quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.10.4 Sob a influência do fogo

II.10.4  Sob a influência do fogo

O cidadão do mundo fixou seu olhar de criador literário no sertão da infância. Por meio de iluminadas recordações, e submetido temporariamente ao elemento fogo, passou a modelar o seu espaço de origem sob as ordens agora (A hora e vez de Augusto Matraga) das próprias reflexões. De ora em diante, qualquer outra matéria que for eleita (terra, água, ar), para a elaboração do literário, trará a marca transmutativa do fogo purificador.

O sonhador, na citada narrativa, sonha diante do fogo um sertão diferente, singular, situado na região das profundas meditações. Pela primeira vez, ao longo da escrita de Sagarana, o coronel do sertão abandona a aparência mítica, passando a sofrer as conseqüências de suas atitudes passionais.

O elemento fogo, dignificado nas seqüências iniciais, destrói o mito, humaniza o personagem no final, permitindo-lhe o ressurgimento das necessidades vitais (desejo por mulheres, hábitos, brigas) que compõem a realidade sócio-substancial.

O conflito narrativo, instaurado inicialmente pelo elemento fogo e reinterado a partir do encontro de Nhô Augusto com o Tião da Thereza, caracteriza esse momento de mudança discursiva.
Retomando o conflito central: Tião da Thereza (personagem ocasional), saindo "à procura de uma boiada brava, que se desmanchara nos gerais do alto Urucuia", reconhece Nhô Augusto, que estava escondido no norte de Minas, com seus pretos tutelares, e "como era casca-grossa, foi logo dando as notícias que ninguém não tinha pedido"218. Nhô Augusto, depois de ouvir o Tião, pede-lhe que não o delate e que esqueça o encontro.

E Tião da Thereza pôs, nos olhos, na voz e no meio-aberto da boca, tanto nojo e desprezo, que Nhô Augusto abaixou o queixo, e nem adiantou repetir para si mesmo a jaculatória do coração manso e humilde: teve foi de sair, para trás das bananeiras, onde se ajoelhou e rejurou: — P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...

E foi bom passo que nesse dia um homem chamado Romualdo, morador à beira da cava, precisou de ajuda para tirar uma égua do atoleiro, e Nhô Augusto teve trabalho até tarde da noite, com fogueira acesa e tocha na mão.219

Eis o elemento fogo possibilitando uma nova transformação do personagem, do narrador e do narrado. O fogo purificador, simbolizado pela fogueira acesa e pela tocha, cede lugar, aos poucos, aos elementos naturais da obra roseana. A terra e a água, amalgamadas dinamicamente, ressurgem pela perspectiva dialetizada, aquela que, ao lado da perspectiva maravilhada, fundamentará a criação das páginas singulares de Grande Sertão: Veredas.

As duas faces/fases do mito (carismático-guerreiro e carismático-religioso), ligadas ainda às primeiras narrativas de Sagarana, marcaram as etapas iniciais da narrativa. A partir deste momento de conflito do personagem Nhô Augusto (indiscutivelmente), personagens, narradores, o universo roseano em sua totalidade não serão mais reprodutores de conceitos substanciais. Uma chama de tocha, depois do conflito central, sugeriu a mudança, dilatou os limites do pensamento criador. A fogueira acesa e a tocha na mão do personagem mudaram a aparência do sertão geográfico da infância.

O ser fascinado escuta o apelo do braseiro. Para ele, a destruição é mais do que uma mudança, é uma renovação.220

O personagem ocasional destrói o aparentemente equilibrado espaço sertanejo da primeira fase. O Artista da terra e água sertanejas, visualizadas antes em seus aspectos exteriores, escuta o apelo do braseiro e promove a destruição do personagem e seu mundo de aparências. Promovendo o desenlace (a morte do personagem, no final), renova o próprio ato criativo, valendo-se de seu poder de contemplação, sustentado pelo fogo, matéria que não faz parte de suas substâncias essenciais.

O fogo, elemento temporariamente exaltado nesta narrativa, e particularmente relacionado ao pensamento filosófico (questionador e observador de aspectos profundos do natural e social), aqui favorece uma futura excursão/incursão nos planos profundos da terra e da água, elementos ainda primordiais da segunda fase criativa, iniciada com a divulgação da coletânea Primeiras estórias, assim como promove também a libertação total e definitiva da consciência pura (terceira e última fase), simbolizada pelo elemento ar.

