quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.3 – SERTÃO: CENÁRIO FICCIONAL DA VERDADEIRA REPRESENTAÇÃO DO ARTISTA

II.3 – SERTÃO: CENÁRIO FICCIONAL DA VERDADEIRA
            REPRESENTAÇÃO DO ARTISTA

Na introdução de A REPRESENTAÇÃO DO EU NA VIDA COTIDIANA, Erving Goffman55, teorizando sobre o ponto de vista do grupo em relação ao indivíduo, informa que seu objetivo é definir a interação (influência) face a face, "a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física imediata"56. Diz ainda que "uma interação pode ser definida como toda interação que ocorre em qualquer ocasião, quando, num conjunto de indivíduos, uns se encontram na presença imediata de outros"57. Goffman realça o objetivo já no final da Introdução, depois de desenvolvê-lo implicitamente ao longo do conteúdo introdutório.

Antes, já informara sobre a atuação do indivíduo na presença de outros e que os outros, ao se aproximarem do indivíduo, procuram saber o máximo a seu respeito, interesses gerais, tais como se possui uma boa situação sócio-econômica, o que pensa de si e dos que o rodeiam, se é confiável. Essas informações, segundo o autor, definem a situação do indivíduo perante os outros e dos outros ante o indivíduo. É nesse momento que a interação será definida. Caberá ao indivíduo, que, no momento, se encontra sob suspeita, influenciar positivamente ou não o grupo que o examina. De acordo com a atitude do examinado, os examinadores se convencerão ou não da validade dos esforços pessoais para se fazer admirado ou respeitado. A impressão positiva é importante nesse momento de influência face a face, porque é exatamente nesse momento que os outros confiarão na informação que o sujeito procura transmitir. Portanto, expressão e impressão do e sobre o indivíduo são fatores prioritários para que o grupo infira positivamente e confie nele. Para que receba confiança, o examinado terá de expressar-se convincentemente, mesmo que, no fundo, transmita informações falsas. A influência face a face necessita de expressões que convençam. O sujeito emitirá tais expressões, mesmo que sejam falsas. Tais dissimulações são atitudes típicas do ator, que procura se utilizar das expressões que emite. A expressão transmitida se vale da comunicação, e esta se faz quando o indivíduo se encontra na presença de outros, transmitindo confiança ou rejeição, de acordo com as deduções do grupo. Procurando explicar melhor, Goffman divide a expressividade do indivíduo em duas categorias opostas: expressão que transmite e expressão que emite. Dentro da categoria da expressão que emite, estariam as dissimulações próprias do ator; na categoria da expressão transmitida, estariam as fraudes, abrangendo os símbolos verbais, usados propositadamente no intuito de transmitir impressões falsas.

Goffman, num segundo momento da Introdução, muda o pólo de concentração de sua tese, deslocando-se para o ponto de vista do indivíduo. Antes, teorizara sobre o ponto de vista do grupo. Por este ângulo, o indivíduo que se encontra diante do grupo, examinado pelo grupo, "pode desejar que pensem muito bem dele, ou que pensem estar ele pensando muito bem deles, ou que não cheguem a ter uma impressão definida"58; pode trapacear, confundir, induzi-los a erro. Conscientemente, o sujeito direciona as atitudes do grupo em relação a si mesmo, manipula as inferências do grupo, demonstra possuir grande influência ante os outros e, conseqüentemente, (segundo minhas deduções) terá aos poucos como demonstrar poder.

Falando ainda sobre expressões transmitidas e expressões emitidas, Goffman procura delimitar o seu trabalho, informando que se ocupará primordialmente com as expressões emitidas, ou seja, a atitude do indivíduo-ator diante de um grupo-platéia. Exemplificando suas idéias, cita um incidente romanceado, um episódio sobre um inglês em férias em uma praia, na Espanha. Narra as atitudes de Preedy (um indivíduo-ator e suas expressões emitidas) para se fazer notar, por meio de vários rituais, como um passeio pela praia que virara corrida e mergulho direto na água, a forma de nadar que consistia num apelo para ser visto, e outras ações ritualísticas, visando impressões múltiplas do grupo-platéia. Demonstra que as impressões variam e nem sempre coincidem com a esperada pelo indivíduo. Às vezes ele consegue projetar uma boa impressão e ser compreendido, às vezes não.

