Revelando
o infinitamente pequeno da matéria (a face íntima e invisível dos elementos
naturais), sustentado pela imaginação material dinâmica, o Artista procurou
provar que este interior foi conquistado a partir de seu próprio íntimo, no
infinito de sua própria vida, rica e profunda. Com este posicionamento, e
apoiado por um discurso diferente, concedeu eternidade a um recanto situado no
passado e sempre revisitado, por meio dos sonhos, das recordações, das
sensações interiores.
Revisitando
o sertão, guiado pelas recordações, tenta recapturar o passado, marca de uma
infância bem vivida. Nessa retomada, as minúcias se projetam, realçando os
opostos (pequeno e grande, alegria e tristeza, dentro e fora), propiciando um
sertão diferente do real. Assim, espaço universal, porque se desprende do
regional, situando-se num tempo indefinível, onde o antes não conta e não se
pensa o futuro.
Esse
novo sertão é o signo da potência
criadora da imaginação dinâmica; é algo novo e diferente, nascido da
consciência de quem sabe que, além das margens
vitais, há uma margem surreal
surpreendente, refletindo as poderosas imagens renovadoras dos arquétipos
inconscientes.
Esse
novo discurso sobre o sertão se vale
da perspectiva dialetizada, que
comandou o fazer literário em sua fase de transição para o cogito(3),
mas, agora, acrescido da perspectiva
substancial infinita, reveladora de imagens que saem das profundezas
obscuras do psiquismo humano.
Por
isto, oriundo do espaço de criação, o sertão, a partir de A hora e vez de
Augusto
Matraga, é uma mescla de idades eternais, de
camadas temporais, sobrepondo-se infinitamente desde o advento do Mundo.
Vista
por este ângulo, a narrativa "A terceira margem do rio", da coletânea
Primeiras
estórias, ressalta os opostos raso e profundo, largo e estreito, alegria e tristeza, visível e invisível, e
outros, revelando o lado angustioso de quem escreve, no sentido universal.
Em
"A terceira margem do rio", a matéria eleita é a água, acasalada à
terra, elemento material sólido, que permite concretude ao sertão.
[As] combinações imaginárias reúnem apenas dois
elementos, nunca três. A imaginação material une a água à terra; une a água ao
seu contrário, o fogo; une a terra e o fogo; vê por vezes no vapor e nas brumas
a união do ar e da água. Mas nunca, em nenhuma imagem natural, se vê realizar a tripla união material da água, da terra e
do fogo. A fortiori, nenhuma imagem
pode receber os quatro elementos. Tal acúmulo seria uma contradição
insuportável para uma imaginação dos elementos, para essa imaginação material
que sempre tem necessidade de eleger uma matéria e de garantir-lhe um
privilégio em todas as combinações. Se surgir uma união ternária, podemos estar
certos de que se trata apenas de uma imagem artificial, de uma imagem feita com
idéias. As verdadeiras imagens, as imagens do devaneio, são unitárias ou
binárias. Podem sonhar na monotonia de uma substância. Se desejarem uma
combinação, é uma combinação de dois elementos.323
Nos
devaneios fundamentais de quem narra, terra e água se unem, formando a massa
consistente de um sertão ficcional muito particular. No caso específico de
"A terceira margem do rio", a água se destaca, refazendo a dialética
do raso e do profundo, por intermédio de lembranças rasas, provindas da memória experiente, aliadas às recordações profundas, submissas ao domínio do
imaginário poético.
O
sonhador sonha os rios de seu sertão
de origem, associando seu sonho ao conhecimento real que possui de cada
milímetro daquele lugar, que marcou profundamente seus primeiros anos de vida.
Só que esse lugar possui um outro elemento de vital importância (a terra),
elemento estável e tranqüilo, e é impossível separá-lo definitivamente de sua
matéria eleita, tão instável e intranqüila.
Aqui,
é lícito observar que a terra só se torna intranqüila, associada a outras
matérias; e a água será sempre um elemento instável, mesmo que aparente às
vezes, uma certa quietude.
