REPRESENTAÇÃO DO ARTISTA
Na introdução de A REPRESENTAÇÃO
DO EU NA VIDA COTIDIANA, Erving Goffman55, teorizando sobre o
ponto de vista do grupo em relação ao indivíduo, informa que seu objetivo é
definir a interação (influência) face a face, "a influência recíproca dos
indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física
imediata"56. Diz ainda que "uma interação pode ser definida como toda
interação que ocorre em qualquer ocasião, quando, num conjunto de indivíduos,
uns se encontram na presença imediata de outros"57. Goffman realça o objetivo já no
final da Introdução, depois de desenvolvê-lo implicitamente ao longo do
conteúdo introdutório.
Antes, já informara sobre a atuação do indivíduo na presença de outros
e que os outros, ao se aproximarem do indivíduo, procuram saber o máximo a seu
respeito, interesses gerais, tais como se possui uma boa situação
sócio-econômica, o que pensa de si e dos que o rodeiam, se é confiável. Essas
informações, segundo o autor, definem a situação do indivíduo perante os outros
e dos outros ante o indivíduo. É nesse momento que a interação será definida.
Caberá ao indivíduo, que, no momento, se encontra sob suspeita, influenciar
positivamente ou não o grupo que o examina. De acordo com a atitude do
examinado, os examinadores se convencerão ou não da validade dos esforços
pessoais para se fazer admirado ou respeitado. A impressão positiva é
importante nesse momento de influência
face a face, porque é exatamente nesse momento que os outros confiarão na
informação que o sujeito procura transmitir. Portanto, expressão e impressão do e sobre
o indivíduo são fatores prioritários para que o grupo infira positivamente e
confie nele. Para que receba confiança, o examinado terá de expressar-se
convincentemente, mesmo que, no fundo, transmita informações falsas. A influência
face a face necessita de expressões que convençam. O sujeito emitirá tais
expressões, mesmo que sejam falsas. Tais dissimulações são atitudes típicas do
ator, que procura se utilizar das expressões que emite. A expressão transmitida
se vale da comunicação, e esta se faz quando o indivíduo se encontra na
presença de outros, transmitindo confiança ou rejeição, de acordo com as
deduções do grupo. Procurando explicar melhor, Goffman divide a expressividade
do indivíduo em duas categorias opostas: expressão que transmite e expressão
que emite. Dentro da categoria da expressão
que emite, estariam as dissimulações próprias do ator; na categoria da expressão transmitida, estariam as
fraudes, abrangendo os símbolos verbais, usados propositadamente no intuito de transmitir
impressões falsas.
Goffman, num segundo momento da Introdução, muda o pólo de concentração
de sua tese, deslocando-se para o ponto de vista do indivíduo. Antes, teorizara
sobre o ponto de vista do grupo. Por este ângulo, o indivíduo que se encontra
diante do grupo, examinado pelo grupo, "pode desejar que pensem muito bem
dele, ou que pensem estar ele pensando muito bem deles, ou que não cheguem a
ter uma impressão definida"58; pode trapacear, confundir, induzi-los a erro. Conscientemente, o sujeito direciona as atitudes
do grupo em relação a si mesmo, manipula as inferências do grupo, demonstra
possuir grande influência ante os outros e, conseqüentemente, (segundo minhas
deduções) terá aos poucos como demonstrar poder.
Falando ainda sobre expressões
transmitidas e expressões emitidas,
Goffman procura delimitar o seu trabalho, informando que se ocupará
primordialmente com as expressões
emitidas, ou seja, a atitude do indivíduo-ator diante de um grupo-platéia.
Exemplificando suas idéias, cita um incidente romanceado, um episódio sobre um
inglês em férias em uma praia, na Espanha. Narra as atitudes de Preedy (um
indivíduo-ator e suas expressões emitidas) para se fazer notar, por meio de
vários rituais, como um passeio pela praia que
virara corrida e mergulho direto na água, a forma de nadar que consistia
num apelo para ser visto, e outras ações ritualísticas, visando impressões
múltiplas do grupo-platéia. Demonstra que as impressões variam e nem sempre
coincidem com a esperada pelo indivíduo. Às vezes ele consegue projetar uma boa
impressão e ser compreendido, às vezes não.
