quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.4 - Aprendendo a administrar Conflitos

II.4 - Aprendendo a administrar Conflitos

O avanço político, que é o mais difícil e importante de todos que logra o homem, faz-se aprendendo a administrar conflitos. Daí que só as sociedades democráticas o realizam com segurança. Trata-se de manter a sociedade aberta, num mundo de crescente interdependência, preservando e exercendo a capacidade de auto-governo. É um problema com mais incógnitas do que equações. Mas será que existe solução para todos os problemas que envolvem o destino dos homens?77

Em OS ARES DO MUNDO, C. Furtado procura reexaminar as estruturas do poder mundial (principalmente as estruturas de poder da América do Norte) e as conseqüências desse domínio na problemática desenvolvimento-subdesenvolvimento, questão que atinge vários países e está longe de ser solucionada. Refletindo sobre a dependência a que estão submetidos os países do Terceiro Mundo ("presos na armadilha do subdesenvolvimento"78, dominados por grandes potências mundiais), e reexaminando as substâncias ideológicas que estruturam essas camadas de poder, C. Furtado questiona os problemas dessas nações subdesenvolvidas, especialmente os problemas do Brasil, e se pergunta, no primeiro capítulo de suas reflexões: "que rumo tomar?"79.

Num país hierarquizante, onde uma minoria possui as armas para dominar os menos favorecidos socialmente, minoria que também se submete a poderes externos, é impossível parar para pensar o rumo a ser seguido. Na verdade, os habitantes de tal país são levados caoticamente pelas engrenagens de um poder, cujas bases repousam fora de seus limites sócio-existenciais.

Se reflito sobre o início da História do Brasil, constato que esta pergunta, que rumo tomar?, poderia ser formulada a partir do desenvolvimento histórico-social do país. O próprio Celso Furtado afirma que "as lutas sociais do século XX são caudatárias de ideologias concebidas nos dois séculos anteriores, particularmente no XIX"80. E é com pesar que o sociólogo reconhece que essas lutas não conseguem reconstruir as estruturas inicialmente mal elaboradas. E é exatamente esta mal formação social que vai impedir a autonomia sócio-política dos países subdesenvolvidos.

Observando especificamente o Brasil, um país que foi, ao longo de sua história, marcado politicamente por várias etapas conflituosas, é possível raciocinar a impossibilidade de aprender a administrar conflitos. Sérgio Buarque de Holanda, em RAÍZES DO BRASIL81, desnuda o modo de ser do homem brasileiro, sua cordialidade; desnuda o caráter de quem herdou historicamente uma personalidade paradoxal, misto de trabalho e aventura. Com ele, observa-se que o princípio histórico não favoreceu o desenvolvimento de uma aprendizagem segura, uma vez que as condições naturais do país, aliadas ao domínio de um povo, em que o culto da personalidade impelia à separação ao invés da união, impediram tal aprendizagem. Assim, atrevo-me a falar da dificuldade que temos em aprender a administrar conflitos, ao mesmo tempo em que sinto a quase impossibilidade de se achar a solução para os problemas que envolvem o destino dos brasileiros.

No que se relaciona à literatura, esta sempre procurou refletir tais problemas. Conscientemente ou intuitivamente os escritores brasileiros registraram as suas impressões, desenvolvendo idéias próprias sobre a realidade que os cercava.

Antônio Cândido, sociólogo consciente dos problemas de base da realidade brasileira, no artigo "Literatura e subdesenvolvimento"82, ressalta as idéias de Mário Vieira de Mello sobre as duas fases que predominaram no Brasil no âmbito da literatura (a idéia de país novo, até 1930, e, posteriormente, de país subdesenvolvido), e como os escritores de cada fase viam a realidade circundante. Desde o Descobrimento, os escritores elaboraram uma literatura exaltada e utópica, celebrando as belezas naturais e pouco se preocupando com os problemas sociais. A partir de 1930, surge a conscientização dos problemas e esta conscientização traz uma repercussão que provoca a noção clara do subdesenvolvimento. A partir daí, esquece-se a euforia inicial, a linguagem de celebração, a idéia de terra bela / pátria grande, e passam a desenvolver uma ficção concentrada numa visão pessimista, em que afloram a miséria e a incultura.