Nas mais variadas circunstâncias, o apelo da fogueira continua a ser um tema poético fundamental. Na vida moderna já não corresponde a nenhuma observação positiva. Mas ainda assim comove-nos. Desde Vitor Hugo até Henri Régnier, que a fogueira de Hércules continua, como um símbolo natural, a revelar-nos o destino dos homens. Aquilo que é puramente fictício para o conhecimento objetivo permanece portanto profundamente real e ativo em relação aos devaneios inconscientes. O sonho é mais forte do que a experiência.221

Apesar das matérias eleitas (terra e água), o apelo do fogo foi indispensável, nesta narrativa, para que houvesse a já assinalada mudança discursiva.

O fogo surge inicialmente sob os moldes míticos, mostrando nitidamente a relutância do Artista em abandonar o antigo método de contar estórias, característico do narrador de experiências comunitárias. Posteriormente, simbolizado pela fogueira e pela tocha na mão do herói humilhado, o fogo propicia um novo discurso (p. 27), inspirado nas recordações de uma infância sertaneja. Aqui, é pertinente lembrar que, mesmo que o Artista tenha nascido em uma pequena cidade, ao invés do sertão propriamente dito, esta cidade, no início do século, estava circunscrita ao sertão, possuindo assim valores que não se enquadravam em um ambiente modernamente citadino. Portanto, não é inadmissível pensar em uma infância sertaneja para o Artista, já que o próprio assim se denomina.

(...) sou um sertanejo e acho maravilhoso que você deduzisse isso lendo meus livros, o que significa que você os entendeu. Se você me chama de "o homem do sertão" (e eu realmente me considero como tal), e queremos conversar sobre este homem, já estão tocados no fundo os outros pontos. É que eu sou antes de mais nada este "homem do sertão"; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo menos eu acredito tão firmemente como você, que ele, esse "homem do sertão", está presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa.222

Inspirado nas recordações poéticas de uma infância sertaneja e sob as ordens temporárias do elemento fogo, o Artista remodela o seu espaço de origem. A mudança discursiva obriga o leitor a repensar o sertão.

O fogo possui o poder de comover e ao mesmo tempo revelar o destino dos homens. Uma narrativa experiente, linear, não revela, apenas decalca experiências abalizadas. O fogo induz ao sonho, predispõe à criação ficcional, muito mais reveladora do que o simples ato de contar estórias de coronéis poderosos. O sonho (diante do fogo) é mais forte do que a experiência; promove explicações profundas.

A profundidade é aquilo que se esconde; é aquilo que se cala.223

Esta frase de Gaston Bachelard resume suas teses sobre ciência e espírito, no capítulo "Psicanálise e Pré-história"224. O filósofo procura provar que, sem desmerecer a psicanálise oficial, a psicanálise indireta e secundária, aquela que busca o inconsciente sob o consciente, o subjetivo e o devaneio, é tão válida quanto a outra. Afirma inclusive que a ciência é sempre precedida por um devaneio, exigindo trabalho e concentração, para que o cientista não se deixe dominar pelo sonho.

Discutindo ainda ciência e espírito, racionalismo e primitivismo, refaz a história da descoberta do fogo, criticando as lacunas do pensamento objetivo sobre o assunto, provando que as explicações científicas nem sempre convencem ao analista argumentador. O filósofo procura demonstrar que a observação ingênua por vezes é mais reveladora.

Recuperando as idéias racionalistas, sobre a descoberta do fogo, que explicam tal descoberta tomando-se por base a fricção de dois pedaços de madeira, Bachelard afirma que tal explicação não satisfaz plenamente aos estudiosos do assunto.

Se uma explicação racional e objetiva é, na verdade, pouco satisfatória para justificar uma descoberta realizada por um espírito primitivo, uma explicação psicanalítica, por muito fantástica que pareça, deve finalmente ser a explicação psicológica verdadeira.