Muitos exemplos são oferecidos na Introdução de Goffman, mas o que fica
claro é a idéia de que o processo de comunicação do indivíduo é semelhante ao
desempenho do ator: há encobrimentos e descobrimentos, revelações falsas e
redescobertas, e, como ator, o sujeito manipula o próprio comportamento,
transmite espontaneidade e segurança, observa as reações que desperta. Nesse
momento de observação, levará vantagem sobre o ator, influenciando e dominando
os que se encontram em sua volta. Destaca também a possibilidade de posteriores
contradições, em relação às posições iniciais dos diversos participantes.
Durante o percurso da influência, poderão desenvolver-se situações embaraçosas,
que tornarão o indivíduo-ator desacreditado diante do grupo-platéia, mesmo
sendo ele, nesse momento, o indutor da análise. Quando tal situação ocorre, a
"interação face a face entra em colapso"59. Ao falar de projeção, realça o fato de que "não devemos passar por cima do
fato essencial de que qualquer definição projetada da situação tem também um
caráter próprio"60, ou seja, qualquer definição projetada procura ressaltar o caráter
moral das projeções.
A sociedade está organizada tendo por base o princípio
de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o
direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira
adequada.61
Evidentemente, esse indivíduo não se considera pequeno dentro da escala
social, porque a própria sociedade já o avaliou e o aceitou. É correto
salientar que há vários graus de aceitabilidade dentro da escala social. Mesmo
sem saber em que patamar se encontra, se ele já se considera melhor, e a sociedade o acolhe,
certamente, graças à organização social, esse indivíduo espera que o valorizem
e o tratem de maneira especial.
Há, ainda, o indivíduo que projeta a impressão de possuir certas
características sociais. Esse indivíduo terá de demonstrar possuir de fato tais
características, se quiser conquistar o respeito do grupo. Penso que, mesmo
possuindo tais atributos, mesmo tentando demonstrar ser o que é, se não
convencer o grupo, jamais será aceito. Se ele deseja ser o que realmente é, sem
falsos atributos, será tratado de acordo com o que projeta sobre si mesmo, ou
seja, não será valorizado, porque o grupo não o aceitará em seu despojamento. A
sociedade está organizada para projetar falsos valores, e os indivíduos que a
compõem são guiados no sentido de os projetarem também.
Para evitar tais embaraços, há práticas
preventivas. Dentro dessa categoria, há as práticas corretivas, que são empregadas no sentido de corrigir as
"ocorrências desabonadoras que não tenham sido evitadas"62. Quando isto acontece,
a prática corretiva passa a ser
denominada prática defensiva; o
sujeito da ação se defende, procurando corrigir a ocorrência desabonadora. Há
também a chamada prática protetora.
Nesse caso, um outro sujeito, participante do grupo, procura proteger o
indivíduo, resguardando-o de uma possível má impressão.
Goffman fecha suas teorizações, demonstrando que, para evitar possíveis
rupturas, pré-existem nos grupos sociais "brincadeiras e jogos nos quais
são intencionalmente arquitetadas situações embaraçosas que não devem ser
levadas a sério"63. Há um estoque de fantasias e contos, cujo teor serve de aviso,
procurando alertar os indivíduos, persuadindo-os a serem modestos em suas
pretensões.
Como já observei no início, Goffman só realça seu objetivo de trabalho
no final da Introdução, na página vinte e três. Depois de desenvolver
implicitamente tal objetivo, ou seja, todas essas questões que foram
recuperadas até agora, ele define claramente a sua matéria teórica. A interação
face a face é a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos
outros, é o encontro, ou por outra, é
o embate que se faz presente, quando dois ou mais indivíduos se encontram face
a face.
