A poética da casa de Gaston
Bachelard (cf. A
ÁGUA E OS SONHOS) possibilita ao teórico da
literatura, possuidor de um razoável conhecimento de como se interpretar um
texto literário pelos princípios da fenomenologia, uma incursão/excursão ao
Sertão Ficcional de Guimarães de Rosa. Suas primeiras narrativas, escritas sob
o impacto da descoberta de um mundo sertanejo incomum, apresentam a parte
externa, pitoresca, de um espaço geográfico, memorável, resgatado das
impressões da infância. Entretanto, o sertão mineiro, como representação
legítima da casa inesquecível do escritor, só começa a
ser recuperado criativamente a partir de A hora
e vez de Augusto Matraga, revelando seus recantos secretos, seus
refúgios, seus abrigos. O narrador, nesta narrativa, já evidenciando uma
mudança de perspectiva (saíndo da perspectiva horizontal para a perspectiva
interativa, questionadora), recordando
o sertão, auxiliado pela contribuição da matéria lírica, recorda a casa da
infância daquele que o concebeu ficcionalmente, e é por isso que o escritor
sertanejo, num determinado trecho, liberta-se do jugo do narrador experiente,
para recordar a antiga morada. É seu
passado inesquecível que se sobressai, quando se descontrola discursivamente, em sua narração dos acontecimentos que
pautam a volta de Nhô Augusto ao Arraial do Murici. A volta do personagem
representa o retorno das recordações de uma infância privilegiada. Por esta razão,
observa-se o tom poético, o discurso estranho, diferente, o qual se verifica a
partir da decisão de Nhô Augusto de regressar a seu arraial de origem. O
ficcionista, sob a influência da consciência
fervilhante, obriga o seu narrador do momento a partilhar de suas próprias
emoções, nomeando os pormenores da caminhada e interagindo com os sentimentos
inerentes a seu personagem ficcional.
O narrador informa que Nhô Augusto não percebia os rumos que tomava.
Ouso afirmar, desvinculando-me (com inovadora consciência interativa) da
constantemente modificada orientação analítico-estruturalista: o Artista
literário do século XX não percebia os rumos que a narrativa tomava. Bachelard
orienta-me: a casa — o sertão — faz o ficcionista devanear, faz seu narrador poetizar. Sertão inesquecível. Narrador
já agora pós-moderno, que não consegue esquecer o castelo intrigante e misterioso de seu heróico passado sertanejo, o
qual permanece vívido em suas recordações. Valores verdadeiros de uma antiga
realidade imaginosa. Não são os
valores objetivos que contam. Contam mais os momentos marcantes da infância e
adolescência vividos naquele lugar, os quais permaneceram indeléveis no íntimo
do Artista. Narrador-Poeta ou Poeta-Narrador, ou simplesmente Poeta? Os poetas
não delegam poderes, apenas sentem, recordam, devaneam, não transitam entre dois mundos diferentes, se encontram
além da objetividade histórica. Por tais motivos, centralizei minha
investigação sobre a poética da casa, ao interagir interpretativamente com a
narrativa A hora e
vez de Augusto Matraga, nos trechos que reproduzem
a interferência da matéria lírica na criação poético-ficcional do narrador.
Bachelard cita Jung em sua Introdução:
Temos que descobrir uma construção e explicá-la: seu
andar superior foi construído no século XIX, o térreo data do século XVI e o
exame mais minucioso da construção mostra que ela foi feita sobre uma torre do
século II. No porão descobriram fundações romanas e, debaixo do porão, acha-se
uma caverna em cujo solo se descobrem ferramentas de sílex, na camada superior,
e restos de fauna glaciária nas camadas mais profundas. Tal seria mais ou menos
a estrutura de nossa alma.1
O sertão literário de Guimarães Rosa está nas bases da estrutura de
vida do narrador, extensivo portanto às bases de estrutura de vida do
ficcionista. O andar superior foi construído no século XX; o térreo (ligado ao
sertão mineiro) data do século XVI, início da História do Brasil; mas, se
houver uma observação minuciosa, será possível compreender que esse Sertão tem
seu alicerce cravado na Era Medieval. Observando as camadas mais profundas,
apreende-se uma origem sueva localizada numa fase pré-medieval de Portugal, em
um tronco familiar bárbaro, cujo
apelido (sobrenome) de família era Guimaranes.