A
terra, apesar do apelo da água, é uma matéria indispensável, nessa narrativa
roseana. E ela se faz presente, acasalada à água, para dar verossimilhança à
estória, "pois é nesta combinação que o duplo devaneio da forma e da
matéria sugere os temas mais poderosos da imaginação criadora"324. E eis aqui, se se
observar com atenção o que diz Bachelard, a intromissão da imaginação que dá vida à causa formal, numa narrativa
autenticamente criativa. A imaginação
criadora duplica os devaneios da forma exterior do sertão e duplica também,
intimamente, as matérias que o compõem. A imaginação
que dá vida à causa formal, duplicada pela imaginação criadora, seduz o leitor, fazendo-o acreditar no
relato do Filho, em relação ao viver insólito do Pai. E, no entanto, a causa do
coração (causa íntima) é muito mais profunda e verdadeira. O sofrimento e a
solidão ultrapassam os fracos limites da imaginação formal, obrigando o leitor
a refletir e a reinventar, também ele, a dimensão do irreal.
A união da água e da terra dá a massa. A massa é um
dos esquemas fundamentais do materialismo. E sempre nos pareceu estranho que a
filosofia tenha negligenciado o seu estudo. Com efeito, a massa nos parece ser
o esquema do materialismo sob formas elementares, já que ela desembaraça a
nossa intuição da preocupação com as formas. O problema das formas coloca-se
então em segunda instância. A massa proporciona uma experiência inicial da
matéria.325
A
união da água e da terra materializa a nova
vida do Pai, dentro da canoa, rio acima, rio abaixo, sem aportar em terra
firme. O Pai preferiu a matéria água para dar sentido a sua vida, já sem objetivos,
pois quem regia de fato, moral e socialmente, era sua esposa. No entanto, não
se libertou totalmente, ligado atavicamente ao Filho, preso aos valores da
terra.
O
Artista remodela intimamente a
estória insólita que está prestes a vir à luz. Realmente, as formas estáveis
simplesmente reprodutoras da percepção e da memória já não o interessam mais.
Ele prefere imaginar as formas singulares resgatadas de vivências primitivas.
Procura, assim, sublimar os arquétipos que sustentaram o início do pensamento
do homem. Remodela e disfarça os mitos primordiais, transforma Caronte num calado e desiludido fazendeiro, que, retornando ao seu elemento natural, ao
longo dos anos, vai-se transformando em bicho dentro da canoinha; refaz o mito das almas
culpadas, que se valem da barca, para atravessarem o Rio da Morte em
direção aos infernos, associando ao mito pagão a mística da culpa cristã, tão bem representada na
fala do Filho-narrador. O Pai/Caronte navega insolitamente numa canoinha de
pau-de-vinhático, carregando os corações
culpados de seus familiares que se sentem responsáveis por sua atitude
aparentemente sem motivo.
O
Artista remodela também o culto da árvore e o culto da morte, ambos intimamente
ligados às culturas antigas.
Os celtas usavam de diversos e estranhos meios em face
dos despojos humanos para fazê-los desaparecer. Em um certo país, eles eram
queimados e a árvore nativa fornecia a lenha da fogueira; em outro, o Todtenbaum (a árvore do morto), escavada
pelo machado, servia de esquife ao seu proprietário. O esquife era enterrado, a
menos que o entregassem à corrente do rio, encarregado do transportá-lo sabe
Deus para onde! Enfim, em certos cantões havia um uso — uso terrível! — que
consistia em expor o corpo à voracidade das aves de rapina; e o lugar dessa
exposição lúgubre era o alto, o cimo dessa mesma árvore plantada no dia do
nascimento do defunto e que desta vez, por exceção, não devia tombar junto com
ele.326
O
Artista remodela o culto da árvore e da morte, para dar um fim criativo a sua
aparentemente singela narrativa.
Proprietário de um sobrenome suevo, está sempre voltado para o remoto, para o
estranho. Graças a essa ligação com o primitivo, conhece os instintos do homem e, graças a sua
ligação com o mundo moderno e a seu dom de criador, sabe também como revestir os mitos da infância do Mundo.
O
culto da árvore, que acompanha a trajetória de vida do homem que a plantou, até
o instante de sua morte, está muito bem camuflado, ao longo da narrativa, mas
propenso a ser descoberto, se atentar-se para a simbologia da canoa. A canoa,
segundo o relato do Filho, foi modelada em pau-de-vinhático, uma madeira
resistente, para poder durar muitos anos
dentro da água. O Pai escolheu a madeira de seu esquife com muito cuidado,
pois sua intenção era um suicídio a longo
prazo, sob o patrocínio da água, intenção que visava castigar paulatinamente a culpada
— a Mãe — de sua derrocada moral. Percebe-se que a Mãe não respeitava sua
autoridade de chefe da família. Pelo menos, é o que passa o relato do Filho: Minha mãe, era quem regia no diário: minha
irmã, meu irmão e eu. A madeira escolhida é a sua árvore, ou seja, o que ele desejou ser exteriormente, ante a
família, e não foi: um homem forte, rijo e respeitado. O apelo ao suicídio é
sincero, mas o desenlace narrativo foge aos padrões normais, graças à força das
imagens criadoras nascidas da solidão íntima do Filho-narrador, que carrega a
culpa de toda a família. O Pai se abandona
à água, em seu esquife-canoa, mas o Filho culpado
não o abandona, acompanhando da terra firme o sofrimento sem-fim que o assinalou.