Desempenho, para Goffman, é definido "como toda atividade de um determinado
participante, em dada ocasião, que sirva para influenciar qualquer um dos
participantes"64. Assim, desempenho é a
representação propriamente dita. É a representação
do eu na vida cotidiana. É o indivíduo procurando pôr em prática uma
determinada atuação diante de uma determinada platéia. É o indivíduo
representando um papel que o faça ser aceito pelo grupo, que o faça obter
impressões positivas desse grupo, que o observa e julga.
No capítulo dedicado às representações,
ou seja, o papel que o indivíduo representa diante de um grupo, Goffman compara
tal atitude com a representação do ator frente à platéia. Fala de fachadas, dramatizações, idealizações,
representações falsas, mistificações, realidade e artifícios.
Minha propedeutica é sobre o Artista e o texto literário;
evidentemente, não pretendo analisar o comportamento humano dentro de uma
perspectiva antropológica ou social, detenho-me no comportamento dos
personagens ficcionais, refletores de atitudes humanas e, muito especialmente,
intento observar o comportamento de um determinado personagem da narrativa A hora e vez de Augusto
Matraga: o narrador. O narrador aqui é o meu
objeto de análise (ou sujeito) e, segundo minhas teorizações, atua com muito
poder dentro da narrativa, delegando ao personagem Augusto Matraga a função de
coadjuvante. Utilizando-me das idéias de Goffman, quero ressaltar que esta
aproximação não é aleatória, se penso que efetivamente o narrador roseano
possui uma dupla feição: é um ser social,
na dialética da comunhão e do conflito com seu espaço substancial, portanto, ser histórico, graças a sua função de outro eu do Artista e, ao mesmo tempo, participante ativo da realidade ficcional,
participante de um determinado núcleo social, envolvido na movimentação das
seqüências evolutivas desse mundo. O narrador, usando os postulados de Goffman,
funcionaria como máscara, encobrindo
a verdadeira face do Artista, aquela que se localiza na infância, na qual se
encontram as bases de sua estrutura de vida. O narrador como mediador de duas
realidades, ansioso por não transgredir a perfeição do sertão, observando-o com
os olhos da recordação, mas impotente em relação a si mesmo, ser fragmentado
que é, espectador de um mundo decadente, testemunha da degradação da sociedade
burguesa, ainda que sertaneja.
Não estou, neste exame teórico-crítico da matéria ficcional de Guimarães
Rosa, analisando o comportamento humano, mas não aceito furtar-me a analisar,
hipoteticamente, o comportamento do Artista Literário, pelo prisma de seu eu
ficcional. Penso no Artista como um cidadão contemporâneo, viajado, culto,
cosmopolita, todos os atributos que o fazem respeitado diante de um determinado
núcleo social, projetando uma boa impressão, manipulando as inferências do
grupo, demonstrando possuir grande influência ante os outros, visto que
alcançou altas honrarias na escala social, graças ao desempenho de seus
diversos talentos: médico, soldado, diplomata. Entretanto, esse Artista é nato
de um mundo não valorizado pela sociedade elitista; suas origens estão no
sertão mineiro (sertão ainda rude); em sua concretude, ainda não-poetizado. Há
colisão, choque, conflito, diferentes forças que atuam em seu próprio íntimo,
enquanto singularidade ativa do seu núcleo social, inseparável da ação do mundo
que o cerca. Esse Artista de criativos textos ficcionais, enquanto indivíduo,
conhece o papel que representa diante da sociedade; sua inteligência o
direciona no sentido de que o grupo o leve a sério em sua atuação. Mas, e o
sertão da infância, localizado em suas recordações mais importantes? E o
Sertão, casa íntima do Artista? Aquele Sertão que não se esquece, aquele Sertão
da Entrevista ao crítico Lorenz, em que o sertanejo/citadino
Guimarães Rosa afirma que leva o sertão dentro dele e que o mundo em que vive é
também o sertão.