Muitos exemplos são oferecidos na Introdução de Goffman, mas o que fica claro é a idéia de que o processo de comunicação do indivíduo é semelhante ao desempenho do ator: há encobrimentos e descobrimentos, revelações falsas e redescobertas, e, como ator, o sujeito manipula o próprio comportamento, transmite espontaneidade e segurança, observa as reações que desperta. Nesse momento de observação, levará vantagem sobre o ator, influenciando e dominando os que se encontram em sua volta. Destaca também a possibilidade de posteriores contradições, em relação às posições iniciais dos diversos participantes. Durante o percurso da influência, poderão desenvolver-se situações embaraçosas, que tornarão o indivíduo-ator desacreditado diante do grupo-platéia, mesmo sendo ele, nesse momento, o indutor da análise. Quando tal situação ocorre, a "interação face a face entra em colapso"59. Ao falar de projeção, realça o fato de que "não devemos passar por cima do fato essencial de que qualquer definição projetada da situação tem também um caráter próprio"60, ou seja, qualquer definição projetada procura ressaltar o caráter moral das projeções.

A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada.61

Evidentemente, esse indivíduo não se considera pequeno dentro da escala social, porque a própria sociedade já o avaliou e o aceitou. É correto salientar que há vários graus de aceitabilidade dentro da escala social. Mesmo sem saber em que patamar se encontra, se ele já se considera melhor, e a sociedade o acolhe, certamente, graças à organização social, esse indivíduo espera que o valorizem e o tratem de maneira especial.

Há, ainda, o indivíduo que projeta a impressão de possuir certas características sociais. Esse indivíduo terá de demonstrar possuir de fato tais características, se quiser conquistar o respeito do grupo. Penso que, mesmo possuindo tais atributos, mesmo tentando demonstrar ser o que é, se não convencer o grupo, jamais será aceito. Se ele deseja ser o que realmente é, sem falsos atributos, será tratado de acordo com o que projeta sobre si mesmo, ou seja, não será valorizado, porque o grupo não o aceitará em seu despojamento. A sociedade está organizada para projetar falsos valores, e os indivíduos que a compõem são guiados no sentido de os projetarem também.

Para evitar tais embaraços, há práticas preventivas. Dentro dessa categoria, há as práticas corretivas, que são empregadas no sentido de corrigir as "ocorrências desabonadoras que não tenham sido evitadas"62. Quando isto acontece, a prática corretiva passa a ser denominada prática defensiva; o sujeito da ação se defende, procurando corrigir a ocorrência desabonadora. Há também a chamada prática protetora. Nesse caso, um outro sujeito, participante do grupo, procura proteger o indivíduo, resguardando-o de uma possível má impressão.

Goffman fecha suas teorizações, demonstrando que, para evitar possíveis rupturas, pré-existem nos grupos sociais "brincadeiras e jogos nos quais são intencionalmente arquitetadas situações embaraçosas que não devem ser levadas a sério"63. Há um estoque de fantasias e contos, cujo teor serve de aviso, procurando alertar os indivíduos, persuadindo-os a serem modestos em suas pretensões.

Como já observei no início, Goffman só realça seu objetivo de trabalho no final da Introdução, na página vinte e três. Depois de desenvolver implicitamente tal objetivo, ou seja, todas essas questões que foram recuperadas até agora, ele define claramente a sua matéria teórica. A interação face a face é a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, é o encontro, ou por outra, é o embate que se faz presente, quando dois ou mais indivíduos se encontram face a face.

Desempenho, para Goffman, é definido "como toda atividade de um determinado participante, em dada ocasião, que sirva para influenciar qualquer um dos participantes"64. Assim, desempenho é a representação propriamente dita. É a representação do eu na vida cotidiana. É o indivíduo procurando pôr em prática uma determinada atuação diante de uma determinada platéia. É o indivíduo representando um papel que o faça ser aceito pelo grupo, que o faça obter impressões positivas desse grupo, que o observa e julga.

No capítulo dedicado às representações, ou seja, o papel que o indivíduo representa diante de um grupo, Goffman compara tal atitude com a representação do ator frente à platéia. Fala de fachadas, dramatizações, idealizações, representações falsas, mistificações, realidade e artifícios.

