quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.10.10 - A temática da água

II.10.10 - A temática da água

Revelando o infinitamente pequeno da matéria (a face íntima e invisível dos elementos naturais), sustentado pela imaginação material dinâmica, o Artista procurou provar que este interior foi conquistado a partir de seu próprio íntimo, no infinito de sua própria vida, rica e profunda. Com este posicionamento, e apoiado por um discurso diferente, concedeu eternidade a um recanto situado no passado e sempre revisitado, por meio dos sonhos, das recordações, das sensações interiores.

Revisitando o sertão, guiado pelas recordações, tenta recapturar o passado, marca de uma infância bem vivida. Nessa retomada, as minúcias se projetam, realçando os opostos (pequeno e grande, alegria e tristeza, dentro e fora), propiciando um sertão diferente do real. Assim, espaço universal, porque se desprende do regional, situando-se num tempo indefinível, onde o antes não conta e não se pensa o futuro.

Esse novo sertão é o signo da potência criadora da imaginação dinâmica; é algo novo e diferente, nascido da consciência de quem sabe que, além das margens vitais, há uma margem surreal surpreendente, refletindo as poderosas imagens renovadoras dos arquétipos inconscientes.

Esse novo discurso sobre o sertão se vale da perspectiva dialetizada, que comandou o fazer literário em sua fase de transição para o cogito(3), mas, agora, acrescido da perspectiva substancial infinita, reveladora de imagens que saem das profundezas obscuras do psiquismo humano.

Por isto, oriundo do espaço de criação, o sertão, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, é uma mescla de idades eternais, de camadas temporais, sobrepondo-se infinitamente desde o advento do Mundo.

Vista por este ângulo, a narrativa "A terceira margem do rio", da coletânea Primeiras estórias, ressalta os opostos raso e profundo, largo e estreito, alegria e tristeza, visível e invisível, e outros, revelando o lado angustioso de quem escreve, no sentido universal.

Em "A terceira margem do rio", a matéria eleita é a água, acasalada à terra, elemento material sólido, que permite concretude ao sertão.

[As] combinações imaginárias reúnem apenas dois elementos, nunca três. A imaginação material une a água à terra; une a água ao seu contrário, o fogo; une a terra e o fogo; vê por vezes no vapor e nas brumas a união do ar e da água. Mas nunca, em nenhuma imagem natural, se vê realizar a tripla união material da água, da terra e do fogo. A fortiori, nenhuma imagem pode receber os quatro elementos. Tal acúmulo seria uma contradição insuportável para uma imaginação dos elementos, para essa imaginação material que sempre tem necessidade de eleger uma matéria e de garantir-lhe um privilégio em todas as combinações. Se surgir uma união ternária, podemos estar certos de que se trata apenas de uma imagem artificial, de uma imagem feita com idéias. As verdadeiras imagens, as imagens do devaneio, são unitárias ou binárias. Podem sonhar na monotonia de uma substância. Se desejarem uma combinação, é uma combinação de dois elementos.323

Nos devaneios fundamentais de quem narra, terra e água se unem, formando a massa consistente de um sertão ficcional muito particular. No caso específico de "A terceira margem do rio", a água se destaca, refazendo a dialética do raso e do profundo, por intermédio de lembranças rasas, provindas da memória experiente, aliadas às recordações profundas, submissas ao domínio do imaginário poético.

O sonhador sonha os rios de seu sertão de origem, associando seu sonho ao conhecimento real que possui de cada milímetro daquele lugar, que marcou profundamente seus primeiros anos de vida. Só que esse lugar possui um outro elemento de vital importância (a terra), elemento estável e tranqüilo, e é impossível separá-lo definitivamente de sua matéria eleita, tão instável e intranqüila.

Aqui, é lícito observar que a terra só se torna intranqüila, associada a outras matérias; e a água será sempre um elemento instável, mesmo que aparente às vezes, uma certa quietude.