Passo aqui a dialogar com os meus leitores: analisemos esta afirmativa:
"o mundo em que vivo é o sertão"65. Evidentemente, ele não se refere
ao mundo burguês, que se encontra longe do sertão, enquanto algo remanescente
do mundo medieval. Fala do sertão que está dentro dele, de um mundo só dele,
onde pode expressar-se sem falsos valores, único mundo no qual ele realmente é.
Assim, sua literatura é autêntica, pois nasceu de sua verdadeira vida. Como
indivíduo, que representa uma determinada classe social, não poderia jamais
expressar-se como sertanejo, pois acarretaria a rejeição do grupo, que não o
aceitaria em seu despojamento. Se a sociedade está organizada para projetar
falsos valores, a saída de um homem sensível e inteligente é projetar os
valores verdadeiros do sertão por meio da literatura, sem que, com isso, macule a impressão que o grupo social já
formou a seu respeito. Valendo-se do narrador, impõe seu verdadeiro Sertão ao grupo que o cerca, manipula as impressões
sobre o sertão, direciona o olhar deles, encena um espetáculo, em que o ato
principal é realçar a grandeza de um espaço, que, de ordinário, não é muito
valorizado. Pensemos, por exemplo, no falar do sertanejo, motivo de risos nas
anedotas populares.
O narrador representa a face ficcional do Artista (ficção-arte). Se ele
não pode demonstrar sua verdadeira aparência, a sua verdadeira maneira de ser,
pois estaria incorrendo numa provável queda em seu status social, como indivíduo que se projetou positivamente diante
de um determinado grupo, só mesmo a recriação
de um outro mundo, seu verdadeiro mundo, para viver coerentemente a sua íntima
realidade e se sentir autêntico.
Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim
mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais pois isso
diminuiria sua humanidade.66
Eis o conflito do sertanejo (oriundo de uma autêntica estrutura
comunitária) que se tornou intelectual (ser solitário da individualizada
sociedade moderna). Eis aqui um Artista cultíssimo, poliglota, mas distanciado
de certos intelectuais.
(...) não suporto essas figuras intelectuais, das
quais se espera que a qualquer momento lhes brotem da boca bolas de papel.
Inteligência, prudência, como eu as interpreto, cultura elevada, tudo isto está
bem, pois o escritor atual deve possuir todas estas qualidades. Mas não deve se
transformar em um computador. Não deve abandonar as zonas do irracional, ou
então deixa de produzir literatura e só produz papel. Flaubert, Dostoievski,
eram sacerdotes da palavra; Zola, ao contrário, foi apenas um charlatão e, por
isso, hoje, nada significa para nós, pois a necessidade que suas palavras
expressam não existe mais. Assim acontece com todos os que ligam à necessidade
do dia-a-dia o seu chamado compromisso e além disso não possuem as faculdades
lingüísticas necessárias para poder fazer literatura.67
Este indivíduo da Entrevista já alcançou credibilidade diante do grupo e diante do mundo. Agora,
ele pode desempenhar seus diversos papéis e, ao mesmo tempo, transmitir uma
parcela de autenticidade que se incrusta em seu próprio ser (autenticidade de
um homem nato de um mundo verdadeiro). Apesar das impressões que projeta para
um determinado núcleo, pode dar-se a conhecer intimamente, porque já convenceu
o grupo quanto à grandeza de seus vários papéis na vida. Assim sendo, não é ele
que se encontra diante de um grupo para ser avaliado, já superou tal fase; o
foco de avaliação parte dele em direção a um determinado grupo. Aquele que se
projetou positivamente agora pode julgar esses indivíduos e, ao mesmo tempo,
ser aceito. Claro está que essas figuras não se colocam numa posição depreciativa,
simplesmente porque acreditam no papel que representam. Como diz Goffman,
"somente um sociólogo ou uma pessoa socialmente descontente terão dúvidas
sobre a 'realidade' do que é apresentado"68. O Artista, é uma pessoa socialmente descontente com tais
indivíduos e pode, graças à interação positiva que emite, demonstrar seu
descontentamento. Já se conscientizou da multiplicidade de seus papéis na vida
e na ficção; não tem dúvidas quanto à realidade desses papéis e da aceitação do
grupo (do mundo) quanto a sua atuação. Para que isto ocorresse, foi necessário
recontar-se em várias narrativas e, como João, personagem do sertão, decalcar
na literatura a sua verdadeira face, nata, não elaborada. "Às vezes quase
acredito que eu mesmo, João, sou um conto contado por mim mesmo. É tão
imperativo"69.