O
Artista obriga a seu alter ego a
vivenciar no íntimo a solidão do Pai. Ele, por sua vez, está vivenciando a sua
fase de amassador e modelador da terra unida à água. Por
isto, a narrativa, aparentemente linear, não se preocupa realmente com as
formas instituídas que obrigariam o narrador a dar um fim vital à vida do Pai.
Ele está iniciando um novo momento de muita intimidade com suas matérias
eleitas.
Reiniciando
seu processo de apreensão do literário, depois de sua experiência com o fogo
primitivo acasalado à terra, em A hora e vez de Augusto Matraga, e o fogo purificador iluminando o cenário do Sertão, em Grande Sertão: Veredas, seu primeiro pensamento é novamente para a água acasalada à terra;
como fora no início (em Sagarana) a terra unida à
água, sendo que a terra se masculinizando mais, exteriormente, dominando as
narrativas, graças ao domínio de seus coronéis.
Para esse cunho dualista da mistura dos elementos pela
imaginação material existe uma razão decisiva: é que tal mistura constitui
sempre um casamento. Com efeito, desde que duas substâncias elementares se
unem, desde que se fundem uma na outra, elas se sexualizam. Na ordem da
imaginação, ser contrárias para duas substâncias é ser de sexos opostos. Se a
mistura se operar entre duas matérias de tendência feminina, como a água e a
terra, pois bem! — uma delas se masculiniza ligeiramente para dominar sua parceira. Só sob essa
condição a combinação é sólida e duradoura, só sob essa condição a combinação imaginária é uma imagem real. No reino da imaginação
material, toda união é casamento e não há casamento a três.327
No
casamento da narrativa, a terra
(representada na figura da Mãe) domina a água (elemento natural do Pai); mas a
água, segundo Bachelard, "desune e une" e, até mesmo, "tempera
os outros elementos"328. O temperamento fraco do Pai (feminino?) necessita de uma nova remodelagem, que o masculinize e o
faça grande aos olhos do Filho,
daquele determinado filho, abençoado com um gesto indeciso antes da partida.
Nessa nova remodelagem, nessa nova forma masculinizada, ele, com o auxílio
ativado da própria água, amolecerá as
substâncias duras da terra-Mãe. A Mãe
perde com a partida do Pai para o interior revitalizante da água. Ela vai para
longe também, deixando o Filho a sofrer sozinho os desajustes dos similares.
E
já que a imaginação é a faculdade de deformar imagens, nada melhor do que o
elemento água, ativado pela imaginação criadora, para deformar o narrativo. Ao lado das imagens estáveis da terra (as
imagens do cotidiano do Filho, da infância à velhice) registra-se a insolidez do cotidiano do Pai, produzida
pela imaginação criadora (altamente deformante) de quem narra. E quem narra
realmente? O Filho-narrador, personagem por direito de criação, ou o Artista
moderno, filho do Sertão?
Bachelard,
em A TERRA E OS DEVANEIOS DO
REPOUSO, ao se referir à "perspectiva de
intensidade substancial infinita"329, desenvolve o tema das relações dialéticas da
cor e da tintura, demonstrando que a cor
é uma sedução das superfícies, enquanto que a tintura é uma verdade das profundezas.
Para
o filósofo, a água não fornece com exatidão as imagens dinâmicas da tintura,
por ser uma substância acolhedora, fraca e passiva; mas a água da narrativa
sugere um caudal de emoções
profundamente reprimido, e isto se deve a uma genial gota de tintura dramática
(elemento alquímico/criativo) na superfície colorida do rio.
Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio,
obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado
que sempre. Largo de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não
posso, do dia em que a canoa ficou pronta.330
Ao
intuir a narrativa, o Artista intuiu também, além da dialética do visível e do
invisível (cor e tintura), a dialética do raso e do profundo. O rio beirando as imensidões do não-dito: o
rio fundo, calado que sempre. A gota
de tinta modifica a fragilidade da
água, valorizando o sonho líquido do
escritor, aumentando as belezas do sertão, a amplidão, as profundezas da água,
as lembranças do filho/narrador. A gota de tintura, diferente da cor da água,
revela verdades profundas, muito além da sedução da cor da superfície. Nesta gota estão as recordações do nativo do
sertão, porque o pai da narrativa é o próprio sertão, sempre presente na
ausência, já que foi desmerecido no passado. Pai-sertão, "pai-canoa",
como diz Rogel Samuel no seu CRÍTICA
DA ESCRITA331, pai diluído nas
águas eternais das lembranças inesquecíveis.
Como
já dissemos, o elemento material da narrativa, submetido ao poder da imaginação
criadora que sonha o sertão, é a água. O relaxamento dos olhos e a vontade da
mão encontraram a substância acolhedora e, ao mesmo tempo, dinamizadora, que
proporcionou ao escritor as imagens de uma terceira
margem, nascidas dos devaneios da tintura
íntima.
De
acordo com Bachelard, a cor é diferente da tintura, porque apenas seduz o olhar
que vê a superfície. A tintura deixa sobressair um aspecto diferente da
narrativa, uma verdade imperecível, resgatada das profundezas. Essa verdade
evola de suas convicções íntimas, e não é apenas líquido colorido, indutor de
imagens fracas e passivas. Esta tintura alquímica, misturada à água, forma a
poética específica de "A terceira margem do rio", dinamizando a
poética da água.
Recordando
os rios do sertão, o Artista intuiu esta terceira margem insólita, espaço
propiciador da compreensão da figura do Pai, fragilizada ante a face
autoritária da Mãe. A fraqueza do pai, contrapondo-se à força de comando da
mãe, adquire poder inusitado, inumano, em contato com esta água dinâmica.
Dentro
de uma frágil canoa, este pai (também frágil) enfrenta os perigos de um rio
sonhado em profundidade. O discurso diferente deixa transparecer a idéia de uma
terceira margem, representando a materialização
do devaneio criador. As imagens insólitas (imagens imaginadas) saem do fundo do
imaginário-em-aberto do Artista; saem de sua profunda solidão de homem que não
compactua com as exigências do mundo real. Com o apoio desta materialização, o leitor alcança também
os domínios desta margem insólita, alcança as primeiras trilhas da reflexão
filosófica, propagadora da idéia de um tempo instantâneo, suspenso entre o
antes e o depois. Esta terceira margem é a materialização
desse tempo instantâneo. Dentro desse tempo, e fiel às recordações da infância,
ele cria um espaço sem limites demarcados, insólito, mas verossímil,
aceitando-se a lógica do absurdo. Dentro desse espaço e tempo, aparentemente
ilógicos, o pai pode viver anos e anos dentro de uma canoa, transformando-se em
espectro, sem macular a veracidade das lembranças do filho.
A água, por seus reflexos, duplica o mundo, duplica as
coisas. Duplica também o sonhador, não simplesmente como uma vã imagem, mas
envolvendo-o numa nova experiência onírica.332
A
água, por seus reflexos (várias dimensões sobrepostas), duplica e verticaliza o
tempo suspenso entre o antes e o depois, propiciando sonhar com uma terceira
margem, materializando na ficção uma realidade absurda. O ir e vir do pai,
dentro da canoa, ao longo dos anos, sem aportar em terra, só se torna possível,
aceitando-se os reflexos da água
dinamizada, como um convite a uma viagem transcendental. O leitor interage
também com as águas dessa realidade estranha, sentindo a anormalidade e
aceitando-a como fato verdadeiro graças à tintura
das recordações do filho, afirmando-a como real. Só o sonhador de águas
profundas (Criador ou Leitor) pode materializar uma terceira margem fora dos
limites normais da existência.
Partilhando
dessa realidade diferente, Artista e Leitor partilham da solidão dos que se
encontram enclausurados nos limites ilimitados do não-palpável. A terceira
margem justifica o desterro dos que assumem viver em um espaço distante das
dimensões usuais, espaço daqueles que alcançam o plano da consciência singular.