Eis o depoimento de Guimarães Rosa ao crítico Lorenz:
Para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em
Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de
muita importância. Além disso, em Minas Gerais: sou mineiro. E isto sim é o
importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo:
Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também que uma
parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na
realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome
que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela
minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece
a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os
lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão
intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido culpado por meus
antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se
chama o sertão. E eu também estou apegado a ele.2
O Sertão ficcional roseano simboliza a casa inesquecível do Artista
Literário. Dentro desta casa íntima
há um determinado Sertão que não se esquece, por isto ele diz a Lorenz, na Entrevista, que leva o sertão dentro dele e que o
mundo em que vive é também o sertão3. Sua literatura nasceu de sua vida íntima e sua verdade existencial se orienta através das recordações do sertão. A memória (matéria épica) é insuficiente
para transmitir sentimentos que remontam a pré-fase da humanidade, inserida na
alma de um único homem. Pelo prisma psicológico/filosófico de Gaston Bachelard
(POÉTICA DO ESPAÇO), a primeira morada será sempre a base de futuras recordações.
As primeiras vivências, mesmo aparentemente esquecidas, permanecem alojadas, armazenadas em íntimos
compartimentos secretos. O interior desse sertão (sua intimidade, sua primeira
morada) transparece por meio do olhar nostálgico de seu narrador. Se a
narrativa, nas últimas seqüências, se processa mediante um discurso diferente
do comumente usado para reproduzir a realidade, isto se dá graças à
complexidade de se recordar de quem narra. A recordação (matéria lírica) é
caótica e, pelo ponto de vista da criação, valiosa. Por estas razões, as
imagens finais se encontram dispersas
e, ao mesmo tempo, há um corpo de imagens4, fervilhante, que as legitima no âmbito da ficcionalidade.
Seguindo ainda as teorizações de Bachelard, percebe-se que esse acúmulo de imagens (ou
imaginação além dos limites) aumenta os valores da verdadeira realidade do
sertão mineiro no sentido material. O sertão mineiro foi a primeira morada do
escritor Guimarães Rosa, o Sertão literário roseano concentra as imagens dessa casa. No sertão da infância, antes de
tomar para si as rédeas de sua própria proteção, ele foi um ser protegido. Foi
ali que conheceu o calor do fogão a lenha
e o aconchego do afeto familiar. Depois o mundo o envolveu.
Bachelard diz que "a casa é o nosso canto do mundo"5. Guimarães Rosa
adquiriu inúmeros talentos, projetou-se, transformou-se em cidadão do mundo,
mas o sertão permaneceu como seu canto do
mundo no Mundo.
Eu sou antes de mais nada um "homem do
sertão"; e isto, não é apenas uma afirmação biográfica, mas também e nisto
pelo menos eu acredito firmemente, que ele, esse "homem do sertão",
está presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa. (...)
Este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para
mim um símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo.6
O sertão foi seu primeiro universo e seu verdadeiro universo, e o que
veio depois não o satisfez realmente. Não se encontra satisfação interior em um
mundo refletor de hipocrisias, e o mundo que circunda o Sertão roseano, sem afetá-lo inteiramente, reflete a
degradação do homem moderno (desde o século XVI), distante temporalmente dos
valores irretocáveis da Antiguidade. O narrador roseano (já transitando para o
pós-moderno) de A hora e vez de Augusto Matraga transporta-se, ao longo de sua narrativa, até "o país da Infância
imóvel"7, de onde recupera, por meio da nostalgia, os tesouros de um espaço
verdadeiro, porque suas lembranças são verdadeiras. Sua antiga felicidade
sertaneja é verdadeira. As histórias de grandes homens ou de violentos
senhores-de-terra são verdadeiras, porque se encontram registradas nas recordações,
não fazem parte da memória. São a verdade dos sentimentos, não são a verdade da
memória histórica, replena de falsos testemunhos.
Bachelard, como filósofo, procura interpretar as imagens da casa, tendo
"o cuidado de não romper a solidariedade da memória e da imaginação"8, aspectos racionais da
realidade. Os teóricos da literatura poética dignificam mais as recordações do
Poeta. Bachelard diz que "a casa abriga o devaneio, protege o sonhador,
permite sonhar em paz"9; a casa-Sertão de Guimarães Rosa só se faz verdadeira graças ao
devaneio, ao sonho do sonhador somado às recordações (de novo ao coração).
