quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.10.5 Da agitação ao conflito

II.10.5  Da agitação ao conflito

É evidente que em tal análise pela imagem é preciso descartar os conhecimentos adquiridos nos livros.245

Nas narrativas de Sagarana, o Artista quis reviver o sertão, repensá-lo, reproduzi-lo. Revigorado pelas lembranças de fatos acontecidos e recontados, deixou-se entreter pela imaginação reprodutora, função exclusiva do real. Mas, houve um momento de agitação e conflito narrativo, e ele ousou libertar-se das imposições lineares. Criou, a partir daí, um sertão diferente, nascido das íntimas lembranças e recordações da infância. A hora e vez de Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas marcam este momento de mudança narrativa. As antigas imagens do sertão adquirem uma coloração diferente, adquirem vida própria, uma movimentação singular.

Bachelard diz:

Um de meus arrependimentos, por exemplo, é não ter estudado no momento oportuno as imagens literárias do verbo formigar (fourmiller). Tarde demais reconheci que a uma realidade que formiga está ligada uma imagem fundamental, uma imagem que reage em nós como um princípio de mobilidade.246

As imagens literárias do verbo formigar, salientadas por Bachelard, fazem-me pensar na multidão encachaçada de fim de festa, povoando o leilão de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici, no início da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga. O povo encapetado formiga nos fundos da igreja, denunciando o princípio de mobilidade que ativa a mão do Artista. Há uma intensa agitação no início da narrativa: depois da procissão e do leilão, o povo se movimenta graças ao fogo interior produzido pelo álcool e pelo brilho das lanternas e candeias de azeite.

O povo se movimenta, porque o álcool despertou um outro tipo de fogo ligado ao desejo sexual. O povo encapetado, composto apenas de homens, só possui duas mulheres-à-toa a seu dispor, e isto, certamente, vai causar confusão. Além do povo, há também o capiau apaixonado pela prostituta Sariema, paixão que se transformará no estopim dos acontecimentos futuros.

O leilão acalorado e mítico propiciou esta reviravolta. As imagens-em-movimento que o compõem fazem dele (leilão) a imagem fundamental dos atuais pensamentos desordenados do Ficcionista. Nesse momento, o narrador experiente começa a ceder o lugar ao narrador moderno, alter ego do escritor citadino.

O sertão agora não é um lugar ancorado nas lembranças; ao contrário, presentifica-se graças a essas imagens móveis e desordenadas. A desordem se instala, subjugada pela imaginação transmutativa, imaginação que aspira a uma nova ordem. O espaço do leilão se agita a cada leitura, permanentemente em movimento, revelando um momento de transição na escrita roseana. O coronel sertanejo, daqui para frente, não mais representará os valores substanciais do sertão.

O povaréu sustenta a agitação, obrigando o narrador a captar os ângulos da briga (do caos) instalada nos fundos da igreja.

E a agitação partiu povos, porque a maioria tinha perdido a cena, apreciando, como estavam, uma falta-de-lugar, que se dera entre um velho — "cai n'água, barbado!" — e o sacristão, no quadrante noroeste da massa. E também no setor sul estalara, pouco antes, um mal-entendido, de um sujeito com a correia desafivelada — lept!... lept!... —, com o outro pedindo espaço, para poder fazer sarilho com o pau.
— Que foi, heim? ... Que foi?
Foi o capiauzinho apanhado, estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô Augusto e empurrado para o denso do povo, que também queria estapear.247

A agitação partiu povos: a imagem dos movimentos da briga refletem o interior anárquico e dinâmico do criador literário em sua fase de mudança discursiva. Esta explosão de movimento representa a explosão interna de quem narra, fragmentária, anunciadora da fase dinâmica, conflituosa, que marcará a criação de Grande Sertão: Veredas.

Em Grande Sertão: Veredas, o narrador será o personagem central, porque apenas um narrador sertanejo que seja alter ego do Artista moderno poderá fragmentar-se e se reordenar continuamente, captando as oscilações mentais de quem o intuiu.

Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas.(...) Mas, conforme eu vinha: (...) Bom, ia falando: questão, isso que me sovaca... Ah, formei aquela pergunta para compadre meu Quelemém.

Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer (...) Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado.

Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo.

Sei que estou contando errado, pelos altos.

Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. (...) O que vale, são outras coisas. (...) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.248

A agitação instaurada em A hora e vez de Augusto Matraga se multiplica em Grande Sertão: Veredas. A intimidade do Artista está dinamizada, e esta dinamização se estende ao narrador. No agora sertão roseano, tudo é movimento: as lutas, os amores, Deus, o diabo — o diabo na rua, no meio do redemunho.

Não há, na literatura, um único caos imóvel. Quando muito se encontra, como em Huysmans, um caos imobilizado, um caos petrificado.249

O sertão roseano procura a ordenação e a pureza dos antigos núcleos, mas o narrador é moderno, e há de refletir forçosamente sua condição de personagem problemático e desestruturado socialmente. O mundo da ficção revela a matéria mítica que o compõe; o discurso revela a face desordenada do Artista moderno. "A agitação é multiplicidade"250, a agitação discursiva de Riobaldo também, pois, para ele, contar seguido, alinhavado, só mesmo as coisas de rasa importância.

Em A hora e vez de Augusto Matraga, o sertão ainda é pequeno, assim como a movimentação do povo; e, mesmo, a própria movimentação de Nhô Augusto, buscando sua hora e vez, é a agitação do espaço que ainda não alcançou suficiente largueza. O povo encachaçado de fim de festa (agitado) só vai ser infinitamente valorizado em Grande Sertão: Veredas, quando a movimentação sem sentido (agitação sem sentido) tornar-se uma imagem de atividade constante. Este sertão especial se dilata em quinhentas e sessenta e três páginas, porque os jagunços que o compõem são ágeis e beligerantes, e o revigorado narrador está vivenciando a sua descoberta do plano maravilhoso.

O mundo de Grande Sertão: Veredas é enérgico e dinâmico; é um reduto de batalhas grandiosas e de amores malsinados. O narrador/Artista participa do combate das substâncias sertanejas, põe-se no centro da batalha, comanda-a, animaliza-se, transforma-se, ele também, em Tatarana (em Tupi tata'rana, lagarta-de-fogo) num primeiro momento de chefia e, posteriormente, no Urutu-Branco, cobra venenosa, também chamada de urutu-dourado ou jararacuçu.

As designações alquímicas como lobo voraz atribuída a uma substância (...) provam bem a animalização das imagens em profundidade. Essa animalização (...) nada tem a ver com formas ou cores. Nada legitima exteriormente as metáforas do leão ou do lobo, da víbora ou do cão. Todos esses animais revelam-se como metáforas de uma psicologia da violência, da crueldade, da agressão, as quais corresponde, por exemplo, a rapidez do ataque.251

O sertanejo sensível, que merecia ter estudado latim em aula-régia (o Artista moderno?), necessitou de um aparato animalesco para impôr-se como chefe de jagunços. As metáforas da Tatarana e do Urutu foram legitimadas na parte mais íntima do narrador do século XX (aquele interior em ebulição), para revelarem a violência, crueldade, agressão e rapidez de ataque do invencível bando, comandado pelo Grande Urutu-Branco, apelido metafórico que designa um homem feroz e mortífero.

De acordo com Bachelard, a imaginação material da substância agitada "contém uma espécie de batalha", "substancializa um combate"252. Esta imaginação material, associada à animalização em profundidade do personagem-narrador como chefe, sustenta as batalhas do bando de jagunços contra as injustiças sociais, contra o inimigo Hermógenes (figuração do diabo), contra os desencontros da vida, já que viver é muito perigoso, refrão constante ao longo da narrativa.

Portanto, com a morte de Medeiro Vaz, substituto do grande Joca Ramiro (homens "de uma raça de homens que o senhor não mais vê"253), Riobaldo é assinalado como chefe:

Tomou-se café, e Diadorim me disse, firme: — "Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te sinalou com as derradeiras ordens ..."