A terra, apesar do apelo da água, é uma matéria indispensável, nessa narrativa roseana. E ela se faz presente, acasalada à água, para dar verossimilhança à estória, "pois é nesta combinação que o duplo devaneio da forma e da matéria sugere os temas mais poderosos da imaginação criadora"324. E eis aqui, se se observar com atenção o que diz Bachelard, a intromissão da imaginação que dá vida à causa formal, numa narrativa autenticamente criativa. A imaginação criadora duplica os devaneios da forma exterior do sertão e duplica também, intimamente, as matérias que o compõem. A imaginação que dá vida à causa formal, duplicada pela imaginação criadora, seduz o leitor, fazendo-o acreditar no relato do Filho, em relação ao viver insólito do Pai. E, no entanto, a causa do coração (causa íntima) é muito mais profunda e verdadeira. O sofrimento e a solidão ultrapassam os fracos limites da imaginação formal, obrigando o leitor a refletir e a reinventar, também ele, a dimensão do irreal.

A união da água e da terra dá a massa. A massa é um dos esquemas fundamentais do materialismo. E sempre nos pareceu estranho que a filosofia tenha negligenciado o seu estudo. Com efeito, a massa nos parece ser o esquema do materialismo sob formas elementares, já que ela desembaraça a nossa intuição da preocupação com as formas. O problema das formas coloca-se então em segunda instância. A massa proporciona uma experiência inicial da matéria.325

A união da água e da terra materializa a nova vida do Pai, dentro da canoa, rio acima, rio abaixo, sem aportar em terra firme. O Pai preferiu a matéria água para dar sentido a sua vida, já sem objetivos, pois quem regia de fato, moral e socialmente, era sua esposa. No entanto, não se libertou totalmente, ligado atavicamente ao Filho, preso aos valores da terra.

O Artista remodela intimamente a estória insólita que está prestes a vir à luz. Realmente, as formas estáveis simplesmente reprodutoras da percepção e da memória já não o interessam mais. Ele prefere imaginar as formas singulares resgatadas de vivências primitivas. Procura, assim, sublimar os arquétipos que sustentaram o início do pensamento do homem. Remodela e disfarça os mitos primordiais, transforma Caronte num calado e desiludido fazendeiro, que, retornando ao seu elemento natural, ao longo dos anos, vai-se transformando em bicho dentro da canoinha; refaz o mito das almas culpadas, que se valem da barca, para atravessarem o Rio da Morte em direção aos infernos, associando ao mito pagão a mística da culpa cristã, tão bem representada na fala do Filho-narrador. O Pai/Caronte navega insolitamente numa canoinha de pau-de-vinhático, carregando os corações culpados de seus familiares que se sentem responsáveis por sua atitude aparentemente sem motivo.

O Artista remodela também o culto da árvore e o culto da morte, ambos intimamente ligados às culturas antigas.

Os celtas usavam de diversos e estranhos meios em face dos despojos humanos para fazê-los desaparecer. Em um certo país, eles eram queimados e a árvore nativa fornecia a lenha da fogueira; em outro, o Todtenbaum (a árvore do morto), escavada pelo machado, servia de esquife ao seu proprietário. O esquife era enterrado, a menos que o entregassem à corrente do rio, encarregado do transportá-lo sabe Deus para onde! Enfim, em certos cantões havia um uso — uso terrível! — que consistia em expor o corpo à voracidade das aves de rapina; e o lugar dessa exposição lúgubre era o alto, o cimo dessa mesma árvore plantada no dia do nascimento do defunto e que desta vez, por exceção, não devia tombar junto com ele.326

O Artista remodela o culto da árvore e da morte, para dar um fim criativo a sua aparentemente singela narrativa. Proprietário de um sobrenome suevo, está sempre voltado para o remoto, para o estranho. Graças a essa ligação com o primitivo, conhece os instintos do homem e, graças a sua ligação com o mundo moderno e a seu dom de criador, sabe também como revestir os mitos da infância do Mundo.

