No capítulo "A distensão e o nada"105, Bachelard mostra que não é um
total opositor de H. Bergson, apenas não aceita sua duração plena, contínua, estável e segura,e, por isso, procura provar que em qualquer duração existe a
essência metafísica do risco — absoluto e
total, sem objetivo e sem razão —, e que esse risco possibilita a
destruição da segurança da felicidade de qualquer indivíduo. O risco absoluto
abala as estruturas das coisas estáveis como uma vertigem que atrai o sujeito
pensante para o perigo, para a novidade, para a morte, para o nada.
Por este aspecto, o risco absoluto poderia ser detectado no momento em
que o sujeito pensante estivesse submetido ao repouso ativado. O repouso
ativado (ou fervilhante) seria o momento da distensão, do afrouxamento, do
não-funcionamento dos pensamentos comandados pela filosofia do cheio. Esse
momento de distensão (jamais pensar nesse repouso como algo lúdico e tranqüilo)
propicia uma identificação maior com o nada e a rejeição das confirmações
secularmente instituídas. Assim, paralelamente à filosofia da qualificação bergsoniana, Bachelard postula a filosofia da aniquilação, demonstrando
que o repouso ativado mediaria os
dois aspectos filosóficos.
O repouso ativado impediria ou promoveria a aniquilação total do
indivíduo, demonstraria o sucesso
ontológico do ser, se fosse observado posteriormente (depois do repouso)
uma criação renovada do ser por ele
mesmo. Esta criação renovada, ligada ao ato espiritual da consciência em sua
forma gratuita, instauraria, por exemplo, uma resistência aos apelos do
suicídio, demonstraria também o triunfo do indivíduo pensante sobre a sedução
do nada, mas demonstraria sobretudo que os pensamentos surgidos depois da antevisão
da aniquilação seriam totalmente inéditos, diferentes dos já padronizados.
A filosofia da aniquilação comprova que o ser, o movimento, o espaço, a
duração, admitem lacunas, e estas lacunas são sustentadas no espaço
intermediário do instante dinamizado, suspenso entre o antes e o depois. A
filosofia da aniquilação, bachelardiana,
supõe o nada como limite, enquanto que a filosofia da qualificação, bergsoniana, supõe a substância como
suporte. O nada bachelardiano
postula o repouso da ação natural da duração, já que uma função deve
freqüentemente interromper-se de funcionar. Depois da interrupção (do repouso
fervilhante), surge o pensamento puro,
resgatado da idéia do nada. Assim, o pensamento puro, segundo Bachelard,
recomeça da recusa da vida estabilizada, na tentativa de reformulá-la. Com a
interrupção da função, surge o princípio da negação temporal.
Já que a função (ação natural da duração ou o papel da duração na realidade temporal) deve freqüentemente
interromper-se de funcionar, para Bachelard, é algo normal atingir o limite e
pensar a questão do repouso da ação natural da duração. O ato de pensar a
questão do repouso ativado revela que há diferentes estágios (fundamentais) na
realidade temporal, e este conhecimento só se torna possível quando se
retrocede o princípio da negação até a realidade temporal. O repouso ativado
permite esse retrocesso e faz entender a questão do nada; o repouso ativado
(recusa da vida estável) permite uma nova atuação do pensamento, agora claro,
puro, surgido a partir do vazio.
Entre o vazio e cheio, parece-nos haver uma perfeita
correlação. Um não é inteligível sem o outro, e sobretudo uma ação não se
esclareceria sem a outra. Se nos recusam a intuição do vazio, estamos no
direito de recusar a intuição do cheio.106
Bachelard não aceita os
juízos pré-estabelecidos: estes já surgem como
argumentos frágeis, impedindo a polêmica ou debate. Ao comentar os juízos de
valor, critica explicitamente as idéias de Bergson. A comparação de dois juízos
pré-estabelecidos (esta mesa é branca
em confronto com esta mesa não é branca)
não gera polêmicas, apenas mostra que a primeira afirmação denuncia o caráter
determinado e imediato do juízo de valor enquanto que a segunda denuncia o
caráter indeterminado e indireto do outro juízo de valor.
Para o filósofo, vale mais o juízo da descoberta. Por exemplo, a
descoberta da dália azul (já que não há dálias azuis no âmbito do juízo
pré-estabelecido) gerando espanto, exclamações e naturalmente polêmicas
ardentes. No entanto, prova-se a existência de uma dália azul no âmbito do
pensamento enérgico e decisivo. Todos os juízos enérgicos, para Bachelard, são
juízos negativos. Esse juízos negativos evitam repetir velhas fórmulas de
pensamento, velhas afirmações enganosas. Os valores afirmativos não solucionam
questões, apenas preenchem o pensamento.