Bachelard diz que "os pensamentos e as experiências sancionam os valores
humanos. Ao devaneio pertencem os valores que marcam o homem em sua profundidade"10. O objetivo do
narrador roseano não é a aprovação dos valores sertanejos (matéria épica), é
mais importante realçar os valores que marcaram esse povo em sua profundidade.
Por isto, o Artista sonha em paz,
quando sonha o Sertão, porque esse sonho valoriza um espaço que lhe é caro,
vivenciado dentro de um clima de sonho (Sonho dentro do sonho). Suas
recordações se encontram ancoradas nesse Sertão de sonho ou ficção poética, matéria que integra
pensamentos, lembranças e imagens literárias. Nessa integração se sustenta o
retorno de Nhô Augusto, pautado por um discurso intrincado, no qual a realidade
se encontra modificada pelo crivo de sentimentos interiorizados. Nesse
discurso, vale mais a criatividade poética, mesmo que esta criatividade apareça
dentro dos moldes ficcionais. Nesse discurso, o universo sertanejo aparece
fragmentado, subjetivo, singular, porque o narrador se enreda em seus próprios
devaneios e circunlóquios, alheio à matéria focalizada. O Sertão emerge
instantâneo, imobilizado e complexo, do ponto de vista mágico do Poeta, não do
Ficcionista.
É Guimarães Rosa quem fala: "Meus romances e ciclos de romances
são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade"11. Em suas narrativas,
se unem a criação poética e a
realidade, simplesmente porque o Sertão roseano (Sertão que passou pelo selo do
devaneio a partir da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, que
teve seu momento de alta inspiração em Grande Sertão: Veredas, e que foi
imaginado criativamente nas obras posteriores do autor) é um recanto de pura
poesia. Sertão poético, espaço poético12, onde as recordações (interferência lírica)
suplantam a objetividade da memória. Se a
casa abriga o devaneio, o Sertão abriga o devaneio de quem recorda. Sertão
imperecível.
O Sertão das Gerais foi a força do indivíduo Guimarães Rosa,
sustentando-o "através das tempestades do céu e das tempestades da
vida"13. O
sertão mineiro como "corpo e alma"14: corpo, como realidade de vida;
alma, enquanto realidade poética. Sertão-berço, sertão-casa, sertão-mundo;
sertão fechado, agasalhado, protegido no seio de uma outra casa: seu próprio
interior. Ele vivenciou inúmeras fases/faces de vida, "jogado no
mundo"15, mas
não perdeu o contato com o bem-estar primitivo do colo. Enfrentou a separação,
saindo "fora do ser da casa"16; aceitou mudanças de valores, tornando-se
citadino e moderno, mas negou-se a romper definitivamente com os valores da
antiga e primeira morada. Eis a força de sua temática poético-narrativa.
As reminiscências do passado, em forma de ficção poética, mostram que o
aconchego do berço mantiveram a infância do Artista imóvel em seus braços. O
Sertão roseano (segundo segmento da narrativa em questão) como compartimento de
recordações: todos os cantos e recantos bem caracterizados; uma vida de
interiorização e resgate poético de um passado que se faz presente, quando se
quer paralisar o tempo que passa. Lugar que "retém o tempo
comprimido"17, prelúdio de silêncio que
antecede o instante de poesia.
As imagens do texto recuperam esse tempo: são imagens conotativas, são
a percepção do sertão poético, espaço opaco e gratuito, pelo qual se vislumbram
os questionamentos sócio-existenciais de um escritor paradoxal (sertanejo e
citadino), obrigando-se a transferir para seu personagem Nhô Augusto seus
espantos e descobertas supra-reais. Ele retoma o passado, ou seja, recorda sua
antiga morada, mas camufla esse retomar, ao transferir para Nhô Augusto,
personagem aparentemente central, o privilégio de nascimento e glória, o
privilégio de ser nato de um mundo imaculado. Narrador paradoxal, Artista
paradoxal, porque não é somente a história de Nhô Augusto que se sobressai;
sobressai-se um discurso narrativo insólito, ou melhor, uma narração, uma
enunciação, em que as palavras pesam mais; sobressai-se mais a expressividade
da narração, a declaração subentendida de que o narrador da estória não se
encontra longe da matéria focalizada; sobressai-se mais o fato de o Artista ter
muita intimidade com aquele espaço, e, assim, a narração o representa no aspecto
profundo de seu próprio ser.