O escritor conta e reconta seu verdadeiro personagem, por intermédio de
todos os personagens de seu mundo ficcional, porque todas as informações que o
grupo buscou a seu respeito alcançaram credibilidade; apenas a sua verdadeira
informação, a informação de suas raízes sertanejas, não pode aparecer explícita
no seu dia-a-dia existencial. Já que o desejo de se revelar é autêntico, a
ficção supera os obstáculos, faz o Artista encontrar-se intacto num mundo onde
as aparências prevalecem, definindo positivamente uma situação de vida que, se
realizada concretamente, seria paradoxal.
Escrevendo, ele desempenha um papel decisivo no sentido de influenciar
o grupo, ou seja, seus leitores. Escrever é a representação do verdadeiro eu do
Artista do século XX na vida cotidiana, cujo objetivo é alertar quanto à
degradação do mundo hodierno, mundo que apenas realça valores externos e
deteriorados. As situações reais ou insólitas são intencionalmente arquitetadas
dentro do percurso narrativo, para demonstrarem a validade da modéstia e da
simplicidade. O grande escritor, o médico, o soldado, o diplomata, o poliglota
não exibe seus atributos intelectuais ostensivamente, prefere antes mostrar a
sua autêntica humanidade de homem provindo do sertão. "A alquimia do
escrever precisa de sangue do coração. (...). Para poder ser feiticeiro da
palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir
do sertão"70. A influência, portanto, é autêntica, graças ao desempenho do
escritor, que soube/sabe buscar o respeito e a confiança dos que o cercam. O
seu ponto de vista ficcional induz o narrador, determina sua atuação, obriga-o
a um papel que o faça ser aceito pelos leitores. O narrador é sertanejo, o dono
do narrar nasceu sertanejo, tornou-se citadino e intelectual. A atuação do
narrador sofre o jugo do Artista, e este deseja pôr em prática uma verdadeira
representação, que seja um aviso, um alerta contra prováveis rupturas sociais.
Verifiquei, com Goffman, que o Artista é manipulador da impressão que
causa no leitor, quando intenciona revelar o Sertão. O Sertão como um lugar que
possui limites como qualquer núcleo social. O narrador de A hora e vez de
Augusto Matraga, agente (ou intermediário ou alter ego) do Artista, expõe um
determinado Sertão, definindo também a situação desse espaço. Mostra aos
leitores a parte externa desse lugar como ele a vê. Vigia e recria a região dos fundos, impedindo-os que
vejam a face decadente do antigo e heróico sertão mineiro, submetido às imperfeições
da modernidade. Impede, nesse espaço recriado, que os leigos em Ciência da
Literatura observem um sertão já há muito abalado pelas investidas do
progresso. Este tipo de representação (o da exposição dos valores degradados da
realidade sertaneja) não está nos impulsos criadores do Artista, aquele que é
proveniente de um espaço imaculado, localizado nas impressões da infância.
Advindo desse sertão, é natural que se torne membro ativo da equipe de
atores/personagens que o compõem. Por isso, a familiaridade do narrador, a
solidariedade para com os personagens, o desejo de ressaltar um determinado e
ímpar Sertão e guardar segredo absoluto das imperfeições que já existem
concretamente nesse espaço. O Sertão ficcional de Rosa é um universo particular
perfeito, circundado pela imperfeição do progresso. É lícito guardar segredo
das imperfeições modernas, que prejudicam a representação de um Sertão
idealizado, quase medieval. Assim, descobre-se o acordo tácito entre narrador e
leitor (ator e espectador). A recriação do sertão é verdadeira, porque
acredita-se nessa perfeição. O narrador sustenta essa credibilidade, define a
situação do sertão, que foi projetada no intuito de desvelar a face poética e
mística de uma anteriormente região incomum.