Diante da água profunda, escolhes tua visão; podes ver
à vontade o fundo imóvel ou a corrente, a margem ou o infinito; tens o direito
ambíguo de ver e de não ver; tens o direito de viver com o barqueiro ou de
viver com "uma nova raça de fadas laboriosas, dotadas de um bom gosto
perfeito, magníficas e minuciosas". A fada das águas, guardiã da miragem,
detém em sua mão todos os pássaros do céu. Uma poça contém um universo. Um
instante de sonho contém uma alma inteira.333
O
Artista escolheu interagir com o infinito, escolheu viver com as fadas laboriosas do imaginário; preferiu deter, em seus instantes de sonhos, todas as riquezas visíveis e invisíveis do
sertão; desejou conceber oniricamente por uma região suprafísica, composta de
trilhas de terra batida e afluentes de rios eternais.
Em
"Terceira margem do rio", a angústia do filho e o viver insólito do
pai representam o ponto de interseção entre as duas margens reais,
representadas pelo filho-narrador, e a terceira margem, refletida por uma
imaginação sem fronteiras. O pai pode se instalar numa canoa de nada, adquirir uma existência inconcebível para os padrões
da realidade social; pode desafiar a fúria dos elementos (raios, ventos,
inundações); transformar-se em bicho,
por meio do poder da imaginação que dá
vida à causa material dinamizada pela imaginação
criadora, porque o Artista encontrou sua matéria específica ao longo da
narrativa, ou seja, o elemento material de sua poesia específica.
Poderíamos realmente descrever um passado sem imagens
da profundidade? E jamais teremos uma profundidade
plena se não tivermos meditado à margem de uma água profunda? O passado de
nossa alma é uma água profunda.334
Esta
terceira margem da narrativa é a imagem literária da profundidade plena de um passado sertanejo: imagem íntima, essência poética, elaborada por um
indivíduo que meditou muitas vezes às margens dos rios do sertão.
Os
reflexos das águas permaneceram suspensos no tempo do pensamento, tempo
superior ao tempo vital; tempo superior, que comanda o repouso dos olhos e a
ação da mão. Os reflexos assinalados foram recuperados pela atitude pensante do
Artista moderno, unida às recordações (essência poética) de um passado jamais
esquecido.
O
que se observa nesta escrita ficcional é a poesia
da matéria água: a subjetividade poética contrapondo-se à objetividade da
matéria, sob as ordens da imaginação criadora.
Esta
terceira margem se materializa,
porque o rio da narrativa reproduz um rio do mundo real, não faz parte do plano
do não-dito. O que provém do plano do não-dito são as imagens duplicadas desse
mesmo rio, produzidas pela imaginação literária. O sonhador sonhou-o
materialmente, objetivamente (cor), ao se reportar aos rios de sua infância;
conseqüentemente aprofundou-se criativamente no elemento água, por meio da gota de tintura de seus devaneios
ousados e retirou de lá uma margem
inexistente no plano vital. Os leitores a formalizam no decorrer da leitura,
transformando-a em substância visível.
Depois
da formalização do insólito, compreende-se melhor a atitude do pai e as culpas do filho. A atitude do pai,
retirando-se para as águas do rio, reflete as imagens primordiais do ser
humano, submetido ao sonho material da água. No caso de "A terceira margem
do rio", a atitude do pai reflete as imagens primordiais do filho do
sertão. As águas do rio imaginado preenchem "uma função psicológica
essencial"335: absorver as sombras do
passado sertanejo e oferecer um túmulo
cotidiano a um sertão diariamente prestes a ser esquecido pela vida
citadina.
A água é assim um convite à morte; é um convite a uma
morte especial que nos permite penetrar num dos refúgios materiais elementares.336
Bachelard,
aqui, se refere à obra de Edgard Alan Poe, ressaltando a sedução contínua da
morte em seus escritos, levando-o a uma espécie de suicídio permanente.
Em
"A terceira margem do rio", ao contrário, há o desejo de imortalizar
o sertão: o pai-sertão não deve
morrer. A canoa como um túmulo cotidiano
especial, propiciadora de uma força mágica, ressuscitando permanentemente, ao
anoitecer, durante os sonhos, o ser
venerado.
Penso
que o Artista, nesta narrativa, meditou horas e horas o seu passado,
transformando cada momento em lágrimas
vivas e lamentos dolorosos.
Usando a voz do filho-narrador, reconta a morte
psicológica do pai, ou seja, chora seu afastamento do sertão da
infância, simbolizado na figura do pai. O sertão do passado jaz suspenso em seu
devaneio, dentro de uma canoinha de nada,
deslizando melancolicamente nas águas profundas do pensamento criador. O
elemento água é um convite a uma morte especial, se pensar que o pai/sertão morre simbolicamente ao assumir o espaço
da canoa, para continuar vivo, literariamente, nas recordações do filho. O
pai/sertão entra na canoa/esquife, para-sempre-vivo,
distante das leis naturais de vida e morte.
