quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

II.11.3 - O elemento Ar: a um passo do infinito

II.11.3 - O elemento Ar: a um passo do infinito

E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades. (...) Seu lugar era o da janelinha, para o móvel do mundo. Entregavam-lhe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O Menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha.380

O Menino de "As margens da alegria" espiava as nuvens graças ao devaneio ativo do Artista, graças a sua meditação filosófica, depois do repouso fervilhante; graças a sua "vontade de ver, superando a passividade da visão"381. Segundo Bachelard, nesse estágio do pensamento, o sonhador é mestre e profeta do minuto, ou seja, apresenta o que se passa sob seus olhos.

As nuvens de amontoada amabilidade revelam seus pensamentos literários, esclarecem que, de ora em diante, o Artista do sertão passará a registrar criativamente seus instantes de pura intuição, seus instantes nas nuvens, sem compromisso com suas fases anteriores.

As imagens de nuvens pertencem aos sonhos infantis, e o Artista se apropria criativamente do devaneio simplificado, à moda infantil. E eis agora o Menino/Artista e sua vontade de ver, de espiar as "nuvens de amontoada amabilidade"; de "fugir para o espaço em branco" da pura intuição; de viajar, literariamente, para "ao não-sabido, ao mais"382.

Em várias narrativas do corpus de Primeiras estórias, o Artista abandona as antigas imagens do sertão, para revelar opacamente o mundo da transparência criativa (não confundir com transparência, enquanto reprodução da realidade), da vontade de lucidez, ou seja, procura revelar um mundo pouco observado pela massa não-pensante.

O céu azul de só ar e suas nuvens comandam a sua renovada lucidez, a sua vontade, livre das amarras conceituais. No céu azul e vazio, encontra o sonhador o esquema dos sentimentos azuis, da clareza intuitiva, da felicidade de ver claro em seus sentimentos, atos e pensamentos. O narciso aéreo mira-se no céu azul, imitando os sentimentos da criança, sob as ordens da perspectiva de intensidade substancial infinita, ligada aos devaneios dinâmicos do amanhecer, e, esses devaneios revelam os sonhos do menino sertanejo, aquele que posteriormente, já adulto, conheceu a Cidade.

A narrativa (e todas as narrativas seguintes) reflete o poder de transformação do sonhador sertanejo. Seu sonho aéreo, em sua forma íntima e dinâmica, essencialmente vetorial, deforma as imagens exteriores da realidade sertaneja, registrando o seu poder de colorir essa mesma realidade agora com cores imperecíveis. Assim, o chão, repartido de roças e campos, visto do alto, possui todas as cores fortes e permanentes; possui, portanto, o poder de se eternizar no âmbito da ficção. "As cores são ações da luz, ações e esforços. Como compreender essas cores sem participar de seu ato profundo?"383, reavalia Bachelard esse questionamento de Schopenhauer. As cores desta fase denunciam que o Artista as visualiza sob a forma de luzes distantes, acrisoladas em instantes que marcaram o seu passado, mas, também, propulsores de imagens absolutas.

Com as nuvens a tarefa se torna a um tempo grandiosa e fácil. Nesse amontoado globuloso, tudo rola ao nosso gosto, montanhas deslizam, avalanches desmoronam e depois se acomodam, os monstros inflam e depois se devoram um ao outro, todo o universo se regula segundo a vontade e a imaginação do sonhador.384

O Artista do sertão, nesta fase, é um novo contador de estórias; não mais de estórias experientes, de coronéis, estórias-modelo, indutoras de atos heróicos, à moda antiga. Ele agora convida a observar seus esforços de racionalização da essência do não-dito (que plana no cogito(4)); convida a observar sua vontade de deformar (sic) seus fundamentais sonhos antigos.