Neste capítulo em especial, examino hipoteticamente a atuação de um
determinado escritor sertanejo e do seu personagem-narrador, aproximando-os
conscientemente. Barthes (evidentemente, o Barthes da primeira fase
cientificista) diz que não se deve confundir o narrador com o escritor, já que
o narrador é personagem também, mas, o leitor-intérprete das obras de Guimarães
Rosa, ao penetrar no texto, dialeticamente descobre que o narrador roseano atua
como intermediário entre a História e o Ficcional, sob o comando de seu criador.
O narrador, como porta-voz de uma entidade demiúrgica, há de transmitir
pensamentos, questionamentos, dúvidas, todo um elenco de emoções que fazem
substancialmente parte de seu universo interiorizado e imediato ou, talvez,
sentimentos não imediatos, que provêm de raízes profundas e metafísicas. O
narrador roseano, como personagem do Sertão, não pode ser confundido com o
Artista Literário Guimarães Rosa, no que diz respeito a uma narrativa que tente
registrar a vida do Homem como personagem histórico. O Artista Literário
Guimarães Rosa, cidadão do mundo, mas nativo do sertão, pode projetar-se em
seus personagens, fazendo emergir suas raízes sertanejas. Nhô Augusto,
Joãozinho Bem-Bem e o narrador, todos os personagens do seu universo ficcional
representam as várias faces/fases de seu próprio país. Neste caso, o narrador
sertanejo atuando como o autêntico herói
moderno de Lukács71, porque ele é historicamente, também, o indivíduo que faz parte da
sociedade moderna (núcleo deteriorado que determina as atitudes externas de
seus componentes), sociedade que exige determinadas representações dos
indivíduos em suas relações sociais; sociedade de valores esteriotipados, na
qual o valor maior é o valor do modo de produção e da apropriação de um
capitalismo agrário.
O narrador de Guimarães Rosa de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (aqui, envolvo também em um
invólucro só todos os narradores das inúmeras narrativas de Guimarães Rosa)
procura valores humanos autênticos em seu momento e não os encontra, conhece um
mundo perfeito já distanciado da realidade moderna e, graças ao poder das
recordações, procura significar esse mundo e consegue em determinados trechos
da narrativa, mas sua própria fragmentação interior, fragmentação existencial
de indivíduo, ligado também à movimentação histórica, o desvia para um final
discursivo, questionador e poético. Colocando o narrador em evidência, o
ficcionista moderno transforma o herói
Nhô Augusto em joguete do destino, submete-o às exigências de uma ficção-arte
refletora de uma modernidade sem rumo.
Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham
eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o
aparecimento de pessoas — mais ranchos, depois, arraiais brotando do chão. E
então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.
— Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar,
nós
vamos, porque estamos indo é com Deus!...72
A trajetória de vida do personagem repete a trajetória existencial do
narrador enquanto face ficcional do Artista. Este é proveniente de um espaço
sócio-substancial moderno, mas que conserva um elevadíssimo grau de
primitividade. O poder do narrador roseano é plurissignificativo, pois é
possível observar nele as diversas fases/faces de poder do Homem e do Mundo. O
alter ego do escritor moderno analisa esse poder, que é seu próprio poder,
enquanto refletor de uma sociedade indefinida e contraditória, ao mesmo tempo
agrícola e burguesa. O sertão mineiro do século XX, em sua concretude, é um
espaço conflituado, de onde, em princípio, o narrador procura recuperar
unicamente o universo comunitário de sua matéria de análise, servindo-se da
memória. Nos primeiros parágrafos da narrativa, percebe-se tal intenção. Ele
apresenta o sertão que se insere em seu momento sócio-substancial, mas, ao
mesmo tempo, apresenta a matéria mítica existente nesse mundo, remanescente de
um mundo primitivo, já distanciado no tempo. O mundo roseano de A hora e vez de Augusto Matraga é
um núcleo perfeito, e seu personagem também, mas a ótica do narrador se
encontra fragmentada, e seu personagem sofre as variações dessa fragmentação,
que se evidencia posteriormente mediante um discurso insólito, mesclado
(trovas, exclamações, indagações, poesia e prosa). É o discurso roseano que faz
a mediação entre o mundo perfeito e mundo inacabado; é o discurso que evidencia
o conflito do narrador moderno, indivíduo problemático cercado por uma
sociedade desestruturada. Por isto, o narrador abandona o tom oral normativo do
início, instaurando o conflito narrativo (medos e questionamentos da
autocrítica burguesa).
