É evidente que em tal análise pela imagem é preciso
descartar os conhecimentos adquiridos nos livros.245
Nas
narrativas de Sagarana, o Artista quis
reviver o sertão, repensá-lo, reproduzi-lo. Revigorado pelas lembranças de
fatos acontecidos e recontados, deixou-se entreter pela imaginação reprodutora,
função exclusiva do real. Mas, houve um momento de agitação e conflito narrativo,
e ele ousou libertar-se das imposições lineares. Criou, a partir daí, um sertão
diferente, nascido das íntimas lembranças e recordações da infância. A hora e vez de
Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas marcam
este momento de mudança narrativa. As antigas imagens do sertão adquirem uma
coloração diferente, adquirem vida própria, uma movimentação singular.
Bachelard
diz:
Um de meus arrependimentos, por exemplo, é não ter
estudado no momento oportuno as imagens literárias do verbo formigar (fourmiller). Tarde demais
reconheci que a uma realidade que formiga está ligada uma imagem fundamental, uma imagem que reage em nós como um princípio
de mobilidade.246
As
imagens literárias do verbo formigar,
salientadas por Bachelard, fazem-me pensar na multidão encachaçada de fim de festa, povoando o leilão de atrás de igreja, no arraial da
Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici, no início da narrativa
A hora e vez de
Augusto Matraga. O povo encapetado formiga
nos fundos da igreja, denunciando o princípio de mobilidade que ativa a mão do
Artista. Há uma intensa agitação no início da narrativa: depois da procissão e
do leilão, o povo se movimenta graças ao fogo
interior produzido pelo álcool e pelo brilho das lanternas e candeias de
azeite.
O
povo se movimenta, porque o álcool despertou um outro tipo de fogo ligado ao
desejo sexual. O povo encapetado,
composto apenas de homens, só possui duas mulheres-à-toa
a seu dispor, e isto, certamente, vai causar confusão. Além do povo, há também
o capiau apaixonado pela prostituta Sariema, paixão que se transformará no
estopim dos acontecimentos futuros.
O
leilão acalorado e mítico propiciou esta reviravolta. As imagens-em-movimento
que o compõem fazem dele (leilão) a imagem fundamental dos atuais pensamentos desordenados do Ficcionista. Nesse
momento, o narrador experiente começa a ceder o lugar ao narrador moderno,
alter ego do escritor citadino.
O
sertão agora não é um lugar ancorado nas lembranças; ao contrário,
presentifica-se graças a essas imagens móveis e desordenadas. A desordem se instala, subjugada pela
imaginação transmutativa, imaginação que aspira a uma nova ordem. O espaço do
leilão se agita a cada leitura, permanentemente em movimento, revelando um
momento de transição na escrita roseana. O coronel sertanejo, daqui para
frente, não mais representará os valores substanciais do sertão.
O
povaréu sustenta a agitação, obrigando o narrador a captar os ângulos da briga
(do caos) instalada nos fundos da igreja.
E a agitação partiu povos, porque a maioria tinha
perdido a cena, apreciando, como estavam, uma falta-de-lugar, que se dera entre
um velho — "cai n'água, barbado!" — e o sacristão, no quadrante
noroeste da massa. E também no setor sul estalara, pouco antes, um
mal-entendido, de um sujeito com a correia desafivelada — lept!... lept!... —,
com o outro pedindo espaço, para poder fazer sarilho com o pau.
— Que foi, heim? ... Que foi?
Foi o capiauzinho apanhado, estapeado pelos quatro
cacundeiros de Nhô Augusto e empurrado para o denso do povo, que também queria
estapear.247
A agitação partiu povos: a imagem dos movimentos da briga refletem o interior anárquico e
dinâmico do criador literário em sua fase de mudança discursiva. Esta explosão
de movimento representa a explosão interna de quem narra, fragmentária,
anunciadora da fase dinâmica, conflituosa, que marcará a criação de Grande Sertão: Veredas.
Em
Grande
Sertão: Veredas, o narrador será o personagem
central, porque apenas um narrador sertanejo que seja alter ego do Artista
moderno poderá fragmentar-se e se reordenar continuamente, captando as
oscilações mentais de quem o intuiu.
Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem
nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas.(...) Mas, conforme eu vinha:
(...) Bom, ia falando: questão, isso que me sovaca... Ah, formei aquela
pergunta para compadre meu Quelemém.