A narração, discurso das palavras, expressa o ficcionista no plano das
probabilidades de vida; a narrativa, que reproduz o personagem, é a ficção
enquanto reprodução da realidade, ligada ao discurso das coisas. Por isto, as imagens do texto são também
paradoxais: imagens imitativas (o referencial, a percepção dos objetos reais)
mesclam-se e se opõem às imagens conotativas (a percepção do literário)18.
Se há paradoxos narrativos e existenciais, em virtude das inúmeras vivências
do Artista, não se observa nenhum paradoxo na apreensão literária dos valores
do sertão. No desenrolar da narrativa roseana, o espaço do Sertão anula as
imperfeições da memória, não admite o paradoxal, a mácula, quando o assunto diz
respeito a ele mesmo, porque o espaço desse dito Sertão é totalizador, não se
deixa pensar dentro de um tempo abstrato e fluídico. Esse espaço comanda o
fluir da narrativa, tornando-se, o Sertão, o sujeito da ação; espaço vivo,
graças à paixão que o Artista lhe devota; espaço vivo de um solitário indivíduo
que alcançou o cogito(3) da consciência pura.
Apenas alguém para quem o momento nada significa, para
quem, como eu, se sente no infinito como se estivesse em casa, (...), somente
alguém assim pode encontrar a felicidade e, o que é ainda mais importante,
conservar para si a felicidade. Au fond, je
suis un solitaire.19
Espaço vivo, refletor de uma infância rica e solitária; espaço que
permaneceu intacto nas recordações do homem, na recusa de apagá-lo do presente;
Sertão endeusado e retomado sob forma de ficção poética; Sertão sempre
revisitado nos sonhos e nas recordações; Sertão labiríntico, onde apenas se
encontra à vontade o personagem-narrador, dentro de seu narrar. Ao Artista não
interessa ser ou não entendido; as aventuras de Nhô Augusto são narradas para
si mesmo, porque Nhô Augusto é apenas uma justificativa de enredo narrativo.
Interessa-lhe mais poetizar o espaço do sertão, trazer novamente ao coração as
lembranças do passado, nas quais se misturam verdades e poesia.
O Sertão de Rosa é o reduto da volta e da busca permanentes, mesmo que,
em realidade, este Sertão já não exista; é o reconforto das lembranças de um
lugar aconchegante, onde as minúcias daquele mundo, visíveis e invisíveis,
estão recolhidas em seu íntimo. São lembranças fragmentadas transformando-se em
acontecimentos dignos de relato. Nessa superabundância de pensamentos que se
entrechocam e se ajustam, observa-se o discurso retórico, característica do
literário, segundo Lefebve20, e é justamente esse discurso retórico que impõe as diretrizes da
narrativa, a partir do retorno do personagem ao Arraial do Murici.
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de
maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E
outro. mais outro. E ainda outro, mais abaixo, com as maitacas verdinhas,
grulhantes, gargalhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um
coro. (...) E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma
esquadrilha sobrevoando outra.. E mesmo, de vez em quando, discutindo,
brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos
que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os
minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que
choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido —
rrrl, rrril,
rrrl-rrril!...21
O personagem está em vias de retornar ao Arraial do Murici, mas,
antecipando-o, o Artista já iniciou seu processo de retorno à antiga morada,
por intermédio do devaneio poético. "As regras do código retórico são
sempre suspeitas, susceptíveis de serem contestadas, transgredidas,
repudiadas"22. As regras da narrativa roseana transgridem as normas, para não se
transformarem em letra morta. Por isso, há desvios, desestruturações, que
violam o código ordinário, e, graças a esses desvios, o discurso ganha vida, e
é como se realmente o leitor estivesse assistindo ao alarido dos periquitinhos,
à algazarra dos tuins chovendo nos
pés de mamão. Recordando o sertão em sua ficção poética, o Artista interroga
uma realidade (o conteúdo dessa realidade) e exige a presença física dessa
realidade, mesmo que, para que isto aconteça, seja necessária a adoção de um
discurso inventivo, criador de novos meios de expressão. Assim, apreende-se o estranhamento pós-moderno do discurso
textual: os fonemas r, i, l,
agrupados de forma a caracterizarem o alarido dos tuins. Por que a manhã
gargalhou com a revoada de pássaros?
