O cidadão do mundo fixou seu olhar de criador literário no sertão da
infância. Por meio de iluminadas
recordações, e submetido temporariamente ao elemento fogo, passou a modelar o seu espaço de origem sob as
ordens agora (A hora e vez de Augusto Matraga) das
próprias reflexões. De ora em diante, qualquer outra matéria que for eleita
(terra, água, ar), para a elaboração do literário, trará a marca transmutativa do fogo purificador.
O sonhador, na citada narrativa, sonha diante do fogo um sertão
diferente, singular, situado na região das profundas meditações. Pela primeira
vez, ao longo da escrita de Sagarana, o coronel do sertão abandona a aparência
mítica, passando a sofrer as conseqüências de suas atitudes passionais.
O elemento fogo, dignificado nas seqüências iniciais, destrói o mito,
humaniza o personagem no final, permitindo-lhe o ressurgimento das necessidades
vitais (desejo por mulheres, hábitos, brigas) que compõem a realidade
sócio-substancial.
O
conflito narrativo, instaurado inicialmente pelo elemento fogo e reinterado a
partir do encontro de Nhô Augusto com o Tião da Thereza, caracteriza esse
momento de mudança discursiva.
Retomando
o conflito central: Tião da Thereza (personagem ocasional), saindo "à
procura de uma boiada brava, que se desmanchara nos gerais do alto
Urucuia", reconhece Nhô Augusto, que estava escondido no norte de Minas,
com seus pretos tutelares, e "como era casca-grossa, foi logo dando as
notícias que ninguém não tinha pedido"218. Nhô Augusto, depois de ouvir o
Tião, pede-lhe que não o delate e que esqueça o encontro.
E Tião da Thereza pôs, nos olhos, na voz e no
meio-aberto da boca, tanto nojo e desprezo, que Nhô Augusto abaixou o queixo, e
nem adiantou repetir para si mesmo a jaculatória do coração manso e humilde:
teve foi de sair, para trás das bananeiras, onde se ajoelhou e rejurou: — P'ra
o céu eu vou, nem que seja a porrete!...
E foi bom passo que nesse dia um homem chamado Romualdo,
morador à beira da cava, precisou de ajuda para tirar uma égua do atoleiro, e
Nhô Augusto teve trabalho até tarde da noite, com fogueira acesa e tocha na
mão.219
Eis o elemento fogo possibilitando uma nova transformação do
personagem, do narrador e do narrado. O fogo purificador, simbolizado pela
fogueira acesa e pela tocha, cede lugar, aos poucos, aos elementos naturais da
obra roseana. A terra e a água, amalgamadas dinamicamente, ressurgem pela perspectiva dialetizada, aquela que, ao
lado da perspectiva maravilhada,
fundamentará a criação das páginas singulares de Grande Sertão: Veredas.
As
duas faces/fases do mito (carismático-guerreiro e carismático-religioso),
ligadas ainda às primeiras narrativas de Sagarana, marcaram
as etapas iniciais da narrativa. A partir deste momento de conflito do
personagem Nhô Augusto (indiscutivelmente), personagens, narradores, o universo
roseano em sua totalidade não serão mais reprodutores de conceitos
substanciais. Uma chama de tocha,
depois do conflito central, sugeriu a mudança, dilatou os limites do pensamento
criador. A fogueira acesa e a tocha na mão do personagem mudaram a aparência do
sertão geográfico da infância.
O ser fascinado escuta o apelo do braseiro. Para ele, a destruição é mais do que uma
mudança, é uma renovação.220
O
personagem ocasional destrói o aparentemente equilibrado espaço sertanejo da
primeira fase. O Artista da terra e água sertanejas, visualizadas antes em seus
aspectos exteriores, escuta o apelo do braseiro e promove a destruição do personagem e seu mundo de
aparências. Promovendo o desenlace (a morte do personagem, no final), renova o
próprio ato criativo, valendo-se de seu poder de contemplação, sustentado pelo
fogo, matéria que não faz parte de suas substâncias essenciais.
O
fogo, elemento temporariamente exaltado nesta narrativa, e particularmente
relacionado ao pensamento filosófico (questionador e observador de aspectos
profundos do natural e social), aqui favorece uma futura excursão/incursão nos
planos profundos da terra e da água, elementos ainda primordiais da segunda
fase criativa, iniciada com a divulgação da coletânea Primeiras estórias, assim como promove também a libertação total e definitiva da
consciência pura (terceira e última fase), simbolizada pelo elemento ar.