Como vou achar ordem para dizer ao senhor a
continuação do martírio, em desde que as barras quebraram no seguinte, na
brumalva daquele falecido amanhecer (...) Do sol e tudo, o senhor pode
completar, imaginado.
Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que
se mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo.
Sei que estou contando errado, pelos altos.
Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de
contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. (...)
O que vale, são outras coisas. (...) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo
as coisas de rasa importância.248
A
agitação instaurada em A hora e vez de Augusto Matraga se multiplica em Grande Sertão: Veredas. A
intimidade do Artista está dinamizada, e esta dinamização se estende ao
narrador. No agora sertão roseano, tudo é movimento: as lutas, os amores, Deus,
o diabo — o diabo na rua, no meio do
redemunho.
Não há, na literatura, um único caos imóvel. Quando muito se encontra, como em Huysmans, um caos
imobilizado, um caos petrificado.249
O
sertão roseano procura a ordenação e a pureza dos antigos núcleos, mas o
narrador é moderno, e há de refletir forçosamente sua condição de personagem
problemático e desestruturado socialmente. O mundo da ficção revela a matéria
mítica que o compõe; o discurso revela a face desordenada do Artista moderno. "A agitação é
multiplicidade"250, a agitação discursiva de Riobaldo também, pois, para ele, contar seguido, alinhavado, só mesmo as
coisas de rasa importância.
Em
A hora e
vez de Augusto Matraga, o sertão ainda é pequeno,
assim como a movimentação do povo; e, mesmo, a própria movimentação de Nhô
Augusto, buscando sua hora e vez, é a
agitação do espaço que ainda não alcançou suficiente largueza. O povo encachaçado de fim de festa
(agitado) só vai ser infinitamente valorizado em Grande Sertão: Veredas, quando a movimentação sem sentido (agitação sem sentido) tornar-se
uma imagem de atividade constante. Este sertão especial se dilata em quinhentas
e sessenta e três páginas, porque os jagunços que o compõem são ágeis e
beligerantes, e o revigorado narrador está vivenciando a sua descoberta do
plano maravilhoso.
O
mundo de Grande
Sertão: Veredas é enérgico e dinâmico; é um reduto
de batalhas grandiosas e de amores malsinados. O narrador/Artista participa do
combate das substâncias sertanejas, põe-se no centro da batalha, comanda-a,
animaliza-se, transforma-se, ele também, em Tatarana (em Tupi tata'rana, lagarta-de-fogo) num primeiro
momento de chefia e, posteriormente, no Urutu-Branco, cobra venenosa, também
chamada de urutu-dourado ou jararacuçu.
As designações alquímicas como lobo voraz atribuída a uma substância (...) provam bem a
animalização das imagens em profundidade. Essa animalização (...) nada tem a
ver com formas ou cores. Nada legitima exteriormente as metáforas do leão ou do
lobo, da víbora ou do cão. Todos esses animais revelam-se como metáforas de uma
psicologia da violência, da crueldade, da agressão, as quais corresponde, por
exemplo, a rapidez do ataque.251
O
sertanejo sensível, que merecia ter estudado latim em aula-régia (o Artista
moderno?), necessitou de um aparato animalesco para impôr-se como chefe de
jagunços. As metáforas da Tatarana e do Urutu foram legitimadas na parte mais
íntima do narrador do século XX (aquele interior em ebulição), para revelarem a
violência, crueldade, agressão e rapidez de ataque do invencível bando,
comandado pelo Grande Urutu-Branco, apelido metafórico que designa um homem
feroz e mortífero.
De
acordo com Bachelard, a imaginação material da substância agitada "contém
uma espécie de batalha", "substancializa um combate"252. Esta imaginação
material, associada à animalização em profundidade do personagem-narrador como
chefe, sustenta as batalhas do bando de jagunços contra as injustiças sociais,
contra o inimigo Hermógenes (figuração do diabo), contra os desencontros da
vida, já que viver é muito perigoso,
refrão constante ao longo da narrativa.
Portanto,
com a morte de Medeiro Vaz, substituto do grande Joca Ramiro (homens "de
uma raça de homens que o senhor não mais vê"253), Riobaldo é assinalado como
chefe:
Tomou-se café, e Diadorim me disse, firme: —
"Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te sinalou com as derradeiras ordens
..."
Todos estavam lá, os brabos, me olhantes — tantas
meninas-dos-olhos escuras repulavam: às duras — grão e grão — era como levando
eu, de milhares, uma carga de chumbo grosso ou chuvas-de-pedra. Aprovavam. Me
queriam governando. Assim estremeci por interno, me gelei de não poder palavra.