Em primeiro lugar, temos de reconhecer que a fricção é uma experiência muito sexualizada. Não teremos dificuldade em nos convencermos disso ao consultarmos os documentos psicológicos reunidos pela psicanálise clássica. Em segundo lugar, se quisermos sistematizar as indicações de uma psicanálise especial das impressões calorígenas, ficaremos convencidos de que a tentativa objetiva de produzir o fogo através da fricção é sugerida por experiências absolutamente íntimas. Seja como for, é neste campo que o circuito se revela mais curto entre o fenômeno do fogo e a sua reprodução. O amor é a primeira hipótese científica para a reprodução do fogo.225

Por amor às recordações do sertão, o Artista renovou seu ato de narrar sob a cumplicidade do fogo. Descobriu também que só a chama vertical transcenderia os limites do palpável, transportando-se para o plano infinito dos sonhos maiores.

O amor marca esta passagem de fogo na obra roseana. O amor primitivo em A hora e vez de Augusto Matraga e o amor sublime de Riobaldo por Diadorim, em Grande Sertão: Veredas.

O amor primitivo, inserido na narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, sobressai-se por intermédio de duas meretrizes sertanejas, muito disputadas pelos capiaus durante o leilão em honra de Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici; leilão este que, iluminado pelo fogo mítico, se manifesta como elemento desencadeador das posteriores transformações narrativas.

Se a fricção de dois pedaços de madeira como origem científica do fogo não satisfaz aos estudiosos, a fricção de corpos que se buscam como origem metafísica do fogo alcança maior aceitação por parte dos sonhadores ígneos. O sonhador das chamas, sob o poder da subjetividade, consegue explicar e convencer o leitor.

O temporário sonhador/narrador de chamas de A hora e vez de Augusto Matraga capta a contribuição da fricção sexual primitiva e explora-a criativamente, demonstrando que a inflamação dos instintos pode mudar os rumos de anteriores propostas narrativas. Assim, logo no início apresenta o herói (mítico-pagão) Nhô Augusto, em um leilão de santo (místico-cristão), no meio de "uma multidão encachaçada de fim de festa", disputando com o "povo encapetado" as duas "mulheres-à-toa" que ali se achavam. O Todo Poderoso senhor-de-terra arremata a meretriz branca por cinqüenta mil-réis, enquanto que a outra, a Angélica preta, "se rindo, sem vergonha e dengosa, se soverteu na montoeira, de braço em braço, de rolo em rolo, pegada, manuseada, beliscada e cacarejante"226. O narrador inflama a narrativa com primitivos devaneios sexuais.

O narrador neste momento de confusão está consciente e em estado de gozo. O povo do sertão vibra, porque o Artista moderno também vibra com a descoberta de seu amor pela terra nativa. O dinamismo vital fá-lo descobrir-se como autêntico representante de uma região mal conceituada socialmente. O dinamismo vital impele-o para uma transformação (ao nível da ficção) que dignifique o sertão no âmbito universal. Por isto o gozo da descoberta: o amor ao sertão da infância é superior aos apelos da modernidade.

Para inflamar o pilão, enfiando-o na ranhura da madeira seca, é preciso tempo e paciência. Porém tal trabalho devia agradar a um ser cujos devaneios eram sexuais. Foi talvez a fazer esse trabalho que o homem aprendeu a cantar.227

Para inflamar a narrativa, ele recorre ao aparato mítico: com a chegada de Nhô Augusto, para arrematar a meretriz Sariema no leilão, houve um deslocamento de gentes, porque a figura imponente do herói, alteado, peito largo, vestido de luto (a cor negra de suas vestes como símbolo de poder) se agigantava, diminuindo ainda mais o povo, já por si pequeno na escala social. Assim, visualiza-se um Zeus sertanejo pisando pé dos outros, não se incomodando em destruir, varando à frente da massa, se encarando com a Sariema, pondo-lhe o dedo no queixo; a Sariema como uma das deidades preferidas pelo tonitruante deus com voz de meio-dia, voz de quem se encontra no auge de seu poder; o tonitruante que nunca pede, ao contrário, berra, grita, impõe. Um deus sertanejo acostumado a determinar o destino de seus subordinados, que não oferece o rosto ao povo, mas espera os aplausos, a glorificação.