Todos estavam lá, os brabos, me olhantes — tantas meninas-dos-olhos escuras repulavam: às duras — grão e grão — era como levando eu, de milhares, uma carga de chumbo grosso ou chuvas-de-pedra. Aprovavam. Me queriam governando. Assim estremeci por interno, me gelei de não poder palavra. Eu não queria, não queria. (...) Rentemente, que eu não desejava arreglórias, mão de mando. Engoli cuspes. Avante por fim, como que respondi às gagas, isto disse: — "Não posso ... Não sirvo ..."
— "Mano velho, Riobaldo, tu pode!" (...)
— "Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós sabemos a tua valia..." — Diadorim retornou. Assim instava, mão erguida. Onde é que os outros roda-a-roda, denotavam assentimento. — "Tatarana! Tatarana! ..." — uns pronunciaram; sendo Tatarana um apelido meu, que eu tinha.254

O personagem já possuía o sinal (Tatarana), a substância animalizada que o distinguia dos demais. A beleza e a aparente insignificância da lagarta-de-fogo esconde o seu veneno mortal; Riobaldo, belo, simples e sensível, possui interiormente a força e a coragem dos poderosos. Nele observa-se a dialética entre a bondade e a maldade: combate de substâncias opostas, assim como a lagarta-de-fogo, insignificante, mas mortífera.

A designação Tatarana já estava previamente imaginada pelo Artista, conhecedor do fio narrativo de seus pensamentos ficcionais. Assim, não foi difícil designar o futuro chefe Riobaldo com o sinal que marcará o lado gladiador do personagem, já que ele possuía o apelido, que o caracterizará durante algum tempo.

Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós sabemos a tua valia, diz Diadorim, e os jagunços assentem, gritando o apelido previamente imaginado.

      "Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e executar, não me ajusto de produzir ordens..." (...) Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão. Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços — quando um perigo poja? — sabe os quantos lobos?255

O Artista, em sua agitação discursiva e ativa, comanda o raciocínio do personagem-narrador. O bando de jagunços se animaliza, também, denunciando sua participação no campo fervilhante das imagens profundas, saídas da intuição produtora de narrativa. Essas imagens não são vazias, possuem força e vigor, no sentido de extravasarem toda a agressão e violência, próprias de jagunços sanguinários. Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços (quando um perigo poja?) sabe os quantos lobos?: lobos aqui simbolizando a pura violência de um passado violento e mítico. O sertão do passado como reduto de banditismo e morte, "onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade"256.

Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! (...) é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. (...) onde se forma calor de morte (...) agente ali rói rampa.257

O sertão do passado, o lado negro (feio), consome lentamente as lembranças do Artista. Há uma emoção diferente sustentando a mão de quem cria, uma espécie de tristeza imanente, provinda dos sonhos experimentais (a experiência do passado, comandando temporariamente a criação do Artista), revelando crítica e censura ao lado de uma admiração inconteste.

O Artista está perturbado diante da grandeza mítica de seu passado histórico. Riobaldo Tatarana, o futuro chefe Urutu-Branco, é sua face sertaneja, ou seja, o que ele teria sido (no plano das probabilidades de vida), se o mundo moderno não o tivesse conduzido para outras paragens. Riobaldo Tatarana (Urutu-Branco, enquanto chefe de jagunços) é o seu próprio lado bélico (mítico, sertanejo), camuflado por camadas de polidez, recebidas do mundo moderno.

Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. (...) Seu Joãozinho Bem-Bem (...), Joca Ramiro (...), Zé Bebelo (...), Sô Candelário (...), Titão Passos (...). E o "Urutu-Branco"? Ah, não me fale. Ah, esse... Tristonho levado, que foi — que era um pobre menino do destino...258

O Artista extravasa sua emoção, criando um personagem-narrador cruel (a crueldade está implícita, já que por duas vezes ele é eleito chefe), que conta suas experiências de vida; mas que, mesmo assim, é, antes de tudo, terno e sentimental, um pobre menino do destino, representando a face pacífica do Artista. Estas duas faces digladiam-se, e quem vence é a narrativa moderna, como fusão de planos e sentimentos desencontrados. Por baixo da máscara do personagem, o Artista vivencia seu próprio combate íntimo, expõe suas dúvidas e questionamentos sobre as diversas realidades que o contaminam.

Retomando Bachelard:

Mas a extroversão tem apenas um tempo. É enganadora quando pretende ir ao âmago das substâncias, pois acaba por encontrar nele todas as imagens das paixões humanas. Pode-se assim mostrar ao homem que vivencia as suas imagens "a luta" entre os álcalis e os ácidos; ele vai mais além. Sua imaginação material transforma-a insensivelmente numa luta entre a água e o fogo, depois numa luta entre o feminino e o masculino.259

As denominações Tatarana e Urutu-Branco, os dois momentos de comando do personagem-narrador, representando a animalização do personagem, para o realce de sua face guerreira, exigem um narrador belicoso. O Artista veste as roupas do narrador, transforma-se ele mesmo no personagem, porque há de existir, forçosamente, ao longo da narrativa, muita afinidade e muita hostilidade entre os dois. Riobaldo, na velhice, relatando suas antigas aventuras, fará a reconciliação.

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas — de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.260

O Artista quis destacar o Riobaldo guerreiro, o sertanejo destemido, exemplo de vida para os pósteros, mas realçou com maior nitidez o amante infeliz, apaixonado pelo amigo Diadorim. O lado guerreiro do personagem não se afina com a sua sensibilidade, portanto, há uma hostilidade embutida contra essa face, só passível de ser detectada pelo analista, se for submetida a uma busca minuciosa e sustentada por teorias esclarecedoras. O personagem (alter ego do Artista) tenta rejeitar o comando (o poder), mas está preso às imposições do relato.

Avante por fim, como que respondi às gagas, isto disse: — "Não posso... Não sirvo..." (...)
— "Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e executar, não me ajusto de produzir ordens..."261

Quem executa ordens, pode dar ordens; isto, sem comentar o futuro desrespeito do qual será alvo, se demonstrar fraqueza:

Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão. Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços — quando um perigo poja? — sabe os quantos lobos? Mas, eh, não, o pior é que é a calma, uma sisudez das escuras. Não que matem, uns aos outros, ver; mas, a pique de coisinha, o senhor pode entornar seu respeito, sobrar desmoralizado para sempre, neste vale de lágrimas. Tudo rosna.262

O personagem está preso às imposições do relato. O sertão não concebe homens fracos; ali, tudo rosna, tudo se agita, tudo se assemelha à animalidade. O sertão, agora, nesta narrativa, é maior do que a hostilidade do Artista, em relação à face violenta de seu personagem. Este não pode demonstrar fraqueza ou medo em um mundo ficcional primitivo, onde tudo rosna e se animaliza. O Artista também não. Forçosamente, para compor seu personagem, terá de buscar em seu interior de homem sertanejo os componentes beligerantes, os quais delinearão o guerreiro.

Mas, se há uma hostilidade escondida contra essa face animalesca de Riobaldo, há, em maiores proporções, inúmeras afinidades. As belas e sensíveis imagens sobre o amor rejeitam o plano mítico (diegético), assumindo o plano do imaginário-em-aberto. O Criador Literário necessitou de uma química específica para representar a hostilidade (Riobaldo Tatarana, Riobaldo, o Grande Urutu-Branco), assim como se designa os minerais, ou seja, quando se fala da corrosão dos metais, por exemplo. As metáforas nominais de Riobaldo assinalam essa química insólita. Repleto de sonhos de origem, obriga-se a se revestir como jagunço, usando o corpo ficcional do sujeito-narrador. Riobaldo é a sua tentação (ficcional) maior.


Pretendendo ir ao âmago das substâncias, ou seja, narrando as misturas alquímicas que realçam o lado guerreiro do personagem, o Artista trouxe à luz as imagens das paixões humanas: a luta contra o bem e o mal, a luta entre a água e o fogo (o elemento água, matéria eleita na ficção roseana, momentaneamente sobrepujada pelo elemento fogo), a luta entre o feminino e o masculino.

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