O culto da árvore, que acompanha a trajetória de vida do homem que a plantou, até o instante de sua morte, está muito bem camuflado, ao longo da narrativa, mas propenso a ser descoberto, se atentar-se para a simbologia da canoa. A canoa, segundo o relato do Filho, foi modelada em pau-de-vinhático, uma madeira resistente, para poder durar muitos anos dentro da água. O Pai escolheu a madeira de seu esquife com muito cuidado, pois sua intenção era um suicídio a longo prazo, sob o patrocínio da água, intenção que visava castigar paulatinamente a culpada — a Mãe — de sua derrocada moral. Percebe-se que a Mãe não respeitava sua autoridade de chefe da família. Pelo menos, é o que passa o relato do Filho: Minha mãe, era quem regia no diário: minha irmã, meu irmão e eu. A madeira escolhida é a sua árvore, ou seja, o que ele desejou ser exteriormente, ante a família, e não foi: um homem forte, rijo e respeitado. O apelo ao suicídio é sincero, mas o desenlace narrativo foge aos padrões normais, graças à força das imagens criadoras nascidas da solidão íntima do Filho-narrador, que carrega a culpa de toda a família. O Pai se abandona à água, em seu esquife-canoa, mas o Filho culpado não o abandona, acompanhando da terra firme o sofrimento sem-fim que o assinalou.

O Artista obriga a seu alter ego a vivenciar no íntimo a solidão do Pai. Ele, por sua vez, está vivenciando a sua fase de amassador e modelador da terra unida à água. Por isto, a narrativa, aparentemente linear, não se preocupa realmente com as formas instituídas que obrigariam o narrador a dar um fim vital à vida do Pai. Ele está iniciando um novo momento de muita intimidade com suas matérias eleitas.

Reiniciando seu processo de apreensão do literário, depois de sua experiência com o fogo primitivo acasalado à terra, em A hora e vez de Augusto Matraga, e o fogo purificador iluminando o cenário do Sertão, em Grande Sertão: Veredas, seu primeiro pensamento é novamente para a água acasalada à terra; como fora no início (em Sagarana) a terra unida à água, sendo que a terra se masculinizando mais, exteriormente, dominando as narrativas, graças ao domínio de seus coronéis.

Para esse cunho dualista da mistura dos elementos pela imaginação material existe uma razão decisiva: é que tal mistura constitui sempre um casamento. Com efeito, desde que duas substâncias elementares se unem, desde que se fundem uma na outra, elas se sexualizam. Na ordem da imaginação, ser contrárias para duas substâncias é ser de sexos opostos. Se a mistura se operar entre duas matérias de tendência feminina, como a água e a terra, pois bem! — uma delas se masculiniza ligeiramente para dominar sua parceira. Só sob essa condição a combinação é sólida e duradoura, só sob essa condição a combinação imaginária é uma imagem real. No reino da imaginação material, toda união é casamento e não há casamento a três.327

No casamento da narrativa, a terra (representada na figura da Mãe) domina a água (elemento natural do Pai); mas a água, segundo Bachelard, "desune e une" e, até mesmo, "tempera os outros elementos"328. O temperamento fraco do Pai (feminino?) necessita de uma nova remodelagem, que o masculinize e o faça grande aos olhos do Filho, daquele determinado filho, abençoado com um gesto indeciso antes da partida. Nessa nova remodelagem, nessa nova forma masculinizada, ele, com o auxílio ativado da própria água, amolecerá as substâncias duras da terra-Mãe. A Mãe perde com a partida do Pai para o interior revitalizante da água. Ela vai para longe também, deixando o Filho a sofrer sozinho os desajustes dos similares.

E já que a imaginação é a faculdade de deformar imagens, nada melhor do que o elemento água, ativado pela imaginação criadora, para deformar o narrativo. Ao lado das imagens estáveis da terra (as imagens do cotidiano do Filho, da infância à velhice) registra-se a insolidez do cotidiano do Pai, produzida pela imaginação criadora (altamente deformante) de quem narra. E quem narra realmente? O Filho-narrador, personagem por direito de criação, ou o Artista moderno, filho do Sertão?

Bachelard, em A TERRA E OS DEVANEIOS DO REPOUSO, ao se referir à "perspectiva de intensidade substancial infinita"329, desenvolve o tema das relações dialéticas da cor e da tintura, demonstrando que a cor é uma sedução das superfícies, enquanto que a tintura é uma verdade das profundezas.

Para o filósofo, a água não fornece com exatidão as imagens dinâmicas da tintura, por ser uma substância acolhedora, fraca e passiva; mas a água da narrativa sugere um caudal de emoções profundamente reprimido, e isto se deve a uma genial gota de tintura dramática (elemento alquímico/criativo) na superfície colorida do rio.

Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.330

Ao intuir a narrativa, o Artista intuiu também, além da dialética do visível e do invisível (cor e tintura), a dialética do raso e do profundo. O rio beirando as imensidões do não-dito: o rio fundo, calado que sempre. A gota de tinta modifica a fragilidade da água, valorizando o sonho líquido do escritor, aumentando as belezas do sertão, a amplidão, as profundezas da água, as lembranças do filho/narrador. A gota de tintura, diferente da cor da água, revela verdades profundas, muito além da sedução da cor da superfície. Nesta gota estão as recordações do nativo do sertão, porque o pai da narrativa é o próprio sertão, sempre presente na ausência, já que foi desmerecido no passado. Pai-sertão, "pai-canoa", como diz Rogel Samuel no seu CRÍTICA DA ESCRITA331, pai diluído nas águas eternais das lembranças inesquecíveis.

Como já dissemos, o elemento material da narrativa, submetido ao poder da imaginação criadora que sonha o sertão, é a água. O relaxamento dos olhos e a vontade da mão encontraram a substância acolhedora e, ao mesmo tempo, dinamizadora, que proporcionou ao escritor as imagens de uma terceira margem, nascidas dos devaneios da tintura íntima.

De acordo com Bachelard, a cor é diferente da tintura, porque apenas seduz o olhar que vê a superfície. A tintura deixa sobressair um aspecto diferente da narrativa, uma verdade imperecível, resgatada das profundezas. Essa verdade evola de suas convicções íntimas, e não é apenas líquido colorido, indutor de imagens fracas e passivas. Esta tintura alquímica, misturada à água, forma a poética específica de "A terceira margem do rio", dinamizando a poética da água.

Recordando os rios do sertão, o Artista intuiu esta terceira margem insólita, espaço propiciador da compreensão da figura do Pai, fragilizada ante a face autoritária da Mãe. A fraqueza do pai, contrapondo-se à força de comando da mãe, adquire poder inusitado, inumano, em contato com esta água dinâmica.

Dentro de uma frágil canoa, este pai (também frágil) enfrenta os perigos de um rio sonhado em profundidade. O discurso diferente deixa transparecer a idéia de uma terceira margem, representando a materialização do devaneio criador. As imagens insólitas (imagens imaginadas) saem do fundo do imaginário-em-aberto do Artista; saem de sua profunda solidão de homem que não compactua com as exigências do mundo real. Com o apoio desta materialização, o leitor alcança também os domínios desta margem insólita, alcança as primeiras trilhas da reflexão filosófica, propagadora da idéia de um tempo instantâneo, suspenso entre o antes e o depois. Esta terceira margem é a materialização desse tempo instantâneo. Dentro desse tempo, e fiel às recordações da infância, ele cria um espaço sem limites demarcados, insólito, mas verossímil, aceitando-se a lógica do absurdo. Dentro desse espaço e tempo, aparentemente ilógicos, o pai pode viver anos e anos dentro de uma canoa, transformando-se em espectro, sem macular a veracidade das lembranças do filho.

A água, por seus reflexos, duplica o mundo, duplica as coisas. Duplica também o sonhador, não simplesmente como uma vã imagem, mas envolvendo-o numa nova experiência onírica.332

A água, por seus reflexos (várias dimensões sobrepostas), duplica e verticaliza o tempo suspenso entre o antes e o depois, propiciando sonhar com uma terceira margem, materializando na ficção uma realidade absurda. O ir e vir do pai, dentro da canoa, ao longo dos anos, sem aportar em terra, só se torna possível, aceitando-se os reflexos da água dinamizada, como um convite a uma viagem transcendental. O leitor interage também com as águas dessa realidade estranha, sentindo a anormalidade e aceitando-a como fato verdadeiro graças à tintura das recordações do filho, afirmando-a como real. Só o sonhador de águas profundas (Criador ou Leitor) pode materializar uma terceira margem fora dos limites normais da existência.

Partilhando dessa realidade diferente, Artista e Leitor partilham da solidão dos que se encontram enclausurados nos limites ilimitados do não-palpável. A terceira margem justifica o desterro dos que assumem viver em um espaço distante das dimensões usuais, espaço daqueles que alcançam o plano da consciência singular.