O deus sertanejo já não se encontra em um espaço apenas mítico. O mítico se amalgama ao místico. Há um leilão de santo, e muita luz de azeite (fogo mítico), e isto indica que alguma coisa está por acontecer. Há o povo miticamente encapetado e sedento por prazeres como nas festas pagãs; há o Tião leiloeiro, mensageiro do deus monoteísta, lembrando à multidão o aspecto sagrado do evento. Todas as ocorrências iniciais impõe reafirmar que a narrativa remete simbolicamente a um momento de transição narrativa.

Nesse momento de transição, os devaneios do narrador roseano são obrigatoriamente sexuais. Por isto, a presença das duas meretrizes logo no início;

E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-o-mundo com elas querendo ficar.228
por isto, os desejos de amor do capiauzinho enamorado pela meretriz Sariema;

Mas perto, encostado nela outra, um capiau de cara romântica subia todo no sem-jeito; eles estavam se gostando, e, por isso, aquele povo encapetado não tinha — pelo menos para o pobre namorado — nenhuma razão de existir.229

por isto, o desejo sensual de Nhô Augusto, rematando-a por cinqüenta mil-réis e tomando-a do capiauzinho.

A narrativa, neste início, reproduzindo a realidade sertaneja, é ritmada e agradável. Orientando filosoficamente neste aspecto, Bachelard cita a tese de Pinheiro dos Santos sobre ritmanálise. A ritmanálise produz harmonia, impele o trabalhador a ritmar seu trabalho, obriga-o a atribuir "realidade temporal àquilo que vibra"230, e o discurso modificado vibra sob os impulsos do gozo narrativo.

A fricção sexual continua ao longo da narrativa. O narrador ainda primitivo, diegético, vai aos poucos descobrindo "a consciência de si próprio", a qual é, acima de tudo, segundo Bachelard, confiança em si próprio231. É o Artista se descobrindo.

A ritmanálise, de acordo com a tese de Pinheiro dos Santos, reavaliada por Gaston Bachelard, produz harmonia, e o trabalho rítmico corresponde ao ritmo do trabalhador. Para inflamar a narrativa, o narrador sutilmente deixa transparecer devaneios sexuais, mediante um discurso ritmado: "Foi talvez a fazer esse trabalho que o homem aprendeu a cantar"232.

Quando Nhô Augusto se apropria da meretriz, o povo aplaude num coro cadenciado: "É do Nhô Augusto... Nhô Augusto leva a rapariga! — gritava o povo por ser barato. E uma voz bem entoada cantou de lá, por cantar:"

Mariquinha é como a chuva:
boa é, p'ra quem quer bem!
Ela vem sempre de graça,
só não sei quando ela vem...233

O narrador está exercitando o ato de fricção, invadido pelo calor objetivo da descoberta do Artista. Nesse momento, quem percebe o Amor maior, indizível, oriundo do espaço do Não-dito, é o Artista. O Artista está vivenciando a descoberta do verdadeiro plano da criação literária, já intuído nas narrativas anteriores de Sagarana. Por isto, o gozo é intenso e, posteriormente, se propaga, indefinidamente, nas quinhentas e sessenta e três páginas de Grande Sertão: Veredas.

É um trabalho evidentemente rítmico, um trabalho que corresponde ao ritmo do trabalhador, que lhe fornece múltiplas e belas ressonâncias; o braço que fricciona, os pedaços de madeira que batem, a voz que canta, tudo se une na mesma harmonia, na mesma dinamogenia ritmada, tudo converge para a mesma esperança, para um fim cujo valor se conhece. Logo que se inicia a fricção, invade-nos um suave calor objetivo, ao mesmo tempo que a quente sensação de um exercício agradável. os ritmos sustentam-se uns aos outros. Induzem-se mutuamente e duram por auto-indução.234

Sustentado por este ritmo, obriga o povaréu a aclamar, "com disciplina e cadência", a atitude de Nhô Augusto: "— Nhô Augusto leva a Sariema! Nhô Augusto leva a Sariema!"235.

E o ritmo do narrador, induzido pelo Artista, obriga o capiauzinho apaixonado a se submeter ao poderio de Nhô Augusto, que o separou de sua amada, com uma pranchada de mão; o ritmo do narrador capta a confusão do momento, a briga que se instaura entre os capiaus, vista por vários ângulos ao mesmo tempo. O narrador está atento ao detalhe, porque sua função, no momento, é reproduzir a "inflamação do pilão, enfiando-o na ranhura da madeira seca"236, ou seja, reproduzir uma narrativa primitiva, memorialista, e continuar uma tradição, levando aos pósteros as experiências de vida do sertanejo.