Nas mais variadas circunstâncias, o apelo da fogueira
continua a ser um tema poético fundamental. Na vida moderna já não corresponde
a nenhuma observação positiva. Mas ainda assim comove-nos. Desde Vitor Hugo até
Henri Régnier, que a fogueira de Hércules continua, como um símbolo natural, a
revelar-nos o destino dos homens. Aquilo que é puramente fictício para o
conhecimento objetivo permanece portanto profundamente real e ativo em relação
aos devaneios inconscientes. O sonho é mais forte do que a experiência.221
Apesar
das matérias eleitas (terra e água), o apelo do fogo foi indispensável, nesta
narrativa, para que houvesse a já assinalada mudança discursiva.
O
fogo surge inicialmente sob os moldes míticos, mostrando nitidamente a
relutância do Artista em abandonar o antigo
método de contar estórias, característico do narrador de experiências
comunitárias. Posteriormente, simbolizado pela fogueira e pela tocha na mão do herói humilhado, o fogo propicia um novo
discurso (p. 27), inspirado nas recordações de uma infância sertaneja. Aqui, é
pertinente lembrar que, mesmo que o Artista tenha nascido em uma pequena
cidade, ao invés do sertão propriamente dito, esta cidade, no início do século,
estava circunscrita ao sertão, possuindo assim valores que não se enquadravam
em um ambiente modernamente citadino. Portanto, não é inadmissível pensar em
uma infância sertaneja para o Artista, já que o próprio assim se denomina.
(...) sou um sertanejo e acho maravilhoso que você
deduzisse isso lendo meus livros, o que significa que você os entendeu. Se você
me chama de "o homem do sertão" (e eu realmente me considero como
tal), e queremos conversar sobre este homem, já estão tocados no fundo os
outros pontos. É que eu sou antes de mais nada este "homem do sertão";
e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo menos eu
acredito tão firmemente como você, que ele, esse "homem do sertão",
está presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa.222
Inspirado
nas recordações poéticas de uma infância sertaneja e sob as ordens temporárias
do elemento fogo, o Artista remodela o seu espaço de origem. A mudança
discursiva obriga o leitor a repensar o sertão.
O
fogo possui o poder de comover e ao mesmo tempo revelar o destino dos homens. Uma narrativa experiente, linear, não revela,
apenas decalca experiências abalizadas. O fogo induz ao sonho, predispõe à
criação ficcional, muito mais reveladora do que o simples ato de contar
estórias de coronéis poderosos. O sonho (diante
do fogo) é mais forte do que a
experiência; promove explicações profundas.
A
profundidade é aquilo que se esconde;
é aquilo que se cala.223
Esta
frase de Gaston Bachelard resume suas teses sobre ciência e espírito, no
capítulo "Psicanálise e Pré-história"224. O filósofo procura provar que,
sem desmerecer a psicanálise oficial, a psicanálise indireta e secundária,
aquela que busca o inconsciente sob o consciente, o subjetivo e o devaneio, é
tão válida quanto a outra. Afirma inclusive que a ciência é sempre precedida
por um devaneio, exigindo trabalho e concentração, para que o cientista não se
deixe dominar pelo sonho.
Discutindo
ainda ciência e espírito, racionalismo e primitivismo, refaz a história da
descoberta do fogo, criticando as lacunas do pensamento objetivo sobre o assunto,
provando que as explicações científicas nem sempre convencem ao analista
argumentador. O filósofo procura demonstrar que a observação ingênua por vezes
é mais reveladora.
Recuperando
as idéias racionalistas, sobre a descoberta do fogo, que explicam tal
descoberta tomando-se por base a fricção de dois pedaços de madeira, Bachelard
afirma que tal explicação não satisfaz plenamente aos estudiosos do assunto.
Se uma explicação racional e objetiva é, na verdade,
pouco satisfatória para justificar uma descoberta realizada por um espírito
primitivo, uma explicação psicanalítica, por muito fantástica que pareça, deve
finalmente ser a explicação psicológica verdadeira.