A afirmação, pela ótica de Bachelard, não significa conhecimento
positivo. A afirmação da existência de uma dália azul destrói o juízo de valor
que atribui outras colorações já determinadas (outras cores além do amarelo,
branco ou rosa) para as dálias que enfeitam os jardins. Tal afirmação destrói
juízos anteriores, mas impõe uma nova construção do juízo que se faz desta
flor; tal afirmação aniquila as aparências da realidade, deixando em aberto a
questão da essência. Uma dália azul existe e faz parte da realidade do ser que
sabe expor argumentos decisivos. Os fenômenos existem ativos ou passivos, e os
passivos estão vagando por aí à espera de quem os descubra.
O juízo da descoberta, ainda
pelo ponto de vista de Bachelard, invalidaria certas afirmações plenas, que
apenas preenchem e não solucionam as questões que incomodam o ser e sua
existência. Observando que as afirmações nem sempre são sinônimos de
conhecimento positivo e demonstrando que "a vida psicológica deve ser
captada em seus atos, em sua ondulação, não em sua fonte magra e
hipotética"107, o filósofo orienta-me quanto à questão do Conhecimento. Para ele, o Conhecimento, ao ser
verbalizado, deve instaurar polêmica, deve ser destruído e construído,
sendo que a construção às vezes nunca termina.
O pensamento transmutativo seria portanto a "única positividade
clara de um conhecimento"108, apreendida na consciência das retificações, nas insinuações, nas
persuasões, nas discussões polidas, nas ondulações do pensamento dialético. O
conhecimento dialetizado, descontínuo, sob o suporte de um fingido comportamento de continuidade, como por exemplo a falsa
aceitação de pensamentos plenos, subentendida em apartes de supostas
concordâncias, tais como, também fui
dessa opinião, mas... etc, superaria inevitáveis incidentes e promoveria
uma demonstração do negativismo psicológico, ou seja, uma temporária negação de
suas idéias.
O juízo afirmativo fingido
seria uma aceitação provisória e obrigaria o adepto dos valores afirmativos
plenos e inteiros a aceitar outros pensamentos que contradissessem os seus. As
regras conceituais já determinadas impedem novas conceituações e por isso são
criticadas por Bachelard, que prefere desenvolver uma filosofia da aniquilação, propulsora de novos pensamentos que
atuarão no devir.
Para Bachelard,
Todo conhecimento preciso conduz a uma aniquilação das
aparências, a uma hierarquização dos fenômenos, ao ato de lhes atribuir de
algum modo coeficientes de realidade, ou, se preferirmos, coeficientes de
irrealidade. Analisa-se assim o real a golpes de negação. Pensar é fazer
abstração de certas experiências, é mergulhá-las voluntariamente na sombra do
nada.109
Em outras palavras, um conceito preciso deve impor a marca da recusa de
valores pré-estabelecidos, a marca de tudo que se nega em sua incorporação. É
preciso anular o vago e o incerto de um fenômeno para, posteriormente,
remodelá-lo e fixá-lo. Esta dialetização do conhecimento proporcionaria novos
conceitos, libertos dos valores afirmativos, já desgastados, mas mesmo assim
considerados plenos e seguros.
Bachelard, procurando dialetizar a questão da distensão, ou seja, a
questão do repouso, no qual a inteligência se entrega a sua função
especulativa, coloca-se no cerne do ponto
de vista funcional, abandonando o ponto
de vista ontológico. Assim, retoma o problema, ressaltando o seu aspecto
prático, enquanto experiência de vida, para enfim esclarecer que a
classificação dos conceitos "em juízos afirmativos e negativos tem um real
valor psicológico"110, se instituída pela ótica funcional.
Retomando o problema (sempre)
pelo ponto de vista funcional, o
filósofo ressalta as diferenças entre este ponto de vista e o ponto de vista do Ser, concordando que é
impossível, para qualquer pensador, formular um conceito simples sobre o Ser,
porque o conceito do ser, pelo ponto de
vista do ser, será sempre pleno, e pelo ponto
de vista funcional, sempre parcial. Para que o conceito do Ser tenha
sentido, o primeiro passo, geralmente, é a submissão a um juízo de valor já
pré-estabelecido. Assim, o pensador se submete a uma hierarquização conceitual
complexa, oferecida pela tradição, observando camadas e camadas de conceitos
complexos sobre o Ser, conceitos já elaborados, sem alcançar um conceito simples
e claro que o satisfaça.
O Ser, mesmo preciso, deve-nos múltiplas provas; não o
aceitamos senão depois de uma qualificação diversa e móvel, experimentada e
retificada. Assim, o que é deve
psicologicamente devir. Não se pode
pensar o Ser sem associar a ele um devir gnoseológico. Tomado em sua síntese
máxima, o ser pensado deve ser um elemento do devir.111
O conhecimento do Ser exige um conhecimento previamente elaborado,
ligado num primeiro momento a um juízo de valor, transmitido de geração a
geração. O aspecto gnoseológico da questão, ou seja, o conhecimento da
divindade que se transmite por tradição, sustentaria sempre os pensamentos
futuros sobre o Ser.
Inutilmente se tentará, por meio de não se sabe que
hierarquia lógica de conceitos, localizar no empíreo imóvel conceitos simples,
dotados de uma clareza intrínseca, no cimo dos quais reinaria o conceito do
Ser.112
O pensamento exprimiria ações virtuais e reais, e seu ponto culminante
seria o momento exato da decisão. O momento decisivo uniria idéia, ação e
desenvolvimento da ação, atitudes que não comportam em absoluto sincronicidade,
segundo Bachelard. O momento decisivo seria então a concentração da ação (a
soma da idéia do pensamento de agir e do desenvolvimento da ação) ou, em outras
palavras ainda, seria a unidade desses comportamentos não sincronizados, somada
ao absoluto dessa ação. A decisão do pensamento orientaria o gesto posterior, e este ficaria
submetido a "mecanismos subalternos não vigiados"113.
O conhecimento do Ser, pelo ponto
de vista do ser (conhecimento complexo), é inerente ao tempo vivido e não
se adéqua ao tempo pensado, totalmente aéreo, livre, matematizado, "tempo
onde se inserem as invenções do Ser " (...) " tempo em que o
pensamento age e prepara as concretizações do Ser"114. Por esta ótica, é importante
não confundir o tempo pensado com o tempo abstrato. O tempo pensado é um
estágio de realizações, concretizações, clarificações, e, para conceituar o
Ser, os conceitos lógicos e simples são inúteis.
O tempo pensado (ou matematizado) impulsionaria o pensador, fazendo-o
agir, obrigando-o a iniciar o gesto e
a concretizá-lo, já que houve um decisivo consentimento no instante da
concentração da ação (impulsionadora desse gesto). A realização de tal gesto é
obra do tempo pensado, vigorando acima do tempo vivido (pleno, linear) que não
permite um pensamento vertical, se a ação do pensador estiver submetida a seu
domínio.
Refletindo sobre o consentimento
para agir de Henri Bergson, consentimento este assegurado pela doutrina do
cheio, ou seja, do tempo vivido, Bachelard inicia seus pensamentos,
acompanhando, num primeiro momento,
a explanação bergsoniana sobre o tema. Mas
essa adesão só se verifica no início, quando ele focaliza no verbo, à moda bergsoniana, as relações
enunciadas por um juízo de valor,
algo totalmente diferente da proposta bachelardiana, que opta por procurar as
raízes desse consentimento para agir no predicado
ou no sujeito, que acarretam,
outrossim, o juízo de descoberta. É importante não esquecer que esse
consentimento parte do tempo pensado,
mas é o início do gesto que direciona a ação.
Bachelard, refletindo a
questão, se coloca no meio do verbo, seguindo inicialmente as assertivas bergsonianas, como já
foi dito, mas procura reconduzir toda a
ação de seu pensamento a seu aspecto decisivo e unitário, instantâneo,
diferente da lentidão e multiplicidade do tempo
vivido.
O pensador, depois dessa recondução inicialmente bergsoniana, quebra
a continuidade
em favor de uma hierarquia de instantes. Conceituando inicialmente o Ser sob a
orientação de Bergson, ou seja, aceitando o consentimento
para agir ligado ao verbo, pela
dialética do sim e do não, ele percebe que esse consentimento
para agir, pela ótica bergsoniana, é simplesmente um acréscimo artificial, algo
secundário na doutrina do cheio. Bergson, mesmo dialetizando o sim e o não, quando acrescenta em seus estudos o consentimento para agir,
só desenvolve pensamentos ligados ao sim,
ou seja, ao cheio. Bachelard
aproveita-se desse descuido, para
desenvolver um pensamento transmutativo, contrapondo ao cheio bergsoniano o vazio, provedor de novos
pensamentos. Enquanto o consentimento
para agir bergsoniano surge como algo secundário na doutrina da
interioridade, sincronizada com a vida, enraizada na vida, caminhando junto com
a vida, Bachelard busca esse consentimento na essência da
própria noção de consentimento, ou seja, numa "teoria que afirma a
existência de um pensamento liberado da vida, suspenso acima da vida,
suscetível também de suspender a vida"115.
Desta forma, qualquer juízo tem de ser julgado, para preparar e medir a
relação de causa e efeito no âmbito da psicologia e da biologia. Depois do
julgamento, surge a decisão excepcional,
direcionando a evolução do pensador.
Assim, o consentimento para agir
que, em Bergson, surgiu simplesmente como um acréscimo na doutrina do cheio, em Bachelard, é dialetizado até a exaustão (cheio e vazio), surgindo, no nível do juízo
decisivo, como acréscimo funcional, mas, também, como acréscimo essencial,
necessário, indispensável.
O juízo decisivo, segundo
Bachelard, é necessariamente secundário, mas é, mesmo assim, uma conquista
sobre o medo, a dúvida, o erro; ele é secundário, mas necessário, porque a
idéia de interpretação transmitida por ele impõe o desejo de continuar, já que
a interrupção supõe a noção de término e a possibilidade de não concretização
do pensamento.
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