E as coisas vinham docemente de repente, seguindo
harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da
consciência das necessidades. (...) Seu lugar era o da janelinha, para o móvel
do mundo. Entregavam-lhe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa,
nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O Menino
deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada
amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica,
repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde;
e, além, baixa, a montanha.380
O
Menino de "As margens da alegria" espiava
as nuvens graças ao devaneio ativo do Artista, graças a sua meditação
filosófica, depois do repouso fervilhante;
graças a sua "vontade de ver, superando a passividade da visão"381. Segundo Bachelard,
nesse estágio do pensamento, o sonhador é mestre e profeta do minuto, ou seja, apresenta o que se passa sob seus
olhos.
As nuvens de amontoada
amabilidade revelam seus pensamentos literários,
esclarecem que, de ora em diante, o Artista do sertão passará a registrar
criativamente seus instantes de pura
intuição, seus instantes nas nuvens,
sem compromisso com suas fases anteriores.
As
imagens de nuvens pertencem aos sonhos infantis, e o Artista se apropria
criativamente do devaneio simplificado, à moda infantil. E eis agora o
Menino/Artista e sua vontade de ver,
de espiar as "nuvens de amontoada amabilidade"; de "fugir para o
espaço em branco" da pura intuição; de viajar, literariamente, para
"ao não-sabido, ao mais"382.
Em
várias narrativas do corpus de Primeiras estórias, o Artista abandona as antigas imagens do sertão, para revelar
opacamente o mundo da transparência criativa (não confundir com transparência,
enquanto reprodução da realidade), da vontade de lucidez, ou seja, procura
revelar um mundo pouco observado pela massa não-pensante.
O
céu azul de só ar e suas nuvens
comandam a sua renovada lucidez, a sua vontade, livre das amarras conceituais. No céu azul e vazio,
encontra o sonhador o esquema dos sentimentos
azuis, da clareza intuitiva, da
felicidade de ver claro em seus sentimentos, atos e pensamentos. O narciso
aéreo mira-se no céu azul, imitando os sentimentos da criança, sob as ordens da
perspectiva de intensidade substancial
infinita, ligada aos devaneios dinâmicos do amanhecer, e, esses devaneios
revelam os sonhos do menino sertanejo, aquele que posteriormente, já adulto,
conheceu a Cidade.
A
narrativa (e todas as narrativas seguintes) reflete o poder de transformação do
sonhador sertanejo. Seu sonho aéreo, em sua forma íntima e dinâmica,
essencialmente vetorial, deforma as
imagens exteriores da realidade sertaneja, registrando o seu poder de colorir
essa mesma realidade agora com cores imperecíveis. Assim, o chão, repartido de roças e campos, visto do
alto, possui todas as cores fortes e permanentes; possui, portanto, o poder de
se eternizar no âmbito da ficção. "As cores são ações da luz, ações e
esforços. Como compreender essas cores sem participar de seu ato
profundo?"383, reavalia Bachelard esse questionamento de Schopenhauer. As cores
desta fase denunciam que o Artista as visualiza sob a forma de luzes distantes,
acrisoladas em instantes que marcaram o seu passado, mas, também, propulsores
de imagens absolutas.
Com as nuvens a tarefa se torna a um tempo grandiosa e
fácil. Nesse amontoado globuloso, tudo rola ao nosso gosto, montanhas deslizam,
avalanches desmoronam e depois se acomodam, os monstros inflam e depois se
devoram um ao outro, todo o universo se regula segundo a vontade e a imaginação
do sonhador.384
O
Artista do sertão, nesta fase, é um novo contador de estórias; não mais de
estórias experientes, de coronéis, estórias-modelo, indutoras de atos heróicos,
à moda antiga. Ele agora convida a observar seus esforços de racionalização da
essência do não-dito (que plana no cogito(4)); convida a observar
sua vontade de deformar (sic) seus
fundamentais sonhos antigos.