Nesta narrativa, a primeira de uma série de outras narrativas semelhantes, quem se instala à janelinha, para o móvel do mundo é o Criador ficcional, solidamente instalado no plano do cogito(3) e próximo do plano da espiritualidade. É ele quem observa as nuvens, o azul de só ar, os pontos em que ora e ora se estava, a claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos. Em verdade, os movimentos do olhar do Menino-personagem seguem o dinamismo aéreo, íntimo e criador, das emoções mais sinceras do próprio Artista. Sua vontade e imaginação regulam esse novo universo, regulam essa nova e original forma de apreensão literária.

A perspectiva dialética de A hora e vez de Augusto Matraga, associada ao elemento fogo, retorna, acoplada ao elemento ar.

O sonho de vôo está submetido à dialética da leveza e do peso. Só por esse fato, o sonho de vôo recebe duas espécies bastante diferentes: existem vôos leves e vôos pesados. Em torno desses dois caracteres se acumulam todas as dialéticas da alegria e da dor, da exaltação e da fadiga, da atividade e da passividade, da esperança e do desalento, do bem e do mal. Os mais variados incidentes que se produzem na viagem do vôo encontrarão num e noutro caso princípios de ligação. Quando se presta atenção à imaginação dinâmica, as leis da substância e do devir psíquicos revelam sua supremacia sobre as leis da forma: o psiquismo que se exalta e o psiquismo que se fatiga se diferenciam num sonho aparentemente tão monótono quanto o sonho de vôo.385

A narrativa "As margens da alegria" está submetida à dialética da leveza e do peso: o vôo leve do Menino, à semelhança das estórias infantis, contrapõe-se ao vôo pesado do psiquismo moderno do Artista do sertão, espectador e participante de um mundo deteriorado. O vôo pesado reflete as pequenas desventuras do Menino na grande cidade, ao mesmo tempo que reflete as insatisfações do escritor ante o mundo moderno. A leveza inicial da viagem oferece margem para a descoberta de um mundo estranho e desconhecido, e o provocador desta descoberta é um incerto peru de terreiro, o qual mostrará ao Menino o seu desaparecer no espaço, no grão nulo de um minuto. Valorizando o tempo minimamente ou desvalorizando-o, o demiurgo impõe a sua criatura ficcional "um miligrama de morte"386, dinamicamente impulsionado por suas evoluções mentais.

A simples vontade de voar é dialeticamente substituída pela enérgica vontade de denunciar os conflitos do homem moderno. Longe estão os devaneios solidamente ligados às experiências comunitárias do sertão. O poder de vôo direciona o olhar e a mão firme de quem cria, ressalta os estados emocionais do Menino, revela que outras estórias virão à luz, sob futuros instantes de vislumbre do não-conhecido.

O avião, como referente indutor, propiciou a viagem inventada no feliz, propiciou o vôo onírico do Artista em direção ao cogito(4). A alegria (leve e superficial), as coisas que vinham docemente, as atenções do Tio, darão lugar obrigatoriamente ao peso das reflexões profundas: as satisfações antes da consciência das necessidades. Esta consciência das necessidades não lhe permite situar-se no âmbito das simples estórias infantis, indutoras de bom procedimento ou exemplo de vida. Esta consciência impõe imagens pesadas, imagens negras, imagens infelizes. O Menino vivencia uma fase de autêntico sofrimento, refletindo o estado de espírito do homem moderno.

Repensando este aspecto escuro, nesta fase criativa de Guimarães Rosa, acredita-se que a agitação interna do escritor não se conforma com a placidez de estorinhas triviais. Seu íntimo exige um alto grau de discórdia criativa, revelando seu dinamismo interior, seus questionamentos de vida. Ele quer contradizer as aparências que levam à felicidade, e sua criaturinha ficcional terá de conhecer também um miligrama de morte. Ele nega a felicidade total a seu pequeno personagem, obriga-o a perceber a luz negra que se evola dos sentimentos infelizes.

O ser que segue sonhos, sobretudo o ser que comenta sonhos, não pode permanecer no contorno das formas. Ao menor apelo de intimidade, penetra na matéria de seu sonho, no elemento material de seus fantasmas. Lê, no borrão preto, a potência dos embriões ou a agitação desordenada das larvas. Toda treva é material. (...) E para um autêntico sonhador do interior das substâncias, um canto do sombra pode evocar todos os terrores da vasta noite.387

A intimidade do Artista está em conflito: narrar apenas as aventuras do Menino do interior na Grande Cidade em construção não o satisfaz. A viagem de seu personagem se transforma numa viagem em seu próprio interior, e o seu interior não recolhe apenas os aspectos pitorescos da realidade.

Seus novos sonhos ficcionais estão próximos ao despertar, estão quase racionalizados, ao abrigo de novas e singulares imagens, propensas a serem deformadas pela imaginação aérea dinamizada. As mesmas formas dinâmicas que propiciaram alegria serão mostradas e avaliadas mediante o sentimento de tristeza do Menino. O elemento ar, em seu aspecto dinamizado, expõe os antigos medos do menino do interior, induzindo-o, agora, a refletir sobre o assunto.

Toda treva é material, diz Bachelard: as sombras da infância (os medos da infância) materializam-se gradativamente, em contraponto à alegria inicial da viagem narrativa. Paradoxalmente, é um elemento ligado à terra que deflagra os intensos circunlóquios sobre a tristeza. O peru é uma ave presa ao elemento terra, e isto prova que o atual sonhador do ar ainda não cortou relações com a sua matéria de origem, ou por outra, agora, permite-se observá-la do alto, duplicando-a criativamente, ao invés de reproduzi-la.

Os valores de bem estar, que marcaram as fases iniciais do escritor, valores ligados a terra, passam a sofrer uma reavaliação. O ato de pensar a morte do peru, mediante as sensações da criança, confirma o conflito interior de quem faz uma viagem de reconhecimento íntimo. Para que houvesse esse reconhecimento, foi necessária a ascensão do Artista ao elemento ar, assim como foi necessária também, em nível narrativo, a viagem de avião (da criança) até a cidade em construção.

A cidade em construção referencia uma nova fase de criação literária, ainda ligada às recordações da infância, permeadas pelas profundas reflexões do indivíduo moderno. A cidade em construção ainda reflete o espaço sertanejo do passado (já que estava sendo construída num semi-ermo, no chapadão) mas, graças ao elemento ar, dinamizado, questionador, ela simboliza um espaço de interseção entre dois tempos que se opõem. O Artista de Primeiras estórias, situado no final da década de 50, não pode desprender-se totalmente dos cogitos iniciais, formadores da consciência do homem, uma vez que, histórica e esteticamente, os personagens ficcionais da época ainda não haviam assumido o plano do vazio existencial. Tais personagens só surgirão no período da ditadura militar, por intermédio das Absurdas narrativas de Murilo Rubião, Roberto Drummond e outros, que marcaram aquele momento histórico-estético até 1984.

Assim, dentro do espaço narrativo de "As margens da alegria", a imagem do avião como referencial de alegria, cede lugar à imagem do peru, como referencial de tristeza. O narrador do sertão historicamente e esteticamente ainda não está livre das imposições do mundo vital. O avião não se perdeu no infinito, ao contrário, pousou no campo que ficava a curta distância da casa — de madeira, sobre estacões, quase penetrando na mata; o Menino não desembarcou em uma terra encantada, ao contrário, deparou-se com os aspectos negros da vida, simbolizados no destino de morte de um peru de quintal.

No entanto, as imposições do cotidiano, as reflexões criadoras, continuam submetidas ao dinamismo do elemento ar. O narrador dessas primeiras e diferentes estórias, volta à terra, assinala a desgraça do peru, para revigorar-se, espojar-se na terra-mãe, e alçar-se aos ares novamente.

O interlúdio de tristeza dialetizará a sua nova e próxima ascensão. Enquanto isto, as imagens pesadas virão à tona, mostrando o contraponto, que marcará a retomada da alegria e vice-versa, num processo intermitente de criação. A imaginação dinâmica (seja ela ligada à terra, à água, ao fogo, ao ar) permite ao Artista vivenciar todas as imagens do percurso que levam ao cogito(4), autêntico plano do fazer literário, chamado na filosofia bachelardiana de plano da espiritualidade.

O Criador ficcional, a partir do conto "As margens da alegria", faz ao leitor dois convites: convida-o, em primeiro lugar, a viajar com seus personagens até o plano de seus devaneios dinâmicos mais ousados, e, em segundo lugar, a acompanhar os movimentos de sua própria dinamogenia interior. Assim, dinamicamente, passa-se da alegria à tristeza, numa íntima ligação (um avatar) aos estados emocionais do Menino.

A simples morte do peru não desperta emoções profundas no âmago do leitor. O que emociona realmente é a dialética da alegria e da tristeza, poeticamente bem elaborada sob a forma de ficção. Neste intervalo de sofrimento, as cores continuam fundamentais na obra roseana. O velame-branco, de pelúcia (um macio capim), transforma-se apenas numa planta desbotada, conotando os sentimentos negros do Menino; o buriti, à beira do corguinho, já não possui o encanto inicial, uma vez que a tristeza pela morte do peru o impele apenas a visualizar vagas árvores e um ribeirão de águas cinzentas.

Debaixo do peso dos negros pensamentos, o anterior encantamento da descoberta do desconhecido transforma-se num encantamento morto e sem pássaros. A real morte do peru não é o motivo central da tristeza do Menino, o que o entristece é o medo do mundo maquinal. O peru de terreiro sempre existiu e sempre foi sacrificado como alimento do homem nas diversas solenidades. Tanto isto é verdade, que o próprio personagem reflete, ao deparar-se com as penas do peru, no chão do terreirinho: — Ué, se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor? O que denota (ou conota?) imensa tristeza é a certeza de que as coisas do mundo são passageiras, que a própria vida é um rápido momento de passagem pela terra.

O peru e seu desaparecer no espaço, no grão nulo de um minuto, simboliza o medo do homem ante a certeza da morte. Do peru restaram as penas e a cabeça degolada, atirada ao monturo, vítima das bicadas de outro peru. Do homem, depois de morto, restarão as cinzas misturadas à terra, e o esquecimento dos vivos.

Para o Artista moderno, nato do sertão, a visão da grande cidade é uma visão hostil. O Menino-personagem capta esta hostilidade, capta os sentimentos de quem quer contradizer as aparências, denunciar os males do progresso. O personagem faz essa denúncia, já que é ele, situado no espaço narrativo, que sente o medo secreto das descobertas de seu Criador.

Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.388

O que se destaca neste trecho é a oposição entre o mundo velho, com seus valores de uso (o mundo do sertão, das primeiras fases), e o mundo moderno. O antigo menino do sertão abaixa a cabeça, impotente ante a destruição dos puros valores recebidos na infância. De ora em diante, as imagens da infância sofrerão a influência da luta entre o homem do sertão (ou o sertão?), vagando eternamente numa canoinha-de-nada, sustentado pela imaginação dinâmica e aérea, e o homem da cidade, com suas culpas e medos, imprensado num mundo sem perspectivas existenciais.

O ato criador continuará sua trajetória (sua viagem) submisso ao comando da perspectiva substancial infinita.

De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso. Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E — a nem espetaculosa surpresa — viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.

Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre sofrido assim, em toda parte. O silêncio saía de seus guardados. O menino timorato aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma.389

O ato criador das substâncias dinamizadas continuará revelando as dialéticas do mundo: alegria e tristeza, amor e ódio, bem e mal; continuará revelando as substituições que consolam, e, sobretudo, continuará revelando o silêncio saindo de seus guardados, objetivando denunciar a proximidade do Caos. As matas serão destruídas em nome do progresso, os verdadeiros valores humanos também, mas o céu continuará estranhamente azul, os narradores continuarão a existir e pequenos vagalumes continuarão a voar na noite escura, vindos das raras matas, como se fossem minúsculos focos de esperança.


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