Com o passar do tempo, dera-me conta de que a fraqueza maior do Terceiro Mundo estava no plano das idéias: éramos colonizados mentalmente, por um lado, e por outro permanecíamos prisioneiros de velhas doutrinas "revolucionárias" que haviam passado de moda nos centros metropolitanos.83

Revisitando a História e observando as idéias de Celso Furtado, Sérgio B. de Holanda e Antônio Cândido, constato que esta colonização surgiu a partir de 1939, no decorrer da 2ª Guerra Mundial, com o advento do fascismo, do nazismo, do socialismo e, sobretudo, com a elevação dos Estados Unidos em primeira potência mundial. Se o Brasil já era historicamente um país colonizado, mal formado, não foi difícil a colonização mental, a submissão às idéias externas, diferentes de nossa realidade.

E é a partir daí que o Brasil se industrializa e os camponeses começam a abandonar o campo, buscando melhores condições de vida na cidade. Com isto, os centros urbanos mais visados pelos camponeses (em particular, os do Nordeste) se transformaram em cidades superpovoadas, redutos de miséria e degeneração. Nesse ínterim, enquanto o Brasil foi se aburguesando e se submetendo à colonização mental, os intelectuais (alguns) procuraram se refugiar na religião, a cultura procurou refletir os problemas do país, os artistas desenvolveram ideais políticos, enfim, a realidade brasileira passou a ser desnudada por uma minoria consciente.

No dia em que o mundo rural se achou desagregado e começou a ceder rapidamente à invasão impiedosa do mundo das cidades, entrou também a decair (...) todo o ciclo das influências ultramarinas específicas de que foram portadores os portugueses. / Se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana, deve-se atribuir tal fato sobretudo às insuficiências do "americanismo", que se resume até agora, em grande parte, numa sorte de exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões impostas de fora, exteriores à terra. O americano ainda é interiormente inexistente.84

Essa desagregação do mundo rural começou no século XIX e atingiu seu ápice nos dois decênios iniciais do século XX. Assim em suas reflexões, Sérgio Buarque de Holanda já falava em decisões impostas de fora bem antes de Celso Furtado, se detenho-me em comparar as datas em que ambos raciocinaram sobre os problemas internos do Brasil.

É também esse mundo rural desagregado que será o tema dos escritores das décadas de 30 e 40. A literatura desse período, segundo Antônio Cândido, estava fundamentada na "dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos"85. E é nesse período também (1946) que Guimarães Rosa publica Sagarana, uma coletânea de contos, na qual, excetuando-se A hora e vez de Augusto Matraga, se observa-se o nacionalismo literário, a recriação do dialeto caipira e o inconformismo86, ou seja, a rejeição a padrões pré-estabelecidos.

A idéia de localismo e cosmopolitismo na obra roseana da primeira fase se sobressai, porque o autor, nesse momento, procura valorizar um determinado espaço geográfico, mas há também, como diz Antônio Cândido, "um compromisso mais ou menos feliz da expressão com o padrão universal"87.

Nas fases seguintes, tomando-se por base a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, espécie de narrativa-embrião de Grande Sertão: Veredas, já não se observa o sertão como um determinado local, porque este transmuda-se em espaço universal.

Lendo a Entrevista de Guimarães Rosa com o crítico Günter Lorenz (1965), descobre-se uma ligação fortíssima do escritor com suas origens européias, quando ele afirma que uma parte de sua família "é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um nome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo da Lusitânea"88. Afirma ainda que, pela sua origem, está voltado para o remoto, para o estranho.
Se as narrativas de Sagarana, excetuando-se, como já foi dito, a narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, procuravam realçar o sertão mineiro (cf. "O burrinho pedrês", "Sarapalha", "São Marcos" e outras), as narrativas seguintes se ligam a este aspecto remoto e estranho de suas origens. O sertão, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, perdeu o aspecto de local, para atingir o universal, porque, diferente do sertão de Minas, e preso às transformações vivenciais de seu criador, era produto de uma mente já citadina, individual, auto-reflexiva, especulativa; na verdade, este sertão não se prendia ao localismo literário da década de 40 e muito menos procurava criar uma língua diversa com o intuito de se opor a padrões pré-estabelecidos. A linguagem sertaneja ou a língua que se fala no universo roseano tende para o universal, porque metafisicamente caracteriza um espaço ligado ao plano da eternidade e da solidão, como o próprio Guimarães admitiu ao crítico alemão.

