
Nesta
fase aérea, está tomado pela vertigem das alturas e não é sem razão que o
título de sua primeira narrativa seja "As margens da alegria". Ele
descobriu a linha divisória que separa a realidade comum da realidade dinâmica
do mundo da pura intuição e procura criativamente
transpô-la para a ficção. Por ora, vislumbra essas margens inóspitas aos
não-iniciados, mas muito em breve, narrativas adiante, provará que alcançou o
outro lado da terceira margem, surreal, na narrativa "A terceira margem do
rio", sob o patrocínio da água dinamizada, situada no infinito dos sonhos
primordiais, materializada e eternizada pelo seu poder de criação. Nesse
momento, sob o domínio do ar, procura intuitivamente se desligar das
coordenadas do espaço e do tempo linear; procura ultrapassar os limites do
regionalismo, em direção ao autenticamente universal.
A sua íntima ligação com a
matéria água não foi rejeitada. A água aqui se
desprende da terra e se une ao ar. Eis agora o momento das imagens voláteis da
água evaporada. As cores, por exemplo, em algumas narrativas de Primeiras estórias, já não estão submetidas às imagens estáveis, refletoras do intenso
colorido das matas e rios do sertão. As cores, agora, obedecem à ação imaginante do Artista, livres das
imagens primeiras, ligadas à memória familiar. A cor azul, em "As margens
da alegria", é o azul que se localiza na essência do ar.
Seu lugar era o da janelinha, para o móvel do mundo.
Entregavam-lhe revistas de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele
mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O Menino
deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada
amabilidade, o azul só de ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão
cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e
vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos,
cavalos e bois — assim insetos? Voavam supremamente.377
O
azul só de ar é a água evaporada, a
água em suspenso, além dos outros elementos: oxigênio, nitrogênio, gás
carbônico; é o azul, quase branco, que se localiza na essência do ar.
O
sonhador do sertão está vivendo agora os ousados devaneios de uma nova e
original tintura íntima. Esta nova tintura valoriza as substâncias do sertão,
impregna-as de virtudes derramadas: o azul é diferente, porque é só de ar; as roças e campos, vistos de
cima (ou do plano do cogito(3)), apresentam uma coloração diferente
(um verde que se ia a amarelos e
vermelhos e a pardo e a verde), ou seja, apresentam o verde e suas
gradações, incluindo a cor vermelha (essencialmente diversa do verde), para
reforçar o poder de transformação de sua tintura íntima.
Ao
longo de sua criação literária, o Artista sertanejo passou por quatro fases,
correspondentes a sua escalada mental: do cogito(1), vital, até o
cogito(3) (plano da individualidade consciente) e o cogito(4),
plano espiritual.
No
início, em Sagarana, ligado à imaginação formal e às matérias terra e água amalgamadas, o
Artista apresentou apenas o colorido exterior do sertão, já que se encontrava
submetido temporariamente à sedução da superfície. A água, nessa primeira fase,
era um elemento ainda frágil, ainda passivo, não possuindo a gota de tintura e sua virtude tingidora
de que fala Bachelard, ao caracterizar os pensamentos submetidos aos devaneios
da vontade.
Na
segunda fase, A hora e vez de Augusto Matraga (fase de
transição para uma futura retomada dos elementos terra e água), o Artista elege
o fogo em seu aspecto passivo como matéria central, propiciadora de renovação
discursiva. Mas o fogo, nessa pequena narrativa, enquanto elemento, é fugaz e
não lhe permite atingir verticalmente os valores
supremos do colorido do sertão.
Na
terceira fase, em Grande Sertão: Veredas, o
fogo surge dinâmico, impulsionado pelas perspectivas dialética e maravilhada,
iluminando e consumindo a tintura íntima
do sonhador, ligada à água e à terra, ou seja, às cores da terra e dos rios
sertanejos. O fogo das paixões bélicas e amorosas transforma o cenário, oferece
um novo colorido às lembranças do sertão, engrandece um espaço singelo, aquece
e dinamiza as matérias terra e água amalgamadas, remodelando-as para a
eternidade. A partir dessa fase, o Artista transforma e tinge o sertão, dá-lhe um novo colorido, um poder atemporal, saído
do poder de transformação da imaginação criadora bem direcionada, ligada
indiscutivelmente aos devaneios da vontade.
Agora, em Primeiras
estórias, o azul
é só de ar e o verde contém todas as
cores em sua composição. A tintura íntima
do sonhador, revigorada pelo elemento ar ativado, revaloriza o verde de um
sertão diferente, pois este dito sertão, de ora em diante, será para sempre
verde em sua essência.
As cores são ações da luz, ações e esforços. Como
compreender essas cores sem participar de seu ato profundo? (...) E qual é o
ato da cor, senão tingir?
Esse ato de tingir considerado em toda a sua força
primária, mostra-se de imediato como uma vontade da mão, de uma mão que aperta
o tecido até o último fio. A mão do tintureiro é uma mão de amassador que quer
atingir o fundo da matéria, o absoluto da sutileza. A tintura vai
também ao centro da matéria.378
Em
"As margens da alegria", as cores
são ações da luz e estão dinamizadas pelo elemento ar. As cores representam
a dialética da alegria e tristeza, revelando ao Leitor os estados emocionais do
Menino; este, graças a esta viagem inventada
no feliz, tinha tudo de uma vez, e
nada, ante a mente. No decorrer da viagem aérea, ele tinha apenas a luz e a longa-longa-longa nuvem. Esta viagem inventada saiu da vontade de criação ficcional e propiciou
ao leitor participar também da aventura infantil.
As
cores, nesta narrativa, foram criadas por intermédio das ações e esforços do Artista. Sua vontade de ultrapassar os antigos
limites narrativos impulsionou sua mão, fazendo-o compreender o estado de
espírito do Menino e participar ao mesmo tempo do ato profundo de reproduzi-lo.
A natureza, apreendida pela sensibilidade criativa, mostra suas cores de acordo
com os sentimentos do Menino, não do narrador. No âmbito do cogito(3),
o escritor imita e duplica as emoções
da antiga infância, até então adormecidas em sua consciência. O Menino é seu
alter ego infantil; é o símbolo de uma infância bem administrada, vivida no reino das emoções maiores.
O
Artista literário aperta o tecido
(narrativo) até o último fio, buscando o fundo da matéria do sertão e
o absoluto da sutileza das cores que
a compõe. Graças a esta nova tintura,
que fortalece suas íntimas convicções sobre aquilo que narra, chegará
gradativamente aos limites do cogito(4) (freqüentando-o
esporadicamente), plano este de difícil ascensão, situado no tempo espiritual e
fora dos limites vitais; plano da insolidez do discurso, do emaranhado
discursivo, apreendido em várias narrativas de Primeiras estórias,
Estas
estórias, até o final. Assim, pela perspectiva de intensidade substancial
infinita todas as imagens recebem uma coloração que as distingue,
simbolizando os sentimentos do personagem.
Percebe-se,
nesta nova fase da criação literária, que aos poucos o narrador perde a vez para o próprio Artista, já que a sua vontade
é mais forte que os dogmas ficcionais. Em seu plano solitário, ele reconhece o
seu perigoso poder, ou seja, o seu poder de vida e de morte contra o narrador.
A narrativa "Meu tio, o Iawaretê", da coletânea Estas estórias, reflete o clímax dessa fase de insolidez discursiva, em que o Criador
literário, presente de maneira indireta na narrativa como um estranho, possui o
poder de matar o personagem-narrador, e, mais assustador ainda, narrador em
primeira pessoa. O estranho, que pernoita na cabana de Iawaretê (o narrador) e
o mata no final, é simbolicamente o próprio Artista, definitivamente neo-moderno, que resolve, agora já
distanciado dos valores primordiais, matar
o narrador do sertão.
"A
verdadeira viagem da imaginação é a viagem ao país do imaginário, no próprio
domínio do imaginário"379. A partir de Primeiras estórias, o
Artista brasileiro, sertanejo por direito de nascimento, se ajusta ao mobilismo
do ar, livre das descrições do real, na sua prodigiosa escalada ao infinito.
"Meu tio, o Iawaretê" representa o ápice dessa escalada, a suprema
transcendência e adesão aos valores da individualidade consciente.
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