Diante da água profunda, escolhes tua visão; podes ver à vontade o fundo imóvel ou a corrente, a margem ou o infinito; tens o direito ambíguo de ver e de não ver; tens o direito de viver com o barqueiro ou de viver com "uma nova raça de fadas laboriosas, dotadas de um bom gosto perfeito, magníficas e minuciosas". A fada das águas, guardiã da miragem, detém em sua mão todos os pássaros do céu. Uma poça contém um universo. Um instante de sonho contém uma alma inteira.333

O Artista escolheu interagir com o infinito, escolheu viver com as fadas laboriosas do imaginário; preferiu deter, em seus instantes de sonhos, todas as riquezas visíveis e invisíveis do sertão; desejou conceber oniricamente por uma região suprafísica, composta de trilhas de terra batida e afluentes de rios eternais.

Em "Terceira margem do rio", a angústia do filho e o viver insólito do pai representam o ponto de interseção entre as duas margens reais, representadas pelo filho-narrador, e a terceira margem, refletida por uma imaginação sem fronteiras. O pai pode se instalar numa canoa de nada, adquirir uma existência inconcebível para os padrões da realidade social; pode desafiar a fúria dos elementos (raios, ventos, inundações); transformar-se em bicho, por meio do poder da imaginação que dá vida à causa material dinamizada pela imaginação criadora, porque o Artista encontrou sua matéria específica ao longo da narrativa, ou seja, o elemento material de sua poesia específica.

Poderíamos realmente descrever um passado sem imagens da profundidade? E jamais teremos uma profundidade plena se não tivermos meditado à margem de uma água profunda? O passado de nossa alma é uma água profunda.334

Esta terceira margem da narrativa é a imagem literária da profundidade plena de um passado sertanejo: imagem íntima, essência poética, elaborada por um indivíduo que meditou muitas vezes às margens dos rios do sertão.

Os reflexos das águas permaneceram suspensos no tempo do pensamento, tempo superior ao tempo vital; tempo superior, que comanda o repouso dos olhos e a ação da mão. Os reflexos assinalados foram recuperados pela atitude pensante do Artista moderno, unida às recordações (essência poética) de um passado jamais esquecido.

O que se observa nesta escrita ficcional é a poesia da matéria água: a subjetividade poética contrapondo-se à objetividade da matéria, sob as ordens da imaginação criadora.

Esta terceira margem se materializa, porque o rio da narrativa reproduz um rio do mundo real, não faz parte do plano do não-dito. O que provém do plano do não-dito são as imagens duplicadas desse mesmo rio, produzidas pela imaginação literária. O sonhador sonhou-o materialmente, objetivamente (cor), ao se reportar aos rios de sua infância; conseqüentemente aprofundou-se criativamente no elemento água, por meio da gota de tintura de seus devaneios ousados e retirou de lá uma margem inexistente no plano vital. Os leitores a formalizam no decorrer da leitura, transformando-a em substância visível.

Depois da formalização do insólito, compreende-se melhor a atitude do pai e as culpas do filho. A atitude do pai, retirando-se para as águas do rio, reflete as imagens primordiais do ser humano, submetido ao sonho material da água. No caso de "A terceira margem do rio", a atitude do pai reflete as imagens primordiais do filho do sertão. As águas do rio imaginado preenchem "uma função psicológica essencial"335: absorver as sombras do passado sertanejo e oferecer um túmulo cotidiano a um sertão diariamente prestes a ser esquecido pela vida citadina.

A água é assim um convite à morte; é um convite a uma morte especial que nos permite penetrar num dos refúgios materiais elementares.336

Bachelard, aqui, se refere à obra de Edgard Alan Poe, ressaltando a sedução contínua da morte em seus escritos, levando-o a uma espécie de suicídio permanente.

Em "A terceira margem do rio", ao contrário, há o desejo de imortalizar o sertão: o pai-sertão não deve morrer. A canoa como um túmulo cotidiano especial, propiciadora de uma força mágica, ressuscitando permanentemente, ao anoitecer, durante os sonhos, o ser venerado.

Penso que o Artista, nesta narrativa, meditou horas e horas o seu passado, transformando cada momento em lágrimas vivas e lamentos dolorosos. Usando a voz do filho-narrador, reconta a morte psicológica do pai, ou seja, chora seu afastamento do sertão da infância, simbolizado na figura do pai. O sertão do passado jaz suspenso em seu devaneio, dentro de uma canoinha de nada, deslizando melancolicamente nas águas profundas do pensamento criador. O elemento água é um convite a uma morte especial, se pensar que o pai/sertão morre simbolicamente ao assumir o espaço da canoa, para continuar vivo, literariamente, nas recordações do filho. O pai/sertão entra na canoa/esquife, para-sempre-vivo, distante das leis naturais de vida e morte.