Em primeiro lugar, temos de reconhecer que a fricção é
uma experiência muito sexualizada. Não teremos dificuldade em nos convencermos
disso ao consultarmos os documentos psicológicos reunidos pela psicanálise
clássica. Em segundo lugar, se quisermos sistematizar as indicações de uma
psicanálise especial das impressões calorígenas, ficaremos convencidos de que a
tentativa objetiva de produzir o fogo
através da fricção é sugerida por experiências absolutamente íntimas. Seja como
for, é neste campo que o circuito se revela mais curto entre o fenômeno do fogo
e a sua reprodução. O amor é a primeira hipótese científica para a reprodução
do fogo.225
Por
amor às recordações do sertão, o Artista renovou seu ato de narrar sob a
cumplicidade do fogo. Descobriu também que só a chama vertical transcenderia os
limites do palpável, transportando-se para o plano infinito dos sonhos maiores.
O
amor marca esta passagem de fogo na obra roseana. O amor primitivo em A hora e vez de Augusto Matraga e o amor sublime de Riobaldo por Diadorim, em Grande Sertão: Veredas.
O
amor primitivo, inserido na narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, sobressai-se por intermédio de duas meretrizes sertanejas, muito
disputadas pelos capiaus durante o leilão em honra de Nossa Senhora das Dores
do Córrego do Murici; leilão este que, iluminado pelo fogo mítico, se manifesta
como elemento desencadeador das posteriores transformações narrativas.
Se
a fricção de dois pedaços de madeira como origem científica do fogo não
satisfaz aos estudiosos, a fricção de corpos que se buscam como origem
metafísica do fogo alcança maior aceitação por parte dos sonhadores ígneos. O
sonhador das chamas, sob o poder da subjetividade, consegue explicar e
convencer o leitor.
O
temporário sonhador/narrador de chamas de A hora e vez de Augusto
Matraga capta a contribuição da fricção sexual primitiva e explora-a
criativamente, demonstrando que a inflamação
dos instintos pode mudar os rumos de anteriores propostas narrativas. Assim,
logo no início apresenta o herói (mítico-pagão) Nhô Augusto, em um leilão de
santo (místico-cristão), no meio de "uma multidão encachaçada de fim de
festa", disputando com o "povo encapetado" as duas
"mulheres-à-toa" que ali se achavam. O Todo Poderoso senhor-de-terra
arremata a meretriz branca por cinqüenta mil-réis, enquanto que a outra, a
Angélica preta, "se rindo, sem vergonha e dengosa, se soverteu na
montoeira, de braço em braço, de rolo em rolo, pegada, manuseada, beliscada e
cacarejante"226. O narrador inflama a narrativa com primitivos devaneios sexuais.
O
narrador neste momento de confusão está consciente e em estado de gozo. O povo
do sertão vibra, porque o Artista moderno também vibra com a descoberta de seu
amor pela terra nativa. O dinamismo vital fá-lo descobrir-se como autêntico
representante de uma região mal conceituada socialmente. O dinamismo vital
impele-o para uma transformação (ao nível da ficção) que dignifique o sertão no
âmbito universal. Por isto o gozo da descoberta: o amor ao sertão da infância é
superior aos apelos da modernidade.
Para inflamar o pilão, enfiando-o na ranhura da
madeira seca, é preciso tempo e paciência. Porém tal trabalho devia agradar a
um ser cujos devaneios eram sexuais. Foi talvez a fazer esse trabalho que o
homem aprendeu a cantar.227
Para
inflamar a narrativa, ele recorre ao aparato mítico: com a chegada de Nhô
Augusto, para arrematar a meretriz Sariema no leilão, houve um deslocamento de gentes, porque a figura imponente do
herói, alteado, peito largo, vestido de luto (a cor negra de suas vestes como
símbolo de poder) se agigantava, diminuindo ainda mais o povo, já por si
pequeno na escala social. Assim, visualiza-se um Zeus sertanejo pisando pé dos
outros, não se incomodando em destruir, varando
à frente da massa, se encarando com a Sariema, pondo-lhe o dedo no queixo;
a Sariema como uma das deidades preferidas pelo tonitruante deus com voz de meio-dia, voz de quem se
encontra no auge de seu poder; o tonitruante que nunca pede, ao contrário, berra, grita, impõe. Um deus sertanejo
acostumado a determinar o destino de seus subordinados, que não oferece o rosto ao povo, mas espera os aplausos, a
glorificação.