Nesta
narrativa, o elemento água significa eternidade, permanência, continuidade,
ressurreição. O filho lamenta não possuir o dom de adquirir, como o pai, vida
eterna sob o domínio da água. Mesmo assim, deseja que, no artigo da morte, o
coloquem numa canoinha de nada, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro, rio eterno.
A
água é o elemento das pessoas sensíveis. O filho-narrador é alter ego do filho
do sertão. Ambos herdaram do pai (o
Artista herdou características sertanejas) o aspecto fechado e misterioso dos
seres sensíveis.
Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia
ficando mais parecido com nosso pai.(...) Sempre que às vezes me louvavam, por
causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me
ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era
mentira por verdade.337
O
pai (taciturno), ao entrar na canoa, deslizando interminavelmente sobre as
águas, reencontra sua profunda masculinidade e a profundidade do irreal.
O
Artista, fiel às lembranças dos rios da infância, transforma essas imagens líquidas na substância paterna.
O aspecto sensível da água, nesta narrativa, não se liga à figura da mãe. A
mãe, criatura forte, pertencente ao elemento terra, era quem regia no diário. A água é fonte de morte e vida. Na
narrativa, é fonte de morte procurada, produtora de vida eterna. Não se trata
em absoluto da morte natural, humana, temida; a morte procurada ao nível da
literatura desfaz o elo de ligação com a realidade diária. As águas do rio,
desse rio específico, conduzem à eternidade, porque seus reflexos, já maculados
pela tintura criadora, revelam o plano metafísico de uma terceira margem
inexistente. O pai (o sertão) não morre, dissolve-se nas fantasias líquidas do filho sertanejo. O devaneio do filho não é
fúnebre, porque as águas da narrativa propiciam a permanência do mito, em razão
da ausência do pai.
Bachelard,
refletindo filosoficamente sobre a obra de Edgard Alan Poe, fala de uma água elementar, ligada ao ideal do
devaneio criador, por ele denominada absoluto
do reflexo.
O
filósofo vê no reflexo das águas da criação literária de Poe uma realidade mais
verdadeira do que a própria realidade: o que ele chama de realidade absoluta. Em suas considerações, se a vida é um sonho
dentro do sonho, o reflexo do reflexo é mais real. Contemplando as águas
dinâmicas, já no âmbito da Literatura-Arte, o escritor vê com nitidez, observa
o invisível da realidade.
Ao
seguir em seus detalhes a água imaginada por Guimarães Rosa, em "A
terceira margem do rio", vê-se que a sua poderosa imaginação não reúne os
esqueletos da vida atraída pela morte, como se observa na obra de Poe. Ao
contrário, a morte cotidiana do Pai,
longe de seus conceitos iniciais de existência, se revela atraída pela vida,
silenciosa e em permanente renovação, dos rios de uma infância sertaneja
singular, situados no plano da imaginação criadora.
A
imaginação criadora, ao invés de se ligar ao plano da memória (lembrança), se
liga ao plano da poesia (recordação), ressurreição
(um corpo renasceu perfeito) de velhas vivências. Parodiando Bachelard338, diria melhor que a
água desse rio de três margens fornece o símbolo de uma morte especial, atraída por uma vida diferente, imortal, possível
apenas no plano da consciência singular. Essa terceira margem só é apreendida quando se alcança o absoluto do reflexo da memória (do que
se desejou lembrar). A vida do pai, dentro da canoa, era uma atitude estranha
aos conceitos de realidade do filho, e só pode ser alcançada pelo narrador no
plano das probabilidades da ficção.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma
parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a
meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza
dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia,
acontecia.339
O
pai passou a viver no plano da imaginação dos sonhos bem sonhados. "O
infinito, em nossos sonhos, é tão profundo no firmamento quanto sob as
ondas"340,
não importando que a matéria do sonhador seja água ou ar. A verdadeira
realidade, para o filho, é que o pai entrou em uma canoa, remou anos seguidos,
e não foi a lugar algum. Aquilo que não
havia, acontecia, e no entanto não há dúvidas quanto a veracidade do
relato. O rio sertanejo é real, a estória é verossímil, mas a existência do pai
ultrapassa os limites da vida ordinária.
Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa
para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida
no liso do rio. (...) Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando
na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. (...) Não pojava em
nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão
nem capim. (...) Não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz
feita, nunca mais riscou um fósforo. (...) E nunca falou mais palavra, com
pessoa alguma.341
Submetido
ao domínio profundo das águas do sonho (das recordações poéticas), o sonhador
pode materializar o impossível. O sentido de solidão (o Artista solitário,
ilhado no patamar dos pensamentos reflexivos) está refletido na figura
solitária do pai, imobilizado no tempo, suspenso entre o antes e o depois.
Realidade e sonho se equilibram ante os reflexos dessa terceira margem. O
leitor acredita na palavra do narrador, no aspecto sobrenatural da narrativa;
aceita a estranheza do relato; penetra no núcleo onírico da criação,
"comungando com a vontade de criação"342 de quem narra.
As
águas de "A terceira margem do rio" não são as águas do
"Burrinho pedrês", primeira narrativa de Sagarana. Em
"A terceira margem do rio", é o plano profundo do pensamento que está
em questão; não mais o aspecto superficial, que pouco revela.
Diante da água profunda,
escolhes tua visão; podes ver à vontade o fundo imóvel ou a corrente, a margem
ou o infinito, diz Bachelard. O Artista escolheu ver a margem irreal do rio, situada no
infinito de seus sonhos, propiciando, com esta escolha, uma vida eterna para o
pai/sertão. Assim como o pai da narrativa, o sertão sobreviverá nas recordações
do filho ausente.
Submetido
à lei dos quatro elementos, em vários momentos de sua criação, procura realçar
o elemento água. No cômputo geral, a água sempre aparece amalgamada à terra,
formando o que Bachelard chama de casamento
dos elementos. Por isto posso afirmar que a água é o elemento soberano em
"A terceira margem do rio", mesmo recebendo uma considerável
colaboração do elemento terra, representado na figura da mãe, no espaço de
vivência do filho, nas árvores, nas lapinhas de pedra do barranco, na própria canoinha do pai, feita de pau de vinhático.
A
água, nesta narrativa, não ornamenta simplesmente a paisagem, ao contrário, é a
substância primordial dos devaneios do escritor, a própria essência de seus
pensamentos mais profundos. Os rios do sertão da infância marcaram para sempre
o Artista brasileiro. A água, para Bachelard, é uma espécie de destino, um
"tipo de destino, (...) um destino essencial que metamorfoseia
incessantemente a substância do ser"343. O brasileiro traz o destino da água que corre,
ou seja, a vida como algo passageiro, transitório, sem perspectivas definidas,
findando de minuto a minuto, desmoronando constantemente.
A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que
perfura o céu com suas flechas; a morte cotidiana é a morte da água. A água
corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. (...) a
morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da água é
infinito.344
O
Artista se inspira na imagem da água para compor sua narrativa. O Pai assume o
destino da água, impondo-se desaparecer aos poucos, remando, findando seus dias
de minuto a minuto, "sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do
rio"345.
O
Pai prefere a morte horizontal da água, para perpetuar-se no verticalizante
infinito da atividade sonhadora do Filho.
O
Artista trabalhou profundamente a
matéria água. As imagens do rio não são superficiais e fugidias. Há imagens
singulares, fornecedoras de uma metapoética da água, um além do real, um perfume
de irrealidade, que obriga a pensar em um rio diferente, mesmo constatando-se a
simplicidade da narrativa.
Os
rios da infância permaneceram vivos em suas recordações. Ao longo de sua obra,
eles renasceram poeticamente de suas entranhas, gerados nas longas
contemplações do imaginário-em-aberto. Os rios da infância são substanciais,
pesados, são mortais, por isto, o filho/narrador deseja que no artigo da morte o coloquem numa canoinha de nada. Os rios da infância
são mortais, vistos pelo ângulo da filosofia de Bachelard: "Toda água viva
é uma água que está a ponto de morrer"346; mas, se vistos pelo ângulo da
imaginação profunda, produtora de ficção, esses mesmos rios alcançam o plano da
eternidade.
O
rio de "A terceira margem do rio" é poeticamente dinâmico, porque não
se encontra estático no tempo suspenso entre o antes e o depois das tristes
recordações do filho ausente.
Criando
um Pai ficcional, o Artista reencontra o Sertão, reencontra seus mortos, revive
o passado no plano das probabilidades existenciais. Submetido aos reflexos dinâmicos
do rio imaginário, preocupado em descobrir os segredos de sua profundidade,
constrói um caixão diferente para seu
personagem, envolvendo-o numa atmosfera mágica, materializando uma realidade
que não condiz com a simplicidade da estória.