Nesta narrativa, o elemento água significa eternidade, permanência, continuidade, ressurreição. O filho lamenta não possuir o dom de adquirir, como o pai, vida eterna sob o domínio da água. Mesmo assim, deseja que, no artigo da morte, o coloquem numa canoinha de nada, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro, rio eterno.

A água é o elemento das pessoas sensíveis. O filho-narrador é alter ego do filho do sertão. Ambos herdaram do pai (o Artista herdou características sertanejas) o aspecto fechado e misterioso dos seres sensíveis.

Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai.(...) Sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade.337

O pai (taciturno), ao entrar na canoa, deslizando interminavelmente sobre as águas, reencontra sua profunda masculinidade e a profundidade do irreal.

O Artista, fiel às lembranças dos rios da infância, transforma essas imagens líquidas na substância paterna. O aspecto sensível da água, nesta narrativa, não se liga à figura da mãe. A mãe, criatura forte, pertencente ao elemento terra, era quem regia no diário. A água é fonte de morte e vida. Na narrativa, é fonte de morte procurada, produtora de vida eterna. Não se trata em absoluto da morte natural, humana, temida; a morte procurada ao nível da literatura desfaz o elo de ligação com a realidade diária. As águas do rio, desse rio específico, conduzem à eternidade, porque seus reflexos, já maculados pela tintura criadora, revelam o plano metafísico de uma terceira margem inexistente. O pai (o sertão) não morre, dissolve-se nas fantasias líquidas do filho sertanejo. O devaneio do filho não é fúnebre, porque as águas da narrativa propiciam a permanência do mito, em razão da ausência do pai.

Bachelard, refletindo filosoficamente sobre a obra de Edgard Alan Poe, fala de uma água elementar, ligada ao ideal do devaneio criador, por ele denominada absoluto do reflexo.

O filósofo vê no reflexo das águas da criação literária de Poe uma realidade mais verdadeira do que a própria realidade: o que ele chama de realidade absoluta. Em suas considerações, se a vida é um sonho dentro do sonho, o reflexo do reflexo é mais real. Contemplando as águas dinâmicas, já no âmbito da Literatura-Arte, o escritor vê com nitidez, observa o invisível da realidade.

Ao seguir em seus detalhes a água imaginada por Guimarães Rosa, em "A terceira margem do rio", vê-se que a sua poderosa imaginação não reúne os esqueletos da vida atraída pela morte, como se observa na obra de Poe. Ao contrário, a morte cotidiana do Pai, longe de seus conceitos iniciais de existência, se revela atraída pela vida, silenciosa e em permanente renovação, dos rios de uma infância sertaneja singular, situados no plano da imaginação criadora.

A imaginação criadora, ao invés de se ligar ao plano da memória (lembrança), se liga ao plano da poesia (recordação), ressurreição (um corpo renasceu perfeito) de velhas vivências. Parodiando Bachelard338, diria melhor que a água desse rio de três margens fornece o símbolo de uma morte especial, atraída por uma vida diferente, imortal, possível apenas no plano da consciência singular. Essa terceira margem só é apreendida quando se alcança o absoluto do reflexo da memória (do que se desejou lembrar). A vida do pai, dentro da canoa, era uma atitude estranha aos conceitos de realidade do filho, e só pode ser alcançada pelo narrador no plano das probabilidades da ficção.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.339

O pai passou a viver no plano da imaginação dos sonhos bem sonhados. "O infinito, em nossos sonhos, é tão profundo no firmamento quanto sob as ondas"340, não importando que a matéria do sonhador seja água ou ar. A verdadeira realidade, para o filho, é que o pai entrou em uma canoa, remou anos seguidos, e não foi a lugar algum. Aquilo que não havia, acontecia, e no entanto não há dúvidas quanto a veracidade do relato. O rio sertanejo é real, a estória é verossímil, mas a existência do pai ultrapassa os limites da vida ordinária.

Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. (...) Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. (...) Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. (...) Não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. (...) E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma.341

Submetido ao domínio profundo das águas do sonho (das recordações poéticas), o sonhador pode materializar o impossível. O sentido de solidão (o Artista solitário, ilhado no patamar dos pensamentos reflexivos) está refletido na figura solitária do pai, imobilizado no tempo, suspenso entre o antes e o depois. Realidade e sonho se equilibram ante os reflexos dessa terceira margem. O leitor acredita na palavra do narrador, no aspecto sobrenatural da narrativa; aceita a estranheza do relato; penetra no núcleo onírico da criação, "comungando com a vontade de criação"342 de quem narra.

As águas de "A terceira margem do rio" não são as águas do "Burrinho pedrês", primeira narrativa de Sagarana. Em "A terceira margem do rio", é o plano profundo do pensamento que está em questão; não mais o aspecto superficial, que pouco revela.

Diante da água profunda, escolhes tua visão; podes ver à vontade o fundo imóvel ou a corrente, a margem ou o infinito, diz Bachelard. O Artista escolheu ver a margem irreal do rio, situada no infinito de seus sonhos, propiciando, com esta escolha, uma vida eterna para o pai/sertão. Assim como o pai da narrativa, o sertão sobreviverá nas recordações do filho ausente.

Submetido à lei dos quatro elementos, em vários momentos de sua criação, procura realçar o elemento água. No cômputo geral, a água sempre aparece amalgamada à terra, formando o que Bachelard chama de casamento dos elementos. Por isto posso afirmar que a água é o elemento soberano em "A terceira margem do rio", mesmo recebendo uma considerável colaboração do elemento terra, representado na figura da mãe, no espaço de vivência do filho, nas árvores, nas lapinhas de pedra do barranco, na própria canoinha do pai, feita de pau de vinhático.

A água, nesta narrativa, não ornamenta simplesmente a paisagem, ao contrário, é a substância primordial dos devaneios do escritor, a própria essência de seus pensamentos mais profundos. Os rios do sertão da infância marcaram para sempre o Artista brasileiro. A água, para Bachelard, é uma espécie de destino, um "tipo de destino, (...) um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser"343. O brasileiro traz o destino da água que corre, ou seja, a vida como algo passageiro, transitório, sem perspectivas definidas, findando de minuto a minuto, desmoronando constantemente.

A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu com suas flechas; a morte cotidiana é a morte da água. A água corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. (...) a morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da água é infinito.344

O Artista se inspira na imagem da água para compor sua narrativa. O Pai assume o destino da água, impondo-se desaparecer aos poucos, remando, findando seus dias de minuto a minuto, "sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio"345.

O Pai prefere a morte horizontal da água, para perpetuar-se no verticalizante infinito da atividade sonhadora do Filho.

O Artista trabalhou profundamente a matéria água. As imagens do rio não são superficiais e fugidias. Há imagens singulares, fornecedoras de uma metapoética da água, um além do real, um perfume de irrealidade, que obriga a pensar em um rio diferente, mesmo constatando-se a simplicidade da narrativa.

Os rios da infância permaneceram vivos em suas recordações. Ao longo de sua obra, eles renasceram poeticamente de suas entranhas, gerados nas longas contemplações do imaginário-em-aberto. Os rios da infância são substanciais, pesados, são mortais, por isto, o filho/narrador deseja que no artigo da morte o coloquem numa canoinha de nada. Os rios da infância são mortais, vistos pelo ângulo da filosofia de Bachelard: "Toda água viva é uma água que está a ponto de morrer"346; mas, se vistos pelo ângulo da imaginação profunda, produtora de ficção, esses mesmos rios alcançam o plano da eternidade.

O rio de "A terceira margem do rio" é poeticamente dinâmico, porque não se encontra estático no tempo suspenso entre o antes e o depois das tristes recordações do filho ausente.

Criando um Pai ficcional, o Artista reencontra o Sertão, reencontra seus mortos, revive o passado no plano das probabilidades existenciais. Submetido aos reflexos dinâmicos do rio imaginário, preocupado em descobrir os segredos de sua profundidade, constrói um caixão diferente para seu personagem, envolvendo-o numa atmosfera mágica, materializando uma realidade que não condiz com a simplicidade da estória.