O
deus sertanejo já não se encontra em um espaço apenas mítico. O mítico se
amalgama ao místico. Há um leilão de
santo, e muita luz de azeite
(fogo mítico), e isto indica que alguma coisa está por acontecer. Há o povo
miticamente encapetado e sedento por prazeres como nas festas pagãs; há o Tião
leiloeiro, mensageiro do deus monoteísta, lembrando à multidão o aspecto
sagrado do evento. Todas as ocorrências iniciais impõe reafirmar que a
narrativa remete simbolicamente a um momento de transição narrativa.
Nesse
momento de transição, os devaneios do narrador roseano são obrigatoriamente
sexuais. Por isto, a presença das duas meretrizes logo no início;
E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho,
bem iluminadas pelas candeias de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam
achando em tudo um espírito enorme, porque eram só duas e pois muito
disputadas, todo-o-mundo com elas querendo ficar.228
por isto, os
desejos de amor do capiauzinho enamorado pela meretriz Sariema;
Mas perto, encostado nela outra, um capiau de cara
romântica subia todo no sem-jeito; eles estavam se gostando, e, por isso,
aquele povo encapetado não tinha — pelo menos para o pobre namorado — nenhuma
razão de existir.229
por isto, o desejo
sensual de Nhô Augusto, rematando-a por cinqüenta mil-réis e tomando-a do
capiauzinho.
A narrativa, neste início, reproduzindo a realidade sertaneja, é
ritmada e agradável. Orientando filosoficamente neste aspecto, Bachelard cita a
tese de Pinheiro dos Santos sobre ritmanálise. A ritmanálise produz harmonia,
impele o trabalhador a ritmar seu trabalho, obriga-o a atribuir "realidade
temporal àquilo que vibra"230, e o discurso modificado vibra sob os impulsos do gozo narrativo.
A fricção sexual continua ao longo da narrativa. O narrador ainda
primitivo, diegético, vai aos poucos descobrindo "a consciência de si
próprio", a qual é, acima de tudo, segundo Bachelard, confiança em si
próprio231. É
o Artista se descobrindo.
A ritmanálise, de acordo com a tese de Pinheiro dos Santos, reavaliada
por Gaston Bachelard, produz harmonia, e o trabalho rítmico corresponde ao
ritmo do trabalhador. Para inflamar a narrativa, o narrador sutilmente deixa
transparecer devaneios sexuais, mediante um discurso ritmado: "Foi talvez
a fazer esse trabalho que o homem aprendeu a cantar"232.
Quando Nhô Augusto se apropria da meretriz, o povo aplaude num coro
cadenciado: "É do Nhô Augusto... Nhô Augusto leva a rapariga! — gritava o
povo por ser barato. E uma voz bem entoada cantou de lá, por cantar:"
Mariquinha é como a chuva:
boa é, p'ra quem quer bem!
Ela vem sempre de graça,
só não sei quando ela vem...233
O narrador está exercitando o ato de fricção, invadido pelo calor
objetivo da descoberta do Artista. Nesse momento, quem percebe o Amor maior,
indizível, oriundo do espaço do Não-dito, é o Artista. O Artista está
vivenciando a descoberta do verdadeiro plano da criação literária, já intuído
nas narrativas anteriores de Sagarana.
Por isto, o gozo é intenso e,
posteriormente, se propaga, indefinidamente, nas quinhentas e sessenta e três
páginas de Grande
Sertão: Veredas.
É um trabalho evidentemente rítmico, um trabalho que corresponde ao ritmo do trabalhador, que
lhe fornece múltiplas e belas ressonâncias; o braço que fricciona, os pedaços
de madeira que batem, a voz que canta, tudo se une na mesma harmonia, na mesma
dinamogenia ritmada, tudo converge para a mesma esperança, para um fim cujo valor se conhece. Logo que se inicia a
fricção, invade-nos um suave calor objetivo, ao mesmo tempo que a quente
sensação de um exercício agradável. os ritmos sustentam-se uns aos outros.
Induzem-se mutuamente e duram por auto-indução.234
Sustentado por este ritmo, obriga o povaréu
a aclamar, "com disciplina e cadência", a atitude de Nhô Augusto:
"— Nhô Augusto leva a Sariema! Nhô Augusto leva a Sariema!"235.