Em meio à plenitude de vida, e através dessa
plenitude, o romance dá notícia da própria desorientação de quem vive.73
A desorientação do narrador
de Rosa, personagem moderno, se caracteriza pela desorientação verbal, discurso
diferente e agressor, se penso nos estranhamentos lingüísticos, distantes dos
padrões normativos. "Não me submeto à tirania da gramática"74, diz Rosa a Lorenz.
Seu narrador também não se submete, porque não se trata mais de desenvolver o
ato metódico de contar uma estória acontecida, mas preencher os vazios de uma narrativa insólita, na
qual os inesperados ocorrem sem que o narrador os conheça, mas que são criados
e idealizados pelo escritor pós-moderno. A narrativa é insólita, e os
inesperados ocorrem, porque o narrador roseano foi obrigado a criar novas
atitudes discursivas que representassem as faces desencontradas da decadente
sociedade moderna, sociedade de aparências. Descobrindo o poder da palavra
multifacetada da pós-modernidade, ele descobre o poder do discurso ficcional
como representante de um mundo diferente, porque mais verdadeiro em seus
questionamentos. Assim, desempenha um papel diante dos leitores e,
implicitamente, exige que os observadores de seu verdadeiro eu o levem a sério,
porque ele levou a sério a impressão que quis transmitir. O narrador de Rosa
impõe sua ótica, pede aos leitores que acreditem nos atributos de seus
personagens e na grandeza desse Sertão que é somente dele; exige que se ouça a
sua voz para além das exigências sociais. Se o sertão, em sua concretude, não é
exatamente assim, o Sertão de sua representação
é o que ele idealizou. O narrador-ator, personagem-narrador, se movimenta à
vontade nesse espaço idealizado, porque está consciente da verdade que deseja transmitir, está convencido "de que a
impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade"75.
Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde
ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se
pratica o comércio da troca.76
Mundo autêntico, porque as recordações são autênticas. O leitor também
acredita na autenticidade desse mundo, porque acredita naquele que o projetou. É preciso provir do sertão e ao mesmo
tempo alcançar o respeito do grupo, para projetar esse sertão, legitimá-lo,
impingi-lo a uma determinada classe (que o rejeitaria de outro modo), sem a
ocorrência de uma ruptura. Provindo do sertão, aceito em um reduzido grupo de
altíssimo teor intelectual, demonstrou não ter-se identificado completamente com
a sociedade moderna que o adotou (ou foi adotada por ele). Enquanto
participante ativo de uma determinada realidade social, envolveu-se,
identificou-se exteriormente com o meio que o acolheu, assumiu diversos papéis,
mas não rompeu com seu espaço de origem, exaltando-o na ficção.
Não houve ruptura na representação, porque sua personalidade ficou
intacta. Não houve embaraços, porque ele conseguiu separar as suas diversas
faces em papéis diferentes aceitos pela sociedade. A sua influência ultrapassou
os limites do exigido, graças a sua capacidade criativa. O ficcionista fez seu
narrador-personagem representar um papel que poderia levá-lo ao descrédito.
Confiou em sua criatividade e venceu. Venceu a probabilidade de ruptura com o
meio social; dominou o jogo da representação e seus leitores; fez seu
verdadeiro eu irromper-se, representando sua face sertaneja. A representação
foi autêntica e transmitiu impressões reais, informações que subjaziam em suas
recordações e que foram recriadas sem falsas interferências.
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