Nesta
narrativa, a primeira de uma série de outras narrativas semelhantes, quem se
instala à janelinha, para o móvel do
mundo é o Criador ficcional, solidamente instalado no plano do cogito(3)
e próximo do plano da espiritualidade. É ele quem observa as nuvens, o azul de
só ar, os pontos em que ora e ora se estava, a claridade à larga, o chão plano
em visão cartográfica, repartido de roças e campos. Em verdade, os movimentos
do olhar do Menino-personagem seguem o dinamismo aéreo, íntimo e criador, das
emoções mais sinceras do próprio Artista. Sua vontade e imaginação regulam esse
novo universo, regulam essa nova e original forma de apreensão literária.
A
perspectiva dialética de A hora e vez de Augusto Matraga, associada ao elemento fogo, retorna, acoplada ao elemento ar.
O sonho de vôo está submetido à dialética da leveza e
do peso. Só por esse fato, o sonho de vôo recebe duas espécies bastante
diferentes: existem vôos leves e vôos pesados. Em torno desses dois caracteres
se acumulam todas as dialéticas da alegria e da dor, da exaltação e da fadiga,
da atividade e da passividade, da esperança e do desalento, do bem e do mal. Os
mais variados incidentes que se produzem na viagem do vôo encontrarão num e
noutro caso princípios de ligação. Quando se presta atenção à imaginação
dinâmica, as leis da substância e do devir psíquicos revelam sua supremacia
sobre as leis da forma: o psiquismo que se exalta e o psiquismo que se fatiga
se diferenciam num sonho aparentemente tão monótono quanto o sonho de vôo.385
A
narrativa "As margens da alegria" está submetida à dialética da
leveza e do peso: o vôo leve do
Menino, à semelhança das estórias infantis, contrapõe-se ao vôo pesado do psiquismo moderno do
Artista do sertão, espectador e participante de um mundo deteriorado. O vôo pesado reflete as pequenas
desventuras do Menino na grande cidade, ao mesmo tempo que reflete as
insatisfações do escritor ante o mundo moderno. A leveza inicial da viagem
oferece margem para a descoberta de um mundo estranho e desconhecido, e o provocador desta descoberta é um incerto peru de terreiro, o qual
mostrará ao Menino o seu desaparecer no
espaço, no grão nulo de um minuto.
Valorizando o tempo minimamente ou desvalorizando-o, o demiurgo impõe a sua
criatura ficcional "um miligrama de morte"386, dinamicamente impulsionado por
suas evoluções mentais.
A
simples vontade de voar é dialeticamente substituída pela enérgica vontade de
denunciar os conflitos do homem moderno. Longe estão os devaneios solidamente
ligados às experiências comunitárias do sertão. O poder de vôo direciona o
olhar e a mão firme de quem cria, ressalta os estados emocionais do Menino,
revela que outras estórias virão à luz, sob futuros instantes de vislumbre do não-conhecido.
O
avião, como referente indutor, propiciou a viagem
inventada no feliz, propiciou o vôo onírico do Artista em direção ao cogito(4).
A alegria (leve e superficial), as coisas
que vinham docemente, as atenções do Tio, darão lugar obrigatoriamente ao
peso das reflexões profundas: as
satisfações antes da consciência das necessidades. Esta consciência das necessidades não lhe
permite situar-se no âmbito das simples estórias infantis, indutoras de bom
procedimento ou exemplo de vida. Esta consciência
impõe imagens pesadas, imagens negras, imagens infelizes. O Menino vivencia uma
fase de autêntico sofrimento, refletindo o estado de espírito do homem moderno.
Repensando
este aspecto escuro, nesta fase
criativa de Guimarães Rosa, acredita-se que a agitação interna do escritor não
se conforma com a placidez de estorinhas triviais. Seu íntimo exige um alto
grau de discórdia criativa, revelando seu dinamismo interior, seus
questionamentos de vida. Ele quer contradizer as aparências que levam à
felicidade, e sua criaturinha
ficcional terá de conhecer também um miligrama de morte. Ele nega a felicidade
total a seu pequeno personagem, obriga-o a perceber a luz negra que se evola
dos sentimentos infelizes.