O viver diário do Pai, dentro da canoa, só se torna possível com a colaboração do leitor. Este aceita como real o mundo dos sonhos estranhos visualizado pelo Artista. E, no entanto, a narrativa é aparentemente (assustadoramente) normal.

O leitor aceita a solidão do Pai e entende a angústia do Filho; integra-se à narrativa e passa a relembrar seus medos e culpas; associa às imagens da narrativa imagens de seu próprio passado, imagens díspares, que pouco têm a ver com o narrado. Lembranças de entes queridos, pais que se separaram, mães autoritárias, pais fracos, vêm à tona, no decurso da estória de um Pai solitário e um Filho repleto de culpas burguesas.

Aquilo que não havia, acontecia. O Artista moderno está liberto — solitário e triste — no momento da criação. Os domínios do imaginário são infinitos, por isto, a realidade do rio da infância se amalgama à realidade dos sonhos bem sonhados da maturidade. Os reflexos do rio do passado encontram sustentação nos reflexos da profunda contemplação interior, acrisolada numa imaginação ímpar. O Pai só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, porque o Artista não destaca apenas a beleza da superfície da água, antes, procura realçá-la "em sua massa"347, com a invenção do rio grande, fundo, calado que sempre, associada às lembranças íntimas do rio do passado.

Das duas margens do rio, evola-se uma ímpar terceira margem, reflexo de outras águas metafóricas e infinitas. Esta terceira margem é uma margem refletida, é o reflexo de um mundo onde o impossível acontece.

O rio fundo e calado é um convite a uma morte especial. O Pai não se suicida, mas deixa-se levar pelo rio; um vivo/morto, depositado em uma canoa/caixão, submetido aos devaneios da morte, às impressões e sentimentos do Artista.

O rio é fundo e calado, é largo, de não se poder ver a forma da outra beira, é um rio silencioso.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação.348

Ao entrar no rio silencioso, o pai torna-se um espectro; assume a solidão de uma vida estranha, impõe ao filho o sentimento de culpa e desassossego. O rio aqui é um tema de tristeza. O filho nunca pode entender como o Pai agüentava sol e aguaceiro, sem pojar em nenhuma das duas beiras. A solidão do pai gera uma imagem fantasmagórica, eternamente infeliz.

(...) ele agora virara cabeludo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pelos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.349

O Artista medita os mistérios produzidos pela água silenciosa e insondável; medita sobre o sentido da decomposição do Pai em sua morte cotidiana dentro do rio; medita o desejo de enganar a morte e alcançar o plano da eternidade.

O Pai se tornará eterno no plano das imagens profundas, no mundo poético/ficcional, porque o filho assim o deseja. A estória do Pai é a história do Artista e de seu lugar de origem. O Pai é o Sertão, o Filho/narrador é o Artista. Na verdade, quem se afasta do Pai é o Filho. O Filho sai do Sertão, mas o Sertão não sai do Filho. Através dos rios imaginários, o sertão do passado e seus rios misteriosos se tornam presentes nas nostálgicas recordações do Filho. As poças de água da Cidade transformam-se em rios inventados. Suas cintilações e reflexos impõem devaneios, multiplicados ad infinitum pelo poder da mente criadora.

A água imaginada se sobrepõe à água real. A poderosa sensibilidade do escritor intuiu a criação de um Pai solitário, em sua canoa, navegando em direção à irrealidade. O Sertão da infância, dentro da canoa das lembranças, singrando as irreais águas da Criação Ficcional.

Bachelard questiona: "Onde está o real: no céu ou no fundo das águas? O infinito, em nossos sonhos, é tão profundo no firmamento quanto sob as ondas"350.

O real de uma terceira margem é possível, se os sonhos são grandiosos. O viver solitário do Pai assume proporções inusitadas no decurso de uma aparentemente simples narrativa. Uma simples narrativa que leva a refletir sobre uma margem insólita, situada no infinito dos sonhos primordiais.

Se a realidade do sertão brasileiro é pobre, o Artista a transforma, envolvendo-a num halo de sonhos, materializando o mágico, eternizando a vida, descobrindo sua face poderosa.

Se a vida do Filho é perecível, a vida do Pai será eterna. Submetido ao encanto do ficcional, o Pai remará para sempre, renovando-se em cada leitor, em cada leitura, em cada geração.

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