Mas o que não se interrompia era o trânsito das
gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: —
Me espera!... Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para o outro
escalão, que avançava lá atrás.23
Os estranhamentos do discurso
textual, indicando "uma intenção literária e um efeito literário comuns à
prosa e à poesia"24. O narrador, em alguns trechos da narrativa, encontra-se sob as
exigências do mundo poético, onde todas as contribuições imagísticas são
bem-vindas. Nas últimas seqüências da narrativa, o discurso é poético, repleto
de metáforas, antíteses e estranhamentos. O narrador faz seu personagem
sertanejo cantar velhas cantigas e se encantar com a Natureza. É o insólito
irrompendo do texto. São os estranhamentos de um Sertão de sonho, que jazem no
inconsciente de quem recorda. Sertão estranho, porque representa o passado,
espaço que protegeu uma felicidade que já não existe. O narrador (um
prestigioso alter ego) não pensa o caminho para a frente, o ver passar a vida,
porque as veredas do passado foram muito mais amadas e jazem intactas dentro de
seu espaço interno. Sertão atraente, recantos e veredas atraentes, saídos das
camadas profundas do ser.
O excesso de pitoresco de uma morada pode ocultar a
sua intimidade. Isso é verdade na vida; e mais ainda no devaneio. As
verdadeiras casas da lembrança, as casas aonde os nossos sonhos nos conduzem,
as casas ricas de um fiel onirismo, rejeitam qualquer descrição. Descrevê-las
seria mandar visitá-las. Do presente
pode-se talvez dizer tudo; mas do passado! A casa primordial e oniricamente
definitiva deve guardar sua penumbra. Ela pertence à literatura em
profundidade, isto é, à poesia, e não à literatura eloqüente, que tem
necessidade do romance dos outros para analisar a intimidade. Tudo o que devo
dizer da casa da minha infância é justamente o que preciso para me colocar em
situação de onirismo, para me situar no limiar de um devaneio em que vou repousar no meu passado.25
O Sertão é pitoresco e íntimo, é verdadeiro, se houver crédito para a
verdade das recordações. Buscando a etimologia da palavra recordação, encontra-se o sentido poético, que se traduz por novamente ao coração. O que se aninha no
coração é verdadeiro e íntimo, mais
verdadeiro ainda no devaneio, segundo Bachelard. Assim, Sertão verdadeiro,
produzindo um discurso poético verdadeiro, avesso
a qualquer descrição. Nas seqüências finais de A hora e vez de Augusto
Matraga, o sertão está imobilizado, porque este
narrador detém o tempo (já está íntimo de um cogito especialíssimo),
"destrói (momentaneamente) a continuidade simples do tempo encadeado"26. Coloquei acima uma
ressalva momentaneamente, porque a
narrativa seguirá seu curso normal até o final, submetendo-se às exigências da
continuidade da ficção.
A ressalva se justifica, mas não deixarei de ressaltar o trecho da
seqüência final, porque é a partir dele que visualizo o insólito na narrativa,
e o insólito em Guimarães Rosa se faz presente apenas no discurso. Por estas
razões, o discurso é poético, vertical, fugindo intermitente do pensamento
explicado; assim, o referido trecho é mais verdadeiro: representa o Sertão do
narrador-poeta, antitético, contínuo e descontínuo, alheio às exigências do
mundo; representa o eu profundo de um Artista de dupla orientação: preso a um tempo másculo e valente que se arroja e despedaça
(Nhô Augusto seria o representante desse tempo), mas, ao mesmo tempo, preso a
"um tempo doce e submisso que lamenta e chora"27; representa implicitamente,
apaixonadamente, o Sertão-casa, edificado depois do repouso fervilhante do
tempo do pensamento, perdido no tempo histórico. Neste segundo instante,
"instante poético"28, o personagem verdadeiro não é Nhô Augusto, é o narrador, alter ego do
Artista do século XX. Nhô Augusto simplesmente empresta sua fisionomia, assume
o lugar do verdadeiro personagem.
Os valores do sertão estão enraizados no inconsciente do Artista
Ficcional Guimarães Rosa e são evocados por intermédio do devaneio e dos
estranhamentos do discurso do narrador, não por meio da descrição minuciosa. O
Sertão roseano reflete a pureza das antigas comunidades e é mais verdadeiro do
que o verdadeiro Sertão das Gerais. É verdadeiro, porque está preso às
recordações. Não há como descrever esse Sertão, de acordo com as regras
tradicionais da narrativa, e o recurso é se valer de uma descrição que se
submeta às variações mentais de quem narra, à mistura de estilos, à
interrogação da própria realidade do texto. Graças ao devaneio poético, há os
estranhamentos lingüísticos, o insólito irrompendo do texto.