O ser que segue sonhos, sobretudo o ser que comenta
sonhos, não pode permanecer no contorno das formas. Ao menor apelo de
intimidade, penetra na matéria de seu sonho, no elemento material de seus
fantasmas. Lê, no borrão preto, a potência dos embriões ou a agitação
desordenada das larvas. Toda treva é material. (...) E para um autêntico
sonhador do interior das substâncias, um canto do sombra pode evocar todos os
terrores da vasta noite.387
A
intimidade do Artista está em conflito: narrar apenas as aventuras do Menino do
interior na Grande Cidade em construção não o satisfaz. A viagem de seu
personagem se transforma numa viagem em seu próprio interior, e o seu interior
não recolhe apenas os aspectos pitorescos da realidade.
Seus
novos sonhos ficcionais estão próximos ao despertar, estão quase racionalizados, ao abrigo de novas e singulares imagens,
propensas a serem deformadas pela imaginação aérea dinamizada. As mesmas formas
dinâmicas que propiciaram alegria serão mostradas e avaliadas mediante o
sentimento de tristeza do Menino. O elemento ar, em seu aspecto dinamizado,
expõe os antigos medos do menino do
interior, induzindo-o, agora, a refletir sobre o assunto.
Toda treva é material, diz Bachelard: as sombras da infância (os medos da infância)
materializam-se gradativamente, em contraponto à alegria inicial da viagem
narrativa. Paradoxalmente, é um elemento ligado à terra que deflagra os intensos circunlóquios sobre
a tristeza. O peru é uma ave presa ao elemento terra, e isto prova que o atual
sonhador do ar ainda não cortou relações com a sua matéria de origem, ou por
outra, agora, permite-se observá-la do alto, duplicando-a criativamente, ao
invés de reproduzi-la.
Os
valores de bem estar, que marcaram as fases iniciais do escritor, valores
ligados a terra, passam a sofrer uma reavaliação. O ato de pensar a morte do
peru, mediante as sensações da criança, confirma o conflito interior de quem
faz uma viagem de reconhecimento íntimo. Para que houvesse esse reconhecimento,
foi necessária a ascensão do Artista ao elemento ar, assim como foi necessária
também, em nível narrativo, a viagem de avião (da criança) até a cidade em
construção.
A
cidade em construção referencia uma nova fase de criação literária, ainda
ligada às recordações da infância, permeadas pelas profundas reflexões do
indivíduo moderno. A cidade em construção ainda reflete o espaço sertanejo do
passado (já que estava sendo construída num
semi-ermo, no chapadão) mas, graças ao elemento ar, dinamizado,
questionador, ela simboliza um espaço de interseção entre dois tempos que se
opõem. O Artista de Primeiras estórias,
situado no final da década de 50, não pode desprender-se totalmente dos cogitos
iniciais, formadores da consciência do homem, uma vez que, histórica e
esteticamente, os personagens ficcionais da época ainda não haviam assumido o
plano do vazio existencial. Tais personagens só surgirão no período da ditadura
militar, por intermédio das Absurdas
narrativas de Murilo Rubião, Roberto Drummond e outros, que marcaram aquele
momento histórico-estético até 1984.
Assim,
dentro do espaço narrativo de "As margens da alegria", a imagem do
avião como referencial de alegria, cede lugar à imagem do peru, como
referencial de tristeza. O narrador do sertão historicamente e esteticamente
ainda não está livre das imposições do mundo vital. O avião não se perdeu no
infinito, ao contrário, pousou no campo que ficava
a curta distância da casa — de madeira, sobre estacões, quase penetrando na
mata; o Menino não desembarcou em uma terra encantada, ao contrário,
deparou-se com os aspectos negros da vida, simbolizados no destino de morte de
um peru de quintal.
No
entanto, as imposições do cotidiano, as reflexões criadoras, continuam
submetidas ao dinamismo do elemento ar. O narrador dessas primeiras e
diferentes estórias, volta à terra, assinala a desgraça do peru, para
revigorar-se, espojar-se na terra-mãe, e alçar-se aos ares novamente.
O
interlúdio de tristeza dialetizará a sua nova e próxima ascensão. Enquanto
isto, as imagens pesadas virão à tona, mostrando o contraponto, que marcará a
retomada da alegria e vice-versa, num processo intermitente de criação. A
imaginação dinâmica (seja ela ligada à terra, à água, ao fogo, ao ar) permite
ao Artista vivenciar todas as imagens do percurso que levam ao cogito(4),
autêntico plano do fazer literário, chamado na filosofia bachelardiana de plano
da espiritualidade.