E o ritmo do narrador, induzido pelo Artista, obriga o capiauzinho
apaixonado a se submeter ao poderio de Nhô Augusto, que o separou de sua amada,
com uma pranchada de mão; o ritmo do
narrador capta a confusão do momento, a briga que se instaura entre os capiaus,
vista por vários ângulos ao mesmo tempo. O narrador está atento ao detalhe,
porque sua função, no momento, é reproduzir
a "inflamação do pilão, enfiando-o
na ranhura da madeira seca"236, ou seja, reproduzir uma narrativa primitiva, memorialista, e
continuar uma tradição, levando aos pósteros as experiências de vida do
sertanejo.
O ritmo do narrador obriga o povo a estapear
o capiauzinho e a aclamar Nhô Augusto; obriga o herói a abandonar sua presa de
guerra no meio do caminho, em direção ao Beco do Sem-Ceroula, "onde só
há três prédios – cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à janela – e
onde gente séria entra mas não passa"237.
O ritmo do narrador obriga Nhô Augusto a "descer a ladeira sozinho
– uma ladeira que a gente tinha de descer quase correndo, porque era só cristal
(quartzo, sílex ou feldspato) e pedra solta"238, e retomar o caminho de sua casa
na cidade, na Rua de Cima, rua simbolizando o Olimpo Sertanejo, morada dos deuses e poderosos.
É também o ritmo do narrador experiente que apresenta D. Dionóra (a
esposa de Nhô Augusto e nora do
Coronel Afonsão Esteves); D. Dionóra, que tinha belos cabelos e olhos
sérios, tão semelhante à Hera, esposa de Zeus, a deusa dos olhos bovinos, segundo os dizeres de Homero. D.
Dionóra, que, assim como a sua similar mítica, vivia constantemente ultrajada
pelas traições sexuais do marido.
Sustentado por este discurso rítmico, o narrador muda as fases/faces de
seu personagem, ou seja, todas as transformações sofridas a partir da marca de
ferro-em-brasa: a queda físico-social, a recuperação na cabana de pretos, a
partida para o norte de Minas, sob sua face/fase carismático-religiosa; a
permanência no povoado do Tombador e, principalmente, a transformação final, realizada
sob a égide da criação literária, na qual o personagem se liberta
definitivamente dos modelos reprodutores, marcas de narrativas lineares.
O Artista, neste segmento final da narrativa, descobre a consciência de
si próprio; descobre-se um deus-que-garante-tudo,
redirecionando o próprio ato de narrar. Seu narrador inflamou o pilão, enfiando-o na ranhadura da madeira seca
do sertão primitivo e descobriu o brilho da chama dos sonhos bem sonhados
apontando verticalmente para o Infinito. Em outras palavras, ainda sob
orientação bachelardiana, o narrador roseano sai da Idade da pedra lascada,
maltratada, para a idade da pedra polida, acariciada, "ama as pedras como
quem ama uma mulher"239.
Quando se observa um machado de sílex talhado, é
impossível fugir-se à idéia de que se conseguiu localizar tão bem cada faceta
graças a uma redução da força, graças
a uma força inibida, contida, administrada, numa palavra, uma força
psicanalisada. Com a pedra polida, passamos da carícia intermitente à carícia contínua
ao movimento suave e envolvente, ritmado e sedutor. Seja como for, o homem que
trabalha com tanta paciência é sustentado, simultaneamente, por uma recordação
e uma esperança, e é entre as forças afetivas que devemos procurar o segredo
das suas divulgações.240
O narrador moderno (novo
personagem roseano) reduz, no final de A hora e vez de Augusto Matraga, a
força do narrador memorialista, preso às experiências
de vida da comunidade sertaneja, material precioso que fundamenta a vida de um
povo. As experiências de vida,
assinaladas por Walter Benjamim em O Narrador, encontram-se registradas na memória. Entretanto, foi esta memória
(primeiras seqüências) que insistiu posteriormente em ressuscitar o herói e,
conseqüentemente, em permanecer fiel às tradições do Sertão.
Na verdade, quem reduz a própria força ficcional é o Artista, aquele
ser oriundo do sertão, que adotou ou foi adotado pelas leis sociais modernas. O
Artista inibe sua força, administra-a no final, porque uma nova etapa da
poética do fogo o leva a agir assim. De ora em diante, ele será sustentado
pelas recordações da infância e a
esperança de que estas recordações de seu mundo primitivo, no sentido genético,
o ajudem a equilibrar-se psicologicamente no desconhecido mundo moderno (jamais esquecer que o Artista é nativo
do sertão). O Amor pelo sertão, descoberto sob a orientação do fogo, guiará
agora o impulso de sua mão, a qual, por sua vez, será instigada pelo
relaxamento dos olhos na fase do amanhecer. Uma nova realidade começa a surgir,
propiciando um novo direcionamento narrativo.