Goëthe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia com a língua e pensava no infinito. Acho que Goëthe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo. (...) Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goëthe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade e da solidão, onde Inneres und Äusseres sund nicht mehr zu trennen.89

Nestas palavras não há o conformismo de quem faz parte de uma sociedade subdesenvolvida, conformismo que caracterizava uma parte dos escritores do período de 1900 a 1945, porque o Artista Literário de origem sertaneja já se transformou em cidadão do mundo.

Conheço bastante bem a literatura alemã. Por exemplo, o Simplizissimus é para mim muito importante. Amo Goëthe, admiro e venero Thomas Mann, Robert Musil, Franz Kafka, a musicalidade de pensamento de Rilke, a importância monstruosa, espantosa de Freud. Todos estes autores me impressionaram e me influenciaram muito intensamente, sem dúvida. Entretanto, não sei o que fazer com autores mais jovens como Brecht. Todos eles perderam o sentido da metafísica da língua, todos eles se tornaram pregoeiros e deixaram de lado a alma, considerando-a fora de moda, em desacordo com a época e acreditando que o homem seria apenas um Wolfsburg-Mensch.90

O nativo de Cordisburgo, cidade mineira que ainda hoje resguarda os valores naturais de seu princípio sertanejo (localizada no sertão de Minas Gerais), se transformou em cidadão do mundo, e adquiriu, também, a consciência de que recebeu influências européias. Assim como todos os escritores de sua geração, recebeu influências, mas em sua literatura não há a imitação consciente dos padrões europeus, comportamento normal no período da noção aguda do subdesenvolvimento, segundo Antônio Cândido. Não seria correto procurar tal atitude em Guimarães Rosa. O que posso destacar, nesse sentido, estaria ligado a valores metafísicos e universais. Se houve influências, que, em outros casos, induzem à imitação (e ele afirma que sofreu influências - vide citação), essas influências transmudaram-se em criatividade própria, a partir do momento em que atingiu o patamar da consciência pura.

Se procuro observar atentamente a citação, constato que quem faz todas aquelas preleções sobre a literatura alemã não é o sertanejo, mas o intelectual que demonstra já ter ultrapassado o repouso dinâmico, de acordo com as teorias bachelardianas91, momento que precede ao despertar da consciência particular.

Se penso, analiticamente e interpretativamente, no narrador de A hora e vez de Augusto Matraga e nos narradores das fases seguintes, raciocino que estes, induzidos pelo Criador Literário, assumem o caminho individual, o caminho que leva à auto-reflexão, qualidade essencial para se chegar ao objetivo individual, que caracteriza o indivíduo inteligente.

Na maioria das vezes, e porque também, como habitantes de um país de Terceiro Mundo, somos produtos de colonizadores mentais, as pessoas comuns não valorizam a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que transformam os indivíduos em uma só massa pensante. A função da inteligência é questionar, argumentar, refletir, pensar e repensar sobre a validade da direção do impulso massificador. A consciência pura, de acordo com Bachelard, pode assim fazer uma boa escolha, porque está no auge de sua lucidez, de seu juízo, de seu bom-senso, agenciando o livre-arbítrio. Ela seria então o eu consciente, lucidamente equilibrado, repleto de força e capacidade de escolha. Nesse estágio de lucidez, o indivíduo pode ficar em estado de vigilância, pode esperar que alguma coisa se manifeste, que surja alguma intuição ou oportunidade, pode aguardar e guardar (baú de memórias); pode vigiar para que não entre em seu mundo interior (mundo do eu profundo) qualquer conhecimento nocivo. Por isto, não posso falar em influência, no sentido depreciativo, em Guimarães Rosa. Sua consciência particular, ao recontar o sertão, as tradições sertanejas, não estava submetida às pressões do mundo moderno, estava em completo estado de liberdade. Sua consciência particular não se incomodava mais com os juízos de valor do mundo vital, com as cobranças sociais; sua consciência particular extasiava-se mais com a descoberta de um mundo sertanejo singular, nascido das emoções sinceras.