O ritmo do narrador obriga o povo a estapear o capiauzinho e a aclamar Nhô Augusto; obriga o herói a abandonar sua presa de guerra no meio do caminho, em direção ao Beco do Sem-Ceroula, "onde só há três prédios – cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à janela – e onde gente séria entra mas não passa"237.

O ritmo do narrador obriga Nhô Augusto a "descer a ladeira sozinho – uma ladeira que a gente tinha de descer quase correndo, porque era só cristal (quartzo, sílex ou feldspato) e pedra solta"238, e retomar o caminho de sua casa na cidade, na Rua de Cima, rua simbolizando o Olimpo Sertanejo, morada dos deuses e poderosos.

É também o ritmo do narrador experiente que apresenta D. Dionóra (a esposa de Nhô Augusto e nora do Coronel Afonsão Esteves); D. Dionóra, que tinha belos cabelos e olhos sérios, tão semelhante à Hera, esposa de Zeus, a deusa dos olhos bovinos, segundo os dizeres de Homero. D. Dionóra, que, assim como a sua similar mítica, vivia constantemente ultrajada pelas traições sexuais do marido.

Sustentado por este discurso rítmico, o narrador muda as fases/faces de seu personagem, ou seja, todas as transformações sofridas a partir da marca de ferro-em-brasa: a queda físico-social, a recuperação na cabana de pretos, a partida para o norte de Minas, sob sua face/fase carismático-religiosa; a permanência no povoado do Tombador e, principalmente, a transformação final, realizada sob a égide da criação literária, na qual o personagem se liberta definitivamente dos modelos reprodutores, marcas de narrativas lineares.

O Artista, neste segmento final da narrativa, descobre a consciência de si próprio; descobre-se um deus-que-garante-tudo, redirecionando o próprio ato de narrar. Seu narrador inflamou o pilão, enfiando-o na ranhadura da madeira seca do sertão primitivo e descobriu o brilho da chama dos sonhos bem sonhados apontando verticalmente para o Infinito. Em outras palavras, ainda sob orientação bachelardiana, o narrador roseano sai da Idade da pedra lascada, maltratada, para a idade da pedra polida, acariciada, "ama as pedras como quem ama uma mulher"239.

Quando se observa um machado de sílex talhado, é impossível fugir-se à idéia de que se conseguiu localizar tão bem cada faceta graças a uma redução da força, graças a uma força inibida, contida, administrada, numa palavra, uma força psicanalisada. Com a pedra polida, passamos da carícia intermitente à carícia contínua ao movimento suave e envolvente, ritmado e sedutor. Seja como for, o homem que trabalha com tanta paciência é sustentado, simultaneamente, por uma recordação e uma esperança, e é entre as forças afetivas que devemos procurar o segredo das suas divulgações.240

O narrador moderno (novo personagem roseano) reduz, no final de A hora e vez de Augusto Matraga, a força do narrador memorialista, preso às experiências de vida da comunidade sertaneja, material precioso que fundamenta a vida de um povo. As experiências de vida, assinaladas por Walter Benjamim em O Narrador, encontram-se registradas na memória. Entretanto, foi esta memória (primeiras seqüências) que insistiu posteriormente em ressuscitar o herói e, conseqüentemente, em permanecer fiel às tradições do Sertão.

Na verdade, quem reduz a própria força ficcional é o Artista, aquele ser oriundo do sertão, que adotou ou foi adotado pelas leis sociais modernas. O Artista inibe sua força, administra-a no final, porque uma nova etapa da poética do fogo o leva a agir assim. De ora em diante, ele será sustentado pelas recordações da infância e a esperança de que estas recordações de seu mundo primitivo, no sentido genético, o ajudem a equilibrar-se psicologicamente no desconhecido mundo moderno (jamais esquecer que o Artista é nativo do sertão). O Amor pelo sertão, descoberto sob a orientação do fogo, guiará agora o impulso de sua mão, a qual, por sua vez, será instigada pelo relaxamento dos olhos na fase do amanhecer. Uma nova realidade começa a surgir, propiciando um novo direcionamento narrativo.