Eu não queria, não queria. (...) Rentemente, que eu não desejava arreglórias,
mão de mando. Engoli cuspes. Avante por fim, como que respondi às gagas, isto
disse: — "Não posso ... Não sirvo ..."
— "Mano velho, Riobaldo, tu pode!" (...)
— "Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece,
mas nós sabemos a tua valia..." — Diadorim retornou. Assim instava, mão
erguida. Onde é que os outros roda-a-roda, denotavam assentimento. —
"Tatarana! Tatarana! ..." — uns pronunciaram; sendo Tatarana um apelido meu, que eu tinha.254
O
personagem já possuía o sinal
(Tatarana), a substância animalizada que o distinguia dos demais. A beleza e a
aparente insignificância da lagarta-de-fogo esconde o seu veneno mortal;
Riobaldo, belo, simples e sensível, possui interiormente a força e a coragem
dos poderosos. Nele observa-se a dialética entre a bondade e a maldade: combate
de substâncias opostas, assim como a lagarta-de-fogo, insignificante, mas
mortífera.
A
designação Tatarana já estava
previamente imaginada pelo Artista, conhecedor do fio narrativo de seus pensamentos ficcionais. Assim, não foi
difícil designar o futuro chefe Riobaldo com o sinal que marcará o lado
gladiador do personagem, já que ele possuía o apelido, que o caracterizará
durante algum tempo.
Mano velho, Riobaldo: tu crê
que não merece, mas nós sabemos a tua valia, diz
Diadorim, e os jagunços assentem, gritando o apelido previamente imaginado.
— "Não posso, não quero! Digo definitivo!
Sou de ser e executar, não me ajusto de produzir ordens..." (...) Tudo
parava, por átimo. Todos esperando com suspensão. Senhor conheceu por de-dentro
um bando em-pé de jagunços — quando um perigo poja? — sabe os quantos lobos?255
O
Artista, em sua agitação discursiva e
ativa, comanda o raciocínio do personagem-narrador. O bando de jagunços se
animaliza, também, denunciando sua participação no campo fervilhante das
imagens profundas, saídas da intuição produtora de narrativa. Essas imagens não
são vazias, possuem força e vigor, no sentido de extravasarem toda a agressão e
violência, próprias de jagunços sanguinários. Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços (quando um perigo poja?) sabe os quantos lobos?: lobos aqui simbolizando a pura
violência de um passado violento e mítico. O sertão do passado como reduto de
banditismo e morte, "onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do
arrocho de autoridade"256.
Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias.
Deus mesmo, quando vier, que venha armado! (...) é onde o pensamento da gente
se forma mais forte do que o poder do lugar. (...) onde se forma calor de morte
(...) agente ali rói rampa.257
O
sertão do passado, o lado negro (feio), consome lentamente as lembranças do
Artista. Há uma emoção diferente sustentando a mão de quem cria, uma espécie de
tristeza imanente, provinda dos sonhos experimentais (a experiência do passado,
comandando temporariamente a criação do Artista), revelando crítica e censura
ao lado de uma admiração inconteste.
O
Artista está perturbado diante da grandeza mítica de seu passado histórico.
Riobaldo Tatarana, o futuro chefe Urutu-Branco, é sua face sertaneja, ou seja,
o que ele teria sido (no plano das probabilidades de vida), se o mundo moderno
não o tivesse conduzido para outras paragens. Riobaldo Tatarana (Urutu-Branco,
enquanto chefe de jagunços) é o seu próprio lado bélico (mítico, sertanejo),
camuflado por camadas de polidez, recebidas do mundo moderno.
Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o
concertar consertado. (...) Seu Joãozinho Bem-Bem (...), Joca Ramiro (...), Zé
Bebelo (...), Sô Candelário (...), Titão Passos (...). E o
"Urutu-Branco"? Ah, não me fale. Ah, esse... Tristonho levado, que
foi — que era um pobre menino do destino...258
O
Artista extravasa sua emoção, criando um personagem-narrador cruel (a crueldade
está implícita, já que por duas vezes ele é eleito chefe), que conta suas
experiências de vida; mas que, mesmo assim, é, antes de tudo, terno e
sentimental, um pobre menino do destino,
representando a face pacífica do Artista. Estas duas faces digladiam-se, e quem
vence é a narrativa moderna, como fusão de planos e sentimentos desencontrados.
Por baixo da máscara do personagem, o Artista vivencia seu próprio combate
íntimo, expõe suas dúvidas e questionamentos sobre as diversas realidades que o
contaminam.
Retomando
Bachelard:
Mas a extroversão tem apenas um tempo. É enganadora
quando pretende ir ao âmago das
substâncias, pois acaba por encontrar nele todas as imagens das paixões
humanas. Pode-se assim mostrar ao homem que vivencia as suas imagens "a
luta" entre os álcalis e os ácidos; ele vai mais além. Sua imaginação
material transforma-a insensivelmente numa luta entre a água e o fogo, depois
numa luta entre o feminino e o masculino.259
As
denominações Tatarana e Urutu-Branco, os dois momentos de
comando do personagem-narrador, representando a animalização do personagem,
para o realce de sua face guerreira,
exigem um narrador belicoso. O Artista veste
as roupas do narrador, transforma-se ele mesmo no personagem, porque há de existir,
forçosamente, ao longo da narrativa, muita afinidade e muita hostilidade entre
os dois. Riobaldo, na velhice, relatando suas antigas aventuras, fará a
reconciliação.
Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu
desminto. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas
pela astúcia que têm certas coisas passadas — de fazer balancê, de se remexerem
dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora acho que nem
não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo
recruzado.260
O
Artista quis destacar o Riobaldo guerreiro, o sertanejo destemido, exemplo de
vida para os pósteros, mas realçou com maior nitidez o amante infeliz,
apaixonado pelo amigo Diadorim. O lado guerreiro do personagem não se afina com
a sua sensibilidade, portanto, há uma hostilidade embutida contra essa face, só
passível de ser detectada pelo analista, se for submetida a uma busca minuciosa
e sustentada por teorias esclarecedoras. O personagem (alter ego do Artista)
tenta rejeitar o comando (o poder), mas está preso às imposições do relato.
Avante por fim, como que respondi às gagas, isto
disse: — "Não posso... Não sirvo..." (...)
— "Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de
ser e executar, não me ajusto de produzir ordens..."261
Quem
executa ordens, pode dar ordens; isto, sem comentar o futuro desrespeito do
qual será alvo, se demonstrar fraqueza:
Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão.
Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços — quando um perigo
poja? — sabe os quantos lobos? Mas, eh, não, o pior é que é a calma, uma
sisudez das escuras. Não que matem, uns aos outros, ver; mas, a pique de
coisinha, o senhor pode entornar seu respeito, sobrar desmoralizado para
sempre, neste vale de lágrimas. Tudo rosna.262
O
personagem está preso às imposições do relato. O sertão não concebe homens
fracos; ali, tudo rosna, tudo se
agita, tudo se assemelha à animalidade. O sertão, agora, nesta narrativa, é
maior do que a hostilidade do
Artista, em relação à face violenta de seu personagem. Este não pode demonstrar
fraqueza ou medo em um mundo ficcional primitivo, onde tudo rosna e se animaliza. O Artista também não. Forçosamente, para
compor seu personagem, terá de buscar em seu interior de homem sertanejo os
componentes beligerantes, os quais delinearão o guerreiro.
Mas,
se há uma hostilidade escondida
contra essa face animalesca de Riobaldo, há, em maiores proporções, inúmeras
afinidades. As belas e sensíveis imagens sobre o amor rejeitam o plano mítico
(diegético), assumindo o plano do imaginário-em-aberto. O Criador Literário
necessitou de uma química específica
para representar a hostilidade (Riobaldo Tatarana, Riobaldo, o Grande
Urutu-Branco), assim como se designa os minerais, ou seja, quando se fala da corrosão dos metais, por exemplo. As
metáforas nominais de Riobaldo assinalam essa química insólita. Repleto de sonhos de origem, obriga-se a se
revestir como jagunço, usando o corpo
ficcional do sujeito-narrador. Riobaldo é a sua tentação (ficcional) maior.
Pretendendo
ir ao âmago das substâncias, ou seja,
narrando as misturas alquímicas que
realçam o lado guerreiro do personagem, o Artista trouxe à luz as imagens das paixões humanas: a luta
contra o bem e o mal, a luta entre a água
e o fogo (o elemento água, matéria eleita na ficção roseana,
momentaneamente sobrepujada pelo elemento fogo), a luta entre o feminino e o masculino.
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