Recuperando o que já foi dito até agora, as seqüências iniciais da
narrativa reproduzem o nascimento do
fogo (sertão mítico-místico), o nascimento da matéria que propiciará uma nova
etapa de narrativa.
A produção do fogo por fricção ficou para todo o
sempre ligada a uma idéia de festa. Nas festas do fogo, tão celebradas na Idade
Média, tão universalmente praticadas pelos povos primitivos, regressa-se por
vezes ao costume inicial, o que parece provar que o nascimento do fogo foi o princípio da sua adoração.241
A interferência da matéria fogo, na já assinalada narrativa roseana,
ficou devidamente caracterizada na festa sertaneja em homenagem à santa
padroeira do arraial do Murici, um pequeno burgo (representando a modernidade
que se quer alcançar) incrustado nos domínios do sertão primitivo. A festa em
honra de Nossa Senhora das Dores (no Sertão) repete as religiosas festas
medievais. O sertão mineiro, ainda hoje, é um invólucro de valores medievais,
trazidos pelos portugueses que aqui aportaram, desde o século XVI. Por isto, as
lanternas de azeite, as velas, iluminam ainda muitos trechos do sertão,
ignorantes da luz elétrica, em plena era de progresso.
O fogo, ao longo da narrativa, representa a nostalgia do homem do
sertão. Bachelard diz que a nostalgia é a
recordação do calor do ninho; o narrador sertanejo apropria-se do fogo
tépido das recordações para recuperar antigos calores/valores que o marcaram em sua essência. O Artista, de
origem sertaneja, narrador de experiências, mas ao mesmo tempo produtor de
Ficção-Arte, tem consciência de sua antiga felicidade. O calor da festa está
portanto na "origem da consciência de felicidade"242, como ensina o
filósofo, oriundo de vinhateiros da Champanha.
Há uma ligação metafísica entre Bachelard e Rosa, tão diferentes, no
que se relacione a gênero, e ao mesmo tempo tão iguais em suas profundas
reflexões. Há uma ligação metafísica entre o filósofo nascido em uma região
agrícola da França e o escritor brasileiro, homem citadino, civilizado, mas
oriundo de uma região sertaneja, pouco valorizada no âmbito social. O filósofo,
ao versar o tema do fogo, se conscientiza, também ele, de sua antiga
felicidade.
A recordação do calor do ninho revive o sertão primitivo. O narrador se
vale do fogo e do amor para simbolizarem o seu momento de transição narrativa.
A luz das lanternas de azeite, que iluminam o cenário mítico, sai de suas
convicções íntimas, de sua atual consciência de poder de criação. A luz das
lanternas que iluminam o leilão sai de suas próprias entranhas, luz que num
futuro já muito próximo iluminará a insolidez do discurso criativo, com sua
alta taxa de poesia.
O discurso do Artista se inflama primitivamente, para usufruir
posteriormente da beleza da chama domesticada, que aponta sempre para o alto. A
poesia enquanto essência necessita da chama primitiva, sustentadora de futuras
revelações. A atração para o fogo, para o amante da terra e água amalgamadas,
nesta narrativa, se faz necessária, porque a fricção da memória com a
recordação significa novas etapas a serem alcançadas.
O calor é um bem, uma possessão. Deve guardar-se
ciosamente e só o conceder a um ser eleito que mereça uma comunhão, uma fusão
recíproca. A luz brinca e ri à superfície das coisas, mas o calor, só ele, é
que penetra.243
O Artista é um ser eleito. A luz das lanternas brincam à superfície da
narrativa nas primeiras seqüências, mas foi o calor do ferro-em-brasa que
obrigou o seu narrador a penetrar na intimidade do personagem, transformando-o
em um ser autenticamente ficcional.
O calor íntimo do Artista direcionou novas etapas criativas, o calor é um bem, uma possessão; e eis
novamente a imagem do calor, sob a forma de um trago de cachaça, propiciando um
sonho bonito, "no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os
valentões (...), que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força,
pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo” 244.
O personagem muda sua trajetória de vida — ou seria o Narrador? ou o
Artista?
Depois da invernada brava, Nhô Augusto é um novo homem, renascido das
cinzas do antigo herói sanguinário.
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