Minha propedeutica é sobre o Artista e o texto literário; evidentemente, não pretendo analisar o comportamento humano dentro de uma perspectiva antropológica ou social, detenho-me no comportamento dos personagens ficcionais, refletores de atitudes humanas e, muito especialmente, intento observar o comportamento de um determinado personagem da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga: o narrador. O narrador aqui é o meu objeto de análise (ou sujeito) e, segundo minhas teorizações, atua com muito poder dentro da narrativa, delegando ao personagem Augusto Matraga a função de coadjuvante. Utilizando-me das idéias de Goffman, quero ressaltar que esta aproximação não é aleatória, se penso que efetivamente o narrador roseano possui uma dupla feição: é um ser social, na dialética da comunhão e do conflito com seu espaço substancial, portanto, ser histórico, graças a sua função de outro eu do Artista e, ao mesmo tempo, participante ativo da realidade ficcional, participante de um determinado núcleo social, envolvido na movimentação das seqüências evolutivas desse mundo. O narrador, usando os postulados de Goffman, funcionaria como máscara, encobrindo a verdadeira face do Artista, aquela que se localiza na infância, na qual se encontram as bases de sua estrutura de vida. O narrador como mediador de duas realidades, ansioso por não transgredir a perfeição do sertão, observando-o com os olhos da recordação, mas impotente em relação a si mesmo, ser fragmentado que é, espectador de um mundo decadente, testemunha da degradação da sociedade burguesa, ainda que sertaneja.

Não estou, neste exame teórico-crítico da matéria ficcional de Guimarães Rosa, analisando o comportamento humano, mas não aceito furtar-me a analisar, hipoteticamente, o comportamento do Artista Literário, pelo prisma de seu eu ficcional. Penso no Artista como um cidadão contemporâneo, viajado, culto, cosmopolita, todos os atributos que o fazem respeitado diante de um determinado núcleo social, projetando uma boa impressão, manipulando as inferências do grupo, demonstrando possuir grande influência ante os outros, visto que alcançou altas honrarias na escala social, graças ao desempenho de seus diversos talentos: médico, soldado, diplomata. Entretanto, esse Artista é nato de um mundo não valorizado pela sociedade elitista; suas origens estão no sertão mineiro (sertão ainda rude); em sua concretude, ainda não-poetizado. Há colisão, choque, conflito, diferentes forças que atuam em seu próprio íntimo, enquanto singularidade ativa do seu núcleo social, inseparável da ação do mundo que o cerca. Esse Artista de criativos textos ficcionais, enquanto indivíduo, conhece o papel que representa diante da sociedade; sua inteligência o direciona no sentido de que o grupo o leve a sério em sua atuação. Mas, e o sertão da infância, localizado em suas recordações mais importantes? E o Sertão, casa íntima do Artista? Aquele Sertão que não se esquece, aquele Sertão da Entrevista ao crítico Lorenz, em que o sertanejo/citadino Guimarães Rosa afirma que leva o sertão dentro dele e que o mundo em que vive é também o sertão.

Passo aqui a dialogar com os meus leitores: analisemos esta afirmativa: "o mundo em que vivo é o sertão"65. Evidentemente, ele não se refere ao mundo burguês, que se encontra longe do sertão, enquanto algo remanescente do mundo medieval. Fala do sertão que está dentro dele, de um mundo só dele, onde pode expressar-se sem falsos valores, único mundo no qual ele realmente é. Assim, sua literatura é autêntica, pois nasceu de sua verdadeira vida. Como indivíduo, que representa uma determinada classe social, não poderia jamais expressar-se como sertanejo, pois acarretaria a rejeição do grupo, que não o aceitaria em seu despojamento. Se a sociedade está organizada para projetar falsos valores, a saída de um homem sensível e inteligente é projetar os valores verdadeiros do sertão por meio da literatura, sem que, com isso, macule a impressão que o grupo social já formou a seu respeito. Valendo-se do narrador, impõe seu verdadeiro Sertão ao grupo que o cerca, manipula as impressões sobre o sertão, direciona o olhar deles, encena um espetáculo, em que o ato principal é realçar a grandeza de um espaço, que, de ordinário, não é muito valorizado. Pensemos, por exemplo, no falar do sertanejo, motivo de risos nas anedotas populares.

O narrador representa a face ficcional do Artista (ficção-arte). Se ele não pode demonstrar sua verdadeira aparência, a sua verdadeira maneira de ser, pois estaria incorrendo numa provável queda em seu status social, como indivíduo que se projetou positivamente diante de um determinado grupo, só mesmo a recriação de um outro mundo, seu verdadeiro mundo, para viver coerentemente a sua íntima realidade e se sentir autêntico.

Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais pois isso diminuiria sua humanidade.66

Eis o conflito do sertanejo (oriundo de uma autêntica estrutura comunitária) que se tornou intelectual (ser solitário da individualizada sociedade moderna). Eis aqui um Artista cultíssimo, poliglota, mas distanciado de certos intelectuais.