O
viver diário do Pai, dentro da canoa, só se torna possível com a colaboração do
leitor. Este aceita como real o mundo dos sonhos estranhos visualizado pelo
Artista. E, no entanto, a narrativa é aparentemente (assustadoramente) normal.
O
leitor aceita a solidão do Pai e entende a angústia do Filho; integra-se à
narrativa e passa a relembrar seus medos e culpas; associa às imagens da
narrativa imagens de seu próprio passado, imagens díspares, que pouco têm a ver
com o narrado. Lembranças de entes queridos, pais que se separaram, mães
autoritárias, pais fracos, vêm à tona, no decurso da estória de um Pai
solitário e um Filho repleto de culpas burguesas.
Aquilo que não havia,
acontecia. O Artista moderno está liberto — solitário
e triste — no momento da criação. Os domínios do imaginário são infinitos, por
isto, a realidade do rio da infância se amalgama à realidade dos sonhos bem
sonhados da maturidade. Os reflexos do rio do passado encontram sustentação nos
reflexos da profunda contemplação interior, acrisolada numa imaginação ímpar. O
Pai só executava a invenção de se
permanecer naqueles espaços do rio, porque o Artista não destaca apenas a
beleza da superfície da água, antes, procura realçá-la "em sua massa"347, com a invenção do rio grande, fundo, calado que sempre, associada às lembranças íntimas
do rio do passado.
Das
duas margens do rio, evola-se uma ímpar terceira margem, reflexo de outras
águas metafóricas e infinitas. Esta terceira
margem é uma margem refletida, é o reflexo de um mundo onde o impossível
acontece.
O
rio fundo e calado é um convite a uma morte especial. O Pai não se suicida, mas deixa-se levar pelo rio; um
vivo/morto, depositado em uma canoa/caixão, submetido aos devaneios da morte,
às impressões e sentimentos do Artista.
O
rio é fundo e calado, é largo, de não se
poder ver a forma da outra beira, é um rio silencioso.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e
decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e
trouxa, não fez a alguma recomendação.348
Ao
entrar no rio silencioso, o pai torna-se um espectro; assume a solidão de uma
vida estranha, impõe ao filho o sentimento de culpa e desassossego. O rio aqui
é um tema de tristeza. O filho nunca pode entender como o Pai agüentava sol e
aguaceiro, sem pojar em nenhuma das duas beiras. A solidão do pai gera uma
imagem fantasmagórica, eternamente infeliz.
(...) ele agora virara cabeludo, de unhas grandes, mal
e magro, ficado preto de sol e dos pelos, com o aspecto de bicho, conforme
quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos
fornecia.349
O
Artista medita os mistérios produzidos pela água silenciosa e insondável;
medita sobre o sentido da decomposição do Pai em sua morte cotidiana dentro do rio; medita o desejo de enganar a morte e alcançar o plano da
eternidade.
O
Pai se tornará eterno no plano das imagens profundas, no mundo
poético/ficcional, porque o filho assim o deseja. A estória do Pai é a história
do Artista e de seu lugar de origem. O Pai é o Sertão, o Filho/narrador é o
Artista. Na verdade, quem se afasta do Pai é o Filho. O Filho sai do Sertão,
mas o Sertão não sai do Filho. Através dos rios imaginários, o sertão do
passado e seus rios misteriosos se tornam presentes nas nostálgicas recordações
do Filho. As poças de água da Cidade transformam-se em rios inventados. Suas
cintilações e reflexos impõem devaneios, multiplicados ad infinitum pelo poder da mente criadora.
A
água imaginada se sobrepõe à água real. A poderosa sensibilidade do escritor
intuiu a criação de um Pai solitário, em sua canoa, navegando em direção à
irrealidade. O Sertão da infância, dentro da canoa das lembranças, singrando as irreais águas da Criação
Ficcional.
Bachelard
questiona: "Onde está o real: no céu ou no fundo das águas? O infinito, em
nossos sonhos, é tão profundo no firmamento quanto sob as ondas"350.
O
real de uma terceira margem é possível, se os sonhos são grandiosos. O viver
solitário do Pai assume proporções inusitadas no decurso de uma aparentemente
simples narrativa. Uma simples narrativa que leva a refletir sobre uma margem
insólita, situada no infinito dos sonhos primordiais.
Se
a realidade do sertão brasileiro é pobre, o Artista a transforma, envolvendo-a
num halo de sonhos, materializando o mágico, eternizando a vida, descobrindo
sua face poderosa.
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