E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha,
do capiau exilado: "Eu quero ver a moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo
o pote na lagoa..." Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do
céu.29
Asas
conotando pássaros. Asas impondo ao leitor a visualização da
grandiosidade do espetáculo do bando de maitacas, maracanãs, tuins e outros
diversos pássaros voando em direção ao sul, em períodos cíclicos.
Outro estranhamento: depois que os pássaros passam, Nhô Augusto
raciocina: Não passam mais... Ô
papagaiada vagabunda! Já devem estar longe daqui... Logo a seguir,
observa-se a perplexidade do próprio narrador, induzido evidentemente pelo
Artista: Longe, onde?, se não há
distâncias no mundo ficcional.
Longe, onde? O Sertão não se encontra imobilizado no passado, como algo que já
sofreu um processo de transformação e ficou para trás. O Sertão é um lugar em
permanente movimentação no íntimo do narrador, porque está vivo. Os pássaros
passam em bandos, agitados, barulhentos, presentes, habitantes de uma região
insólita, onde o tempo não estacionou, mas também não se delimita em passado,
presente e futuro. Não são as experiências do homem que contam nesta evocação,
são as experiências da infância (Sertão: casa da infância); são as recordações
da infância que mantêm vivo esse espaço de sonhos, onde o tempo permaneceu
intocável nos subterrâneos de uma memória privilegiada. Não é o passado como
uma soma de acontecimentos diversos, repositório de atitudes éticas e de normas
de vida para os pósteros. É o passado comunitário, resgatado como antítese de
um presente que se movimenta rapidamente em direção à futura desintegração do
mundo moderno.
Quero ir namorar com as pequenas, com as morenas do
Norte de Minas...
Mas, ali mesmo, no sertão do Norte, Nhô Augusto
estava. Longe, onde, então?30
Longe, onde? Não há uma ordem pré-estabelecida, não há tempo e espaço detectáveis.
A linguagem roseana transgride o curso e equilíbrio da realidade padronizada,
obrigando o leitor a aceitar valores temporais embaraçados, superposições
espaciais; artifícios imagísticos só percebidos sob a égide de uma leitura
direcionada e especulativa. Espaço e tempo diferentes, elementos
anticonvencionais de uma estrutura sem medidas, que não possuem vínculos com o
relógio do tempo vital. Assim, o narrador se surpreende com suas próprias
confusões temporais e espaciais. Seu personagem se encontra no sertão do Norte e, graças à cantiga muito velha do capiau exilado,
deseja ir para o Norte, para namorar as morenas do Norte de Minas.
Pois não aconteceu que, um belo dia, eu simplesmente
decidi me tornar escritor. Não veio por si mesmo; cresceu em mim o sentimento,
a necessidade de escrever e, tempos depois, convenci-me de que era possuidor de
uma receita para fazer verdadeira poesia.31
Os pássaros voando; os espaços superpostos; o aqui e o acolá do Norte de Minas; a sobrevivência
de instantâneos mágicos da infância; a sustentação do devaneio, evocações; o
olhar poderoso do Artista de transição para a pós-modernidade (técnica do
olhar), expressando uma visão diferenciada do sertão; uma linguagem estranha,
propiciando uma ininterrupção temporal e espacial, insolitamente decalcada nos
subterrâneos das recordações.
O Artista manipula o resgatar dos sentimentos que saem de si. Por isto,
a superabundância de símbolos, de imagens, invenção de novas palavras, retomada
de valores léxicos que não condizem com as normas estabelecidas. O passado
acabado é resgatado pelo presente inacabado, sem sofrer desgastes, emanando uma
luminosidade gerada pelo poder das líricas evocações.
Não sou romancista; sou um contista de contos
críticos. Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais
se unem a ficção poética e a realidade.32
Prosa repleta de Poesia, porque "a poesia é uma metafísica
instantânea"33. Somente a poesia transcende os limites da realidade vivida. Prosa que
almeja recuperar segredos poéticos, seguindo o tempo e, ao mesmo tempo,
imobilizando-o por meio do devaneio criador. Não há somente métodos e provas
que ressaltem o aspecto ficcional; há muito mais, porque há a "necessidade
de um prelúdio de silêncio"34, sustentando a poética do narrador. A narrativa encadeada não
revelaria as minúcias De um lugar idealizado; o narrador, valendo-se da ficção poética, impede que se duvide da
veracidade dessas lembranças, impõe um Sertão imaculado, localