quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.11.2 - O narrador perde a vez

II.11.2 - O narrador perde a vez

Em sua última fase ficcional, o Artista deforma o sertão da infância e adolescência. As formas conceituais que o compuseram até então morrem com Diadorim, em Grande Sertão: Veredas. Essa longa narrativa marca o fim de um ciclo de criação literária, em que as substâncias sociais, míticas e ficcionais se amalgamavam, materializadas e questionadoras.

Depois da intromissão do elemento fogo, depois de um longo narrar, dialético e maravilhado, as terras e rios do sertão roseano já não serão recriados sob as antigas perspectivas ficcionais que comandavam o olhar e mão do sonhador. Agora, um novo elemento, o ar, direciona o Artista, sustentando a sua íntima escalada aos cogitos superiores do pensamento puro. Nesta fase, e em outra dimensão do pensamento, ele está hipnotizado pelo seu novo vôo horizontal, depois da ascensão vertical ao autêntico individualismo. Afastado agora das imagens primeiras de sua matéria ficcional e propenso a mudar o seu ângulo de visão, vê-se submetido unicamente a seus próprios devaneios dinâmicos.

Se antes já manuseava um discurso dialetal insolitíssimo, a partir de Primeiras estórias, o discurso ficcional será totalmente aberto aos movimentos aéreos de sua poderosa imaginação. A novidade, de ora em diante, não será mais a descoberta de um sertão pitoresco e mítico: será o próprio ato de criar um mundo além das imposições conceituais.

Sua imaginação literária, neste último estágio, livre dos conceitos cerceadores, abeira-se do plano da loucura ou, usando outra terminologia, da espiritualidade transcendente. O reino da pura imaginação — plano literário — seria para nós, teóricos da literatura, o cogito(4) pensado, com reservas, por Bachelard, já que, para ele, apenas três cogitos permitiriam ao ser pensante uma vida normal e equilibrada. O cogito(3), no caso, já ocasionaria um distanciamento entre o indivíduo que o alcançasse e a massa, solidamente ancorada no cogito(1) das ideologias sacralizadas.

A imaginação, segundo Bachelard, seria "a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção"375, ao contrário do que a psicologia moderna ensina, ou seja, que a imaginação é a faculdade de formar imagens.

A partir de Primeiras estórias, o Artista começa a deformar criativamente tudo o que fora re-formado nas anteriores páginas de recuperação ficcional do sertão. O encantamento inicial, os inúmeros questionamentos existenciais, os pensamentos transmutativos, eram características de um escritor de substâncias palpáveis, que, naquela fase, vivenciava o cogito(2), plano habitado apenas por uma pequena porção de seres pensantes.

As verticais labaredas do fogo consumidor — que inegavelmente marcaram Grande Sertão: Veredas: labaredas de amor e labaredas de guerra — induziram-no a um íntimo contato com o elemento ar. Isto porque o ar em movimento é uma espécie de fogo. Quando frio, o ar está repleto de milhares de partículas, que por sua vez estão repletas de energia potencial, inertes; quando quente, as partículas entram em um movimento tão acelerado, que sua energia potencial é transformada em energia cinética (movimento), podendo ser então vislumbrada sob a forma de energia luminosa ou energia calorífica. Mas isto não é privilégio apenas do ar: a lava de um vulcão é a terra transformada em fogo; o vapor de um geiser é a água também transformada em fogo. É importante salientar que, quando uso aqui nestes exemplos a palavra fogo, estou a referir-me a um fogo microscópico, ou seja, a própria energia calorífica, e portanto não quero dizer que um e outro elementos possam coexistir em harmonia, pois, por exemplo, uma chuva pode apagar um incêndio, um sopro pode apagar uma vela, um punhado de terra pode extingüir uma fogueira. Em contrapartida, quando o fogo é o elemento dominante nesta disputa de elementos, ele pode modificar a estrutura da terra e/ou da água, liquefazendo-as ou vaporizando-as. Quando associado ao ar, o fogo se harmoniza com ele, mas reafirmo que nem sempre o ar se harmoniza com o fogo (o sopro e a vela, como já foi mencionado). O ar, volúvel e infiel, acasala-se indistintamente com a terra, a água e o fogo.


Dominante
D o m in a d o
Terra
Água
Ar
Fogo
Terra
terra
água ajusta
ar ajusta
apaga
Água
dilui a terra
água
ar ajusta
apaga
Ar
espalha terra
espalha água
ar
apaga
Fogo
liquefaz
vaporiza
ar harmoniza
fogo


Recuperando os pensamentos iniciais deste capítulo, a imaginação literária (o que em Ciência da Literatura denomina-se Criação Literária), ligada à linguagem, possibilita ao Ficcionista libertar-se da realidade, criando imagens diferentes das imagens usuais.

Assim, já na primeira narrativa de Primeiras estórias, "As margens da alegria", o Criador Literário, planando livremente no seu cogito particular, apodera-se da imaginação infantil, imita o pensamento da criança e cria um mundo diferente, renovado, só acessível a poucos leitores.

Nesta fase, o Artista vivencia o cogito(3), como indivíduo ainda ligado às normas do bom senso, mas, literariamente, penetra aos poucos na camada insólita do cogito(4) revolvendo o material amorfo que a compõe, e retirando de lá um discurso instável, ainda não constituído, provocador, denunciador da mobilidade das imagens376. Conhecedor desses dois cogitos superiores, está muito à vontade nesses dois planos distintos do pensamento. Graças a esses conhecimentos, é muito fácil para o indivíduo (indivíduo no seu sentido etimológico) ver a realidade de acordo com o olhar da criança, perceber as nuanças mentais dos loucos, resgatar e renovar imagens antigas ou ultrapassar os limites do possível.

Os personagens da coletânea Primeiras estórias convivem com o invisível, com a desordem, seja ela lingüística ou social, porque agora aquele deus-que-garante-tudo, que se insinuou em A hora e vez de Augusto Matraga, está plenamente consciente de seu poder de criação. Nestes cogitos superiores, a poesia sem forma vaga fluidamente, propiciando ao ficcionista-poeta-do-sertão apreendê-la em sua essência. Nas narrativas de Primeiras estórias e nas obras seguintes, ele manipula o próprio inconsciente e o inconsciente do leitor. O antigo sonhador de sonhos profundos da meia-noite psíquica (sonhos de origem, enovelados e vitais) está agora nos últimos estágios dos sonhos do amanhecer, buscando as linhas retas e verticais que o levarão ao infinito. Com o olhar semi-cerrado e as mãos firmes ele não se incomoda mais com as exigências substanciais da realidade vital.

O Artista retoma conscientemente a perspectiva dialética iniciada nas páginas de A hora e vez de Augusto Matraga, mas agora associa-a a uma nova perspectiva (não mais a maravilhada, ligada à matéria mítica), associa-a à perspectiva de intensidade substancial infinita. O ar, a substância que a compõe, é invisível, mas é cientificamente comprovado como matéria integrante dos quatro elementos que sustentam a vida.

Na primeira narrativa de Primeiras estórias, "As margens da alegria", o Artista inicia o seu processo de elevação psíquica ao âmbito da criação literária: sua imaginação voa livremente, intimamente ligada aos devaneios da vontade, distanciando-se cada vez mais do domínio da forma constituída eruditamente. Narra a aventura do menino do campo na grande cidade em construção, colocando em relevo a poesia que surge do nada, apreendida somente pelo olhar da criança, normalmente atenta aos convites da imaginação. Instalado nesse plano elevado, no cogito(3) de sua individualidade, ele agora possui o poder de duplicar e recriar literariamente a pureza de seus primeiros anos de vida, socialmente rejeitada nos anos de mocidade.

Nesta fase aérea, está tomado pela vertigem das alturas e não é sem razão que o título de sua primeira narrativa seja "As margens da alegria". Ele descobriu a linha divisória que separa a realidade comum da realidade dinâmica do mundo da pura intuição e procura criativamente transpô-la para a ficção. Por ora, vislumbra essas margens inóspitas aos não-iniciados, mas muito em breve, narrativas adiante, provará que alcançou o outro lado da terceira margem, surreal, na narrativa "A terceira margem do rio", sob o patrocínio da água dinamizada, situada no infinito dos sonhos primordiais, materializada e eternizada pelo seu poder de criação. Nesse momento, sob o domínio do ar, procura intuitivamente se desligar das coordenadas do espaço e do tempo linear; procura ultrapassar os limites do regionalismo, em direção ao autenticamente universal.

A sua íntima ligação com a matéria água não foi rejeitada. A água aqui se desprende da terra e se une ao ar. Eis agora o momento das imagens voláteis da água evaporada. As cores, por exemplo, em algumas narrativas de Primeiras estórias, já não estão submetidas às imagens estáveis, refletoras do intenso colorido das matas e rios do sertão. As cores, agora, obedecem à ação imaginante do Artista, livres das imagens primeiras, ligadas à memória familiar. A cor azul, em "As margens da alegria", é o azul que se localiza na essência do ar.

Seu lugar era o da janelinha, para o móvel do mundo. Entregavam-lhe revistas de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O Menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul só de ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos? Voavam supremamente.377

O azul só de ar é a água evaporada, a água em suspenso, além dos outros elementos: oxigênio, nitrogênio, gás carbônico; é o azul, quase branco, que se localiza na essência do ar.

O sonhador do sertão está vivendo agora os ousados devaneios de uma nova e original tintura íntima. Esta nova tintura valoriza as substâncias do sertão, impregna-as de virtudes derramadas: o azul é diferente, porque é só de ar; as roças e campos, vistos de cima (ou do plano do cogito(3)), apresentam uma coloração diferente (um verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde), ou seja, apresentam o verde e suas gradações, incluindo a cor vermelha (essencialmente diversa do verde), para reforçar o poder de transformação de sua tintura íntima.

Ao longo de sua criação literária, o Artista sertanejo passou por quatro fases, correspondentes a sua escalada mental: do cogito(1), vital, até o cogito(3) (plano da individualidade consciente) e o cogito(4), plano espiritual.

No início, em Sagarana, ligado à imaginação formal e às matérias terra e água amalgamadas, o Artista apresentou apenas o colorido exterior do sertão, já que se encontrava submetido temporariamente à sedução da superfície. A água, nessa primeira fase, era um elemento ainda frágil, ainda passivo, não possuindo a gota de tintura e sua virtude tingidora de que fala Bachelard, ao caracterizar os pensamentos submetidos aos devaneios da vontade.

Na segunda fase, A hora e vez de Augusto Matraga (fase de transição para uma futura retomada dos elementos terra e água), o Artista elege o fogo em seu aspecto passivo como matéria central, propiciadora de renovação discursiva. Mas o fogo, nessa pequena narrativa, enquanto elemento, é fugaz e não lhe permite atingir verticalmente os valores supremos do colorido do sertão.

Na terceira fase, em Grande Sertão: Veredas, o fogo surge dinâmico, impulsionado pelas perspectivas dialética e maravilhada, iluminando e consumindo a tintura íntima do sonhador, ligada à água e à terra, ou seja, às cores da terra e dos rios sertanejos. O fogo das paixões bélicas e amorosas transforma o cenário, oferece um novo colorido às lembranças do sertão, engrandece um espaço singelo, aquece e dinamiza as matérias terra e água amalgamadas, remodelando-as para a eternidade. A partir dessa fase, o Artista transforma e tinge o sertão, dá-lhe um novo colorido, um poder atemporal, saído do poder de transformação da imaginação criadora bem direcionada, ligada indiscutivelmente aos devaneios da vontade.

Agora, em Primeiras estórias, o azul é só de ar e o verde contém todas as cores em sua composição. A tintura íntima do sonhador, revigorada pelo elemento ar ativado, revaloriza o verde de um sertão diferente, pois este dito sertão, de ora em diante, será para sempre verde em sua essência.

As cores são ações da luz, ações e esforços. Como compreender essas cores sem participar de seu ato profundo? (...) E qual é o ato da cor, senão tingir?

Esse ato de tingir considerado em toda a sua força primária, mostra-se de imediato como uma vontade da mão, de uma mão que aperta o tecido até o último fio. A mão do tintureiro é uma mão de amassador que quer atingir o fundo da matéria, o absoluto da sutileza. A tintura vai também ao centro da matéria.378

Em "As margens da alegria", as cores são ações da luz e estão dinamizadas pelo elemento ar. As cores representam a dialética da alegria e tristeza, revelando ao Leitor os estados emocionais do Menino; este, graças a esta viagem inventada no feliz, tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. No decorrer da viagem aérea, ele tinha apenas a luz e a longa-longa-longa nuvem. Esta viagem inventada saiu da vontade de criação ficcional e propiciou ao leitor participar também da aventura infantil.

As cores, nesta narrativa, foram criadas por intermédio das ações e esforços do Artista. Sua vontade de ultrapassar os antigos limites narrativos impulsionou sua mão, fazendo-o compreender o estado de espírito do Menino e participar ao mesmo tempo do ato profundo de reproduzi-lo. A natureza, apreendida pela sensibilidade criativa, mostra suas cores de acordo com os sentimentos do Menino, não do narrador. No âmbito do cogito(3), o escritor imita e duplica as emoções da antiga infância, até então adormecidas em sua consciência. O Menino é seu alter ego infantil; é o símbolo de uma infância bem administrada, vivida no reino das emoções maiores.

O Artista literário aperta o tecido (narrativo) até o último fio, buscando o fundo da matéria do sertão e o absoluto da sutileza das cores que a compõe. Graças a esta nova tintura, que fortalece suas íntimas convicções sobre aquilo que narra, chegará gradativamente aos limites do cogito(4) (freqüentando-o esporadicamente), plano este de difícil ascensão, situado no tempo espiritual e fora dos limites vitais; plano da insolidez do discurso, do emaranhado discursivo, apreendido em várias narrativas de Primeiras estórias, Estas estórias, até o final. Assim, pela perspectiva de intensidade substancial infinita todas as imagens recebem uma coloração que as distingue, simbolizando os sentimentos do personagem.

Percebe-se, nesta nova fase da criação literária, que aos poucos o narrador perde a vez para o próprio Artista, já que a sua vontade é mais forte que os dogmas ficcionais. Em seu plano solitário, ele reconhece o seu perigoso poder, ou seja, o seu poder de vida e de morte contra o narrador. A narrativa "Meu tio, o Iawaretê", da coletânea Estas estórias, reflete o clímax dessa fase de insolidez discursiva, em que o Criador literário, presente de maneira indireta na narrativa como um estranho, possui o poder de matar o personagem-narrador, e, mais assustador ainda, narrador em primeira pessoa. O estranho, que pernoita na cabana de Iawaretê (o narrador) e o mata no final, é simbolicamente o próprio Artista, definitivamente neo-moderno, que resolve, agora já distanciado dos valores primordiais, matar o narrador do sertão.

"A verdadeira viagem da imaginação é a viagem ao país do imaginário, no próprio domínio do imaginário"379. A partir de Primeiras estórias, o Artista brasileiro, sertanejo por direito de nascimento, se ajusta ao mobilismo do ar, livre das descrições do real, na sua prodigiosa escalada ao infinito. "Meu tio, o Iawaretê" representa o ápice dessa escalada, a suprema transcendência e adesão aos valores da individualidade consciente.


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