(...) não suporto essas figuras intelectuais, das quais se espera que a qualquer momento lhes brotem da boca bolas de papel. Inteligência, prudência, como eu as interpreto, cultura elevada, tudo isto está bem, pois o escritor atual deve possuir todas estas qualidades. Mas não deve se transformar em um computador. Não deve abandonar as zonas do irracional, ou então deixa de produzir literatura e só produz papel. Flaubert, Dostoievski, eram sacerdotes da palavra; Zola, ao contrário, foi apenas um charlatão e, por isso, hoje, nada significa para nós, pois a necessidade que suas palavras expressam não existe mais. Assim acontece com todos os que ligam à necessidade do dia-a-dia o seu chamado compromisso e além disso não possuem as faculdades lingüísticas necessárias para poder fazer literatura.67

Este indivíduo da Entrevista já alcançou credibilidade diante do grupo e diante do mundo. Agora, ele pode desempenhar seus diversos papéis e, ao mesmo tempo, transmitir uma parcela de autenticidade que se incrusta em seu próprio ser (autenticidade de um homem nato de um mundo verdadeiro). Apesar das impressões que projeta para um determinado núcleo, pode dar-se a conhecer intimamente, porque já convenceu o grupo quanto à grandeza de seus vários papéis na vida. Assim sendo, não é ele que se encontra diante de um grupo para ser avaliado, já superou tal fase; o foco de avaliação parte dele em direção a um determinado grupo. Aquele que se projetou positivamente agora pode julgar esses indivíduos e, ao mesmo tempo, ser aceito. Claro está que essas figuras não se colocam numa posição depreciativa, simplesmente porque acreditam no papel que representam. Como diz Goffman, "somente um sociólogo ou uma pessoa socialmente descontente terão dúvidas sobre a 'realidade' do que é apresentado"68. O Artista, é uma pessoa socialmente descontente com tais indivíduos e pode, graças à interação positiva que emite, demonstrar seu descontentamento. Já se conscientizou da multiplicidade de seus papéis na vida e na ficção; não tem dúvidas quanto à realidade desses papéis e da aceitação do grupo (do mundo) quanto a sua atuação. Para que isto ocorresse, foi necessário recontar-se em várias narrativas e, como João, personagem do sertão, decalcar na literatura a sua verdadeira face, nata, não elaborada. "Às vezes quase acredito que eu mesmo, João, sou um conto contado por mim mesmo. É tão imperativo"69.

O escritor conta e reconta seu verdadeiro personagem, por intermédio de todos os personagens de seu mundo ficcional, porque todas as informações que o grupo buscou a seu respeito alcançaram credibilidade; apenas a sua verdadeira informação, a informação de suas raízes sertanejas, não pode aparecer explícita no seu dia-a-dia existencial. Já que o desejo de se revelar é autêntico, a ficção supera os obstáculos, faz o Artista encontrar-se intacto num mundo onde as aparências prevalecem, definindo positivamente uma situação de vida que, se realizada concretamente, seria paradoxal.

Escrevendo, ele desempenha um papel decisivo no sentido de influenciar o grupo, ou seja, seus leitores. Escrever é a representação do verdadeiro eu do Artista do século XX na vida cotidiana, cujo objetivo é alertar quanto à degradação do mundo hodierno, mundo que apenas realça valores externos e deteriorados. As situações reais ou insólitas são intencionalmente arquitetadas dentro do percurso narrativo, para demonstrarem a validade da modéstia e da simplicidade. O grande escritor, o médico, o soldado, o diplomata, o poliglota não exibe seus atributos intelectuais ostensivamente, prefere antes mostrar a sua autêntica humanidade de homem provindo do sertão. "A alquimia do escrever precisa de sangue do coração. (...). Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão"70. A influência, portanto, é autêntica, graças ao desempenho do escritor, que soube/sabe buscar o respeito e a confiança dos que o cercam. O seu ponto de vista ficcional induz o narrador, determina sua atuação, obriga-o a um papel que o faça ser aceito pelos leitores. O narrador é sertanejo, o dono do narrar nasceu sertanejo, tornou-se citadino e intelectual. A atuação do narrador sofre o jugo do Artista, e este deseja pôr em prática uma verdadeira representação, que seja um aviso, um alerta contra prováveis rupturas sociais.