Recuperando o que já foi dito até agora, as seqüências iniciais da narrativa reproduzem o nascimento do fogo (sertão mítico-místico), o nascimento da matéria que propiciará uma nova etapa de narrativa.

A produção do fogo por fricção ficou para todo o sempre ligada a uma idéia de festa. Nas festas do fogo, tão celebradas na Idade Média, tão universalmente praticadas pelos povos primitivos, regressa-se por vezes ao costume inicial, o que parece provar que o nascimento do fogo foi o princípio da sua adoração.241

A interferência da matéria fogo, na já assinalada narrativa roseana, ficou devidamente caracterizada na festa sertaneja em homenagem à santa padroeira do arraial do Murici, um pequeno burgo (representando a modernidade que se quer alcançar) incrustado nos domínios do sertão primitivo. A festa em honra de Nossa Senhora das Dores (no Sertão) repete as religiosas festas medievais. O sertão mineiro, ainda hoje, é um invólucro de valores medievais, trazidos pelos portugueses que aqui aportaram, desde o século XVI. Por isto, as lanternas de azeite, as velas, iluminam ainda muitos trechos do sertão, ignorantes da luz elétrica, em plena era de progresso.

O fogo, ao longo da narrativa, representa a nostalgia do homem do sertão. Bachelard diz que a nostalgia é a recordação do calor do ninho; o narrador sertanejo apropria-se do fogo tépido das recordações para recuperar antigos calores/valores que o marcaram em sua essência. O Artista, de origem sertaneja, narrador de experiências, mas ao mesmo tempo produtor de Ficção-Arte, tem consciência de sua antiga felicidade. O calor da festa está portanto na "origem da consciência de felicidade"242, como ensina o filósofo, oriundo de vinhateiros da Champanha.

Há uma ligação metafísica entre Bachelard e Rosa, tão diferentes, no que se relacione a gênero, e ao mesmo tempo tão iguais em suas profundas reflexões. Há uma ligação metafísica entre o filósofo nascido em uma região agrícola da França e o escritor brasileiro, homem citadino, civilizado, mas oriundo de uma região sertaneja, pouco valorizada no âmbito social. O filósofo, ao versar o tema do fogo, se conscientiza, também ele, de sua antiga felicidade.

A recordação do calor do ninho revive o sertão primitivo. O narrador se vale do fogo e do amor para simbolizarem o seu momento de transição narrativa. A luz das lanternas de azeite, que iluminam o cenário mítico, sai de suas convicções íntimas, de sua atual consciência de poder de criação. A luz das lanternas que iluminam o leilão sai de suas próprias entranhas, luz que num futuro já muito próximo iluminará a insolidez do discurso criativo, com sua alta taxa de poesia.

O discurso do Artista se inflama primitivamente, para usufruir posteriormente da beleza da chama domesticada, que aponta sempre para o alto. A poesia enquanto essência necessita da chama primitiva, sustentadora de futuras revelações. A atração para o fogo, para o amante da terra e água amalgamadas, nesta narrativa, se faz necessária, porque a fricção da memória com a recordação significa novas etapas a serem alcançadas.

O calor é um bem, uma possessão. Deve guardar-se ciosamente e só o conceder a um ser eleito que mereça uma comunhão, uma fusão recíproca. A luz brinca e ri à superfície das coisas, mas o calor, só ele, é que penetra.243

O Artista é um ser eleito. A luz das lanternas brincam à superfície da narrativa nas primeiras seqüências, mas foi o calor do ferro-em-brasa que obrigou o seu narrador a penetrar na intimidade do personagem, transformando-o em um ser autenticamente ficcional.

O calor íntimo do Artista direcionou novas etapas criativas, o calor é um bem, uma possessão; e eis novamente a imagem do calor, sob a forma de um trago de cachaça, propiciando um sonho bonito, "no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões (...), que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo” 244.

O personagem muda sua trajetória de vida — ou seria o Narrador? ou o Artista?

Depois da invernada brava, Nhô Augusto é um novo homem, renascido das cinzas do antigo herói sanguinário.




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