E foi esta consciência pura que fez Guimarães Rosa mudar a face/fase de seu narrador, em A hora e vez de Augusto Matraga, última narrativa do corpus de Sagarana (1946), narrativa que cronologicamente poderia se inserir no momento agudo da conscientização de subdesenvolvimento e, conseqüentemente, transmitir as características que marcaram essa tomada de consciência, e que, felizmente, a partir daí, não são detectadas.

Mudando a forma de narrar, ele coloca em evidência seus próprios objetivos individuais de homem que já alcançou um plano elevado dentro dos vários patamares que compõem o pensamento individual. Seus narradores, a partir de A hora e vez de Augusto MATRAGA, deixaram de agir impulsionados pelo elan vital, pelo arrebatamento súbito e efêmero, apropriando-se da inteligência de quem os criou e deu-lhes forma ficcional. Esses narradores assumem a inteligência do próprio escritor, questionando, argumentando, refletindo sobre os acontecimentos da narrativa e sobre a direção a ser seguida, guiando os impulsos criadores que partem de sua poderosa intuição. Assim, nas últimas seqüências, o personagem Nhô Augusto pode se encantar com as minúcias da natureza, enquanto o narrador poetizava o sertão. O narrador, apropriando-se da função especulativa do Artista, criou um mundo diferente, um sertão diferente, embalado pelo prazer de estar ancorado numa dimensão particular, auto-reflexiva, pouco se incomodando com as opiniões externas. O narrador, por intermédio desse Artista incomum, escolheu falar de um sertão muito particular, suspenso num momento onde o antes não conta, e o que virá, em termos históricos, também não.

O ficcionista sertanejo, já no âmbito da consciência pura, amparado pelo livre-arbítrio, intuiu o momento da manifestação do narrador suprafísico (pós-moderno), suplantando o narrador experiente. Esperou, enquanto se posicionava como contador de estórias (as narrativas de Sagarana que antecedem A hora e vez de Augusto Matraga), a oportunidade de se libertar das pressões do mundo. No plano da consciência particular, já não lhe importa o julgamento de seus pares, em relação a sua criatividade, e, exatamente por isto, faz sucesso e passa a ser reconhecido como grande escritor. O sertão nascido do eu consciente estará assim imune às críticas do meio socio-intelectual. Um espaço que sempre foi depreciado pelas elites vem à luz em forma de narrativa, sob a égide de uma consciência auto-reflexiva convencida do próprio valor, e que não se incomoda mais em se dizer sertaneja (ou caipira), mesmo que já tenha alcançado outros graus no plano das exigências do mundo.

Sabemos que a obra exige necessariamente a presença do artista criador. O que chamamos arte coletiva é a arte criada pelo indivíduo a tal ponto identificado às aspirações e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele, sobretudo levando em conta que, nestes casos, perde-se quase sempre a identidade do criador-protótipo.92

Para Antônio Cândido, a obra de arte exige a presença do Criador. No caso específico da Arte Literária, modalidade narrativa, alguns teóricos procuram separar Artista e narrador, como, por exemplo, Barthes (já anteriormente citado), quando diz que o narrador é personagem como outro qualquer e que não se deve confundi-lo com o Artista. Particularmente, penso no narrador como personagem (como o quer Barthes), mas também não posso deixar de pensar no mesmo como parte integrante do Artista, pois nele se instala ou se desenvolve sua face ficcional.