Verifiquei, com Goffman, que o Artista é manipulador da impressão que causa no leitor, quando intenciona revelar o Sertão. O Sertão como um lugar que possui limites como qualquer núcleo social. O narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, agente (ou intermediário ou alter ego) do Artista, expõe um determinado Sertão, definindo também a situação desse espaço. Mostra aos leitores a parte externa desse lugar como ele a vê. Vigia e recria a região dos fundos, impedindo-os que vejam a face decadente do antigo e heróico sertão mineiro, submetido às imperfeições da modernidade. Impede, nesse espaço recriado, que os leigos em Ciência da Literatura observem um sertão já há muito abalado pelas investidas do progresso. Este tipo de representação (o da exposição dos valores degradados da realidade sertaneja) não está nos impulsos criadores do Artista, aquele que é proveniente de um espaço imaculado, localizado nas impressões da infância. Advindo desse sertão, é natural que se torne membro ativo da equipe de atores/personagens que o compõem. Por isso, a familiaridade do narrador, a solidariedade para com os personagens, o desejo de ressaltar um determinado e ímpar Sertão e guardar segredo absoluto das imperfeições que já existem concretamente nesse espaço. O Sertão ficcional de Rosa é um universo particular perfeito, circundado pela imperfeição do progresso. É lícito guardar segredo das imperfeições modernas, que prejudicam a representação de um Sertão idealizado, quase medieval. Assim, descobre-se o acordo tácito entre narrador e leitor (ator e espectador). A recriação do sertão é verdadeira, porque acredita-se nessa perfeição. O narrador sustenta essa credibilidade, define a situação do sertão, que foi projetada no intuito de desvelar a face poética e mística de uma anteriormente região incomum.

Neste capítulo em especial, examino hipoteticamente a atuação de um determinado escritor sertanejo e do seu personagem-narrador, aproximando-os conscientemente. Barthes (evidentemente, o Barthes da primeira fase cientificista) diz que não se deve confundir o narrador com o escritor, já que o narrador é personagem também, mas, o leitor-intérprete das obras de Guimarães Rosa, ao penetrar no texto, dialeticamente descobre que o narrador roseano atua como intermediário entre a História e o Ficcional, sob o comando de seu criador. O narrador, como porta-voz de uma entidade demiúrgica, há de transmitir pensamentos, questionamentos, dúvidas, todo um elenco de emoções que fazem substancialmente parte de seu universo interiorizado e imediato ou, talvez, sentimentos não imediatos, que provêm de raízes profundas e metafísicas. O narrador roseano, como personagem do Sertão, não pode ser confundido com o Artista Literário Guimarães Rosa, no que diz respeito a uma narrativa que tente registrar a vida do Homem como personagem histórico. O Artista Literário Guimarães Rosa, cidadão do mundo, mas nativo do sertão, pode projetar-se em seus personagens, fazendo emergir suas raízes sertanejas. Nhô Augusto, Joãozinho Bem-Bem e o narrador, todos os personagens do seu universo ficcional representam as várias faces/fases de seu próprio país. Neste caso, o narrador sertanejo atuando como o autêntico herói moderno de Lukács71, porque ele é historicamente, também, o indivíduo que faz parte da sociedade moderna (núcleo deteriorado que determina as atitudes externas de seus componentes), sociedade que exige determinadas representações dos indivíduos em suas relações sociais; sociedade de valores esteriotipados, na qual o valor maior é o valor do modo de produção e da apropriação de um capitalismo agrário.

O narrador de Guimarães Rosa de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (aqui, envolvo também em um invólucro só todos os narradores das inúmeras narrativas de Guimarães Rosa) procura valores humanos autênticos em seu momento e não os encontra, conhece um mundo perfeito já distanciado da realidade moderna e, graças ao poder das recordações, procura significar esse mundo e consegue em determinados trechos da narrativa, mas sua própria fragmentação interior, fragmentação existencial de indivíduo, ligado também à movimentação histórica, o desvia para um final discursivo, questionador e poético. Colocando o narrador em evidência, o ficcionista moderno transforma o herói Nhô Augusto em joguete do destino, submete-o às exigências de uma ficção-arte refletora de uma modernidade sem rumo.

Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas — mais ranchos, depois, arraiais brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.
      Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós
vamos, porque estamos indo é com Deus!...72

A trajetória de vida do personagem repete a trajetória existencial do narrador enquanto face ficcional do Artista. Este é proveniente de um espaço sócio-substancial moderno, mas que conserva um elevadíssimo grau de primitividade. O poder do narrador roseano é plurissignificativo, pois é possível observar nele as diversas fases/faces de poder do Homem e do Mundo. O alter ego do escritor moderno analisa esse poder, que é seu próprio poder, enquanto refletor de uma sociedade indefinida e contraditória, ao mesmo tempo agrícola e burguesa. O sertão mineiro do século XX, em sua concretude, é um espaço conflituado, de onde, em princípio, o narrador procura recuperar unicamente o universo comunitário de sua matéria de análise, servindo-se da memória. Nos primeiros parágrafos da narrativa, percebe-se tal intenção. Ele apresenta o sertão que se insere em seu momento sócio-substancial, mas, ao mesmo tempo, apresenta a matéria mítica existente nesse mundo, remanescente de um mundo primitivo, já distanciado no tempo. O mundo roseano de A hora e vez de Augusto Matraga é um núcleo perfeito, e seu personagem também, mas a ótica do narrador se encontra fragmentada, e seu personagem sofre as variações dessa fragmentação, que se evidencia posteriormente mediante um discurso insólito, mesclado (trovas, exclamações, indagações, poesia e prosa). É o discurso roseano que faz a mediação entre o mundo perfeito e mundo inacabado; é o discurso que evidencia o conflito do narrador moderno, indivíduo problemático cercado por uma sociedade desestruturada. Por isto, o narrador abandona o tom oral normativo do início, instaurando o conflito narrativo (medos e questionamentos da autocrítica burguesa).

Em meio à plenitude de vida, e através dessa plenitude, o romance dá notícia da própria desorientação de quem vive.73

A desorientação do narrador de Rosa, personagem moderno, se caracteriza pela desorientação verbal, discurso diferente e agressor, se penso nos estranhamentos lingüísticos, distantes dos padrões normativos. "Não me submeto à tirania da gramática"74, diz Rosa a Lorenz. Seu narrador também não se submete, porque não se trata mais de desenvolver o ato metódico de contar uma estória acontecida, mas preencher os vazios de uma narrativa insólita, na qual os inesperados ocorrem sem que o narrador os conheça, mas que são criados e idealizados pelo escritor pós-moderno. A narrativa é insólita, e os inesperados ocorrem, porque o narrador roseano foi obrigado a criar novas atitudes discursivas que representassem as faces desencontradas da decadente sociedade moderna, sociedade de aparências. Descobrindo o poder da palavra multifacetada da pós-modernidade, ele descobre o poder do discurso ficcional como representante de um mundo diferente, porque mais verdadeiro em seus questionamentos. Assim, desempenha um papel diante dos leitores e, implicitamente, exige que os observadores de seu verdadeiro eu o levem a sério, porque ele levou a sério a impressão que quis transmitir. O narrador de Rosa impõe sua ótica, pede aos leitores que acreditem nos atributos de seus personagens e na grandeza desse Sertão que é somente dele; exige que se ouça a sua voz para além das exigências sociais. Se o sertão, em sua concretude, não é exatamente assim, o Sertão de sua representação é o que ele idealizou. O narrador-ator, personagem-narrador, se movimenta à vontade nesse espaço idealizado, porque está consciente da verdade que deseja transmitir, está convencido "de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade"75.

Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca.76

Mundo autêntico, porque as recordações são autênticas. O leitor também acredita na autenticidade desse mundo, porque acredita naquele que o projetou. É preciso provir do sertão e ao mesmo tempo alcançar o respeito do grupo, para projetar esse sertão, legitimá-lo, impingi-lo a uma determinada classe (que o rejeitaria de outro modo), sem a ocorrência de uma ruptura. Provindo do sertão, aceito em um reduzido grupo de altíssimo teor intelectual, demonstrou não ter-se identificado completamente com a sociedade moderna que o adotou (ou foi adotada por ele). Enquanto participante ativo de uma determinada realidade social, envolveu-se, identificou-se exteriormente com o meio que o acolheu, assumiu diversos papéis, mas não rompeu com seu espaço de origem, exaltando-o na ficção.

Não houve ruptura na representação, porque sua personalidade ficou intacta. Não houve embaraços, porque ele conseguiu separar as suas diversas faces em papéis diferentes aceitos pela sociedade. A sua influência ultrapassou os limites do exigido, graças a sua capacidade criativa. O ficcionista fez seu narrador-personagem representar um papel que poderia levá-lo ao descrédito. Confiou em sua criatividade e venceu. Venceu a probabilidade de ruptura com o meio social; dominou o jogo da representação e seus leitores; fez seu verdadeiro eu irromper-se, representando sua face sertaneja. A representação foi autêntica e transmitiu impressões reais, informações que subjaziam em suas recordações e que foram recriadas sem falsas interferências.

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