O
Criador ficcional, a partir do conto "As margens da alegria", faz ao
leitor dois convites: convida-o, em primeiro lugar, a viajar com seus
personagens até o plano de seus devaneios dinâmicos mais ousados, e, em segundo
lugar, a acompanhar os movimentos de sua própria dinamogenia interior. Assim,
dinamicamente, passa-se da alegria à tristeza, numa íntima ligação (um avatar)
aos estados emocionais do Menino.
A
simples morte do peru não desperta emoções profundas no âmago do leitor. O que
emociona realmente é a dialética da alegria e da tristeza, poeticamente bem
elaborada sob a forma de ficção. Neste intervalo de sofrimento, as cores
continuam fundamentais na obra roseana. O velame-branco, de pelúcia (um macio
capim), transforma-se apenas numa planta desbotada, conotando os sentimentos negros do Menino; o buriti, à beira do corguinho, já não possui o encanto
inicial, uma vez que a tristeza pela morte do peru o impele apenas a visualizar
vagas árvores e um ribeirão de águas cinzentas.
Debaixo
do peso dos negros pensamentos, o
anterior encantamento da descoberta do desconhecido transforma-se num encantamento morto e sem pássaros. A
real morte do peru não é o motivo central da tristeza do Menino, o que o
entristece é o medo do mundo maquinal. O peru de terreiro sempre existiu e
sempre foi sacrificado como alimento do homem nas diversas solenidades. Tanto
isto é verdade, que o próprio personagem reflete, ao deparar-se com as penas do
peru, no chão do terreirinho: — Ué, se
matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor? O que denota (ou conota?)
imensa tristeza é a certeza de que as coisas do mundo são passageiras, que a
própria vida é um rápido momento de passagem pela terra.
O
peru e seu desaparecer no espaço, no grão
nulo de um minuto, simboliza o medo do homem ante a certeza da morte. Do
peru restaram as penas e a cabeça degolada, atirada ao monturo, vítima das
bicadas de outro peru. Do homem, depois de morto, restarão as cinzas misturadas
à terra, e o esquecimento dos vivos.
Para
o Artista moderno, nato do sertão, a visão da grande cidade é uma visão hostil.
O Menino-personagem capta esta hostilidade, capta os sentimentos de quem quer
contradizer as aparências, denunciar os males do progresso. O personagem faz
essa denúncia, já que é ele, situado no espaço narrativo, que sente o medo secreto das descobertas de seu
Criador.
Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo
secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no
hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança
infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.388
O
que se destaca neste trecho é a oposição entre o mundo velho, com seus valores
de uso (o mundo do sertão, das primeiras fases), e o mundo moderno. O antigo menino do sertão abaixa a cabeça,
impotente ante a destruição dos puros valores recebidos na infância. De ora em
diante, as imagens da infância sofrerão a influência da luta entre o homem do
sertão (ou o sertão?), vagando eternamente numa canoinha-de-nada, sustentado pela imaginação dinâmica e aérea, e o
homem da cidade, com suas culpas e medos, imprensado num mundo sem perspectivas
existenciais.
O
ato criador continuará sua trajetória (sua viagem) submisso ao comando da
perspectiva substancial infinita.
De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era
uma saudade abandonada, um incerto remorso. Nem ele sabia bem. Seu
pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E
— a nem espetaculosa surpresa — viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava!
Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a
escova, o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o
englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso,
um pouco consolavam.
Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já
o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre sofrido assim, em toda
parte. O silêncio saía de seus guardados. O menino timorato aquietava-se com o
próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes,
aumentar-lhe alma.389
O
ato criador das substâncias dinamizadas continuará revelando as dialéticas do
mundo: alegria e tristeza, amor e ódio, bem e mal; continuará revelando as
substituições que consolam, e, sobretudo, continuará revelando o silêncio saindo de seus guardados,
objetivando denunciar a proximidade do Caos. As matas serão destruídas em nome
do progresso, os verdadeiros valores humanos também, mas o céu continuará
estranhamente azul, os narradores continuarão a existir e pequenos vagalumes
continuarão a voar na noite escura, vindos das raras matas, como se fossem
minúsculos focos de esperança.
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