Na obra de Rosa, há a presença de suas íntimas recordações (matéria lírica), preciosas recordações de um homem nato do sertão mineiro (sertão rude), mas que alcançou honrarias no âmbito hierarquizante da sociedade; mas, principalmente, há a presença do indivíduo moderno, paradoxal e questionador, em conflito com valores que se opõem. Guimarães Rosa, desenvolvendo seus diversos talentos, posicionou-se positivamente diante da sociedade elitista, alcançou credibilidade, mas, paradoxalmente, como Artista, preferiu dar-se a conhecer como homem provindo do sertão. Evidentemente, esse homem do sertão já não é do sertão, apenas a formalização do ser, em suas narrativas, foi feita em cima das formas-pensamento sertanejas. O Artista Literário nascido no sertão lembra do sertão da infância, ou melhor, recorda (sentido etimológico) o sertão, não sendo mais do sertão. Ele assume o sertão que está presente em seus pensamentos questionadores, quando questiona as imperfeições do mundo moderno. O Sertão de suas narrativas é puro, porque foi vivenciado nos anos da infância e juventude; o Sertão continua puro nas recordações do indivíduo, porque este, como Artista, manipula essa pureza, ao descrevê-lo ficcionalmente. Assim, quando Guimarães diz a Lorenz, na Entrevista, eu sou antes de mais nada um homem do sertão, ele sabe intimamente que já não é do sertão; ao categorizar, ele já não é mais sertanejo. E é graças a esta singular matéria de vida, íntima e social, que a sua narrativa não se insere no âmbito do coletivo; sua arte é moderna, melhor ainda, pós-moderna, e, paradoxalmente, evita realçar os recentes valores da pós-modernidade. O Artista, enquanto narrador sertanejo, não se identifica com as aspirações e valores de seu tempo, mas, ao mesmo tempo, não pode furtar-se a se expressar como narrador do século XX, e isto se evidencia em seu discurso.

O mundo sertanejo de Rosa é um núcleo perfeito, seus personagens também, mas o narrador reflete as imperfeições de sua realidade vivencial. A ótica do narrador se encontra fragmentada (característica da ficção pós-moderna), porque não se atém ao tempo linear. O narrador já alcançou um plano em que o passar histórico não conta, prevalecendo mais o desejo de preencher as lacunas da memória com um discurso insólito repleto de tensão lírica. Recuperando os ensinamentos de Bachelard sobre o tempo: importa-lhe mais destacar o que se encontra suspenso entre o repouso e a ação. E é graças a esse momento, suspenso entre o repouso e a ação, que o narrador sai da objetividade histórica e se enreda em seus próprios circunlóquios, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso, que está vinculado ao repouso do Artista Literário sertanejo e ao mesmo tempo citadino, e, que se encontra estacionado no plano da reflexão profunda.

As recordações da infância no sertão, certamente, marcaram o ficcionista Guimarães Rosa. As histórias de senhores-de-terra valentes encontraram ressonância em seu espírito. Mas essas recordações só foram realmente recuperadas por meio dos posteriores questionamentos vivenciais. Depois que seu narrador de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (minha matéria de reflexão) desorganizou temporalmente a narrativa, dissociando-se da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu livrar-se da narrativa sintagmática. O escritor pode manifestar um sertão só dele, íntimo e poético, imune às exigências econômicas e sociais da decadente modernidade, apesar de, eventualmente, refletir algumas imperfeições do mundo burguês. Observando este sertão diferente, o leitor se conscientiza do subdesenvolvimento que o atinge, porque a consciência da crise está nele (extra-texto), e por isso ele pode desenvolver uma comparação racional, refletir as diferenças que existem entre os dois sertões: o real e o ficcional.

É importante reconhecer que os personagens de João Guimarães Rosa, pós-Augusto Matraga, não são marcados pelo subdesenvolvimento que os circunda, são simplesmente sertanejos e agem como sertanejos, e, sobretudo, não são alienados, porque qualquer narrativa que propicie reflexão, e que tenha como base os problemas de uma outra realidade, não pode ser considerada alienada. Se nos primeiroas narrativas de Sagarana visualizou-se a consciência do subdesenvolvimento, centrada em problemas regionais (vide "Sarapalha"), a dimensão regional posteriormente passa para o plano universal, graças a uma técnica de narrativa refinada, que propicia a transfiguração do sertão, e que, paradoxalmente, não deixa de refletir os valores do mundo sertanejo. Essa transfiguração do sertão se faz por meio do discurso poético-narrativo, do monólogo interior, da visão simultânea e outras técnicas discursivas próprias do discurso pós-moderno, levando o leitor a refletir suas próprias substâncias de vida e se conscientizar do subdesenvolvimento do país.

O narrador, universalizando o sertão, extrapassa os contornos geográficos do sertão mineiro, apropriando-se, para dar credibilidade ao relato, das íntimas recordações de seu criador, de sua infância sertaneja, de sua ampla visão, plurissignificativa, de suas diversas experiências de vida como Artista Literário do século XX. O narrador sertanejo de Guimarães Rosa impõe-se como porta-voz de um homem nato de um mundo puro, mas que alcançou outros patamares no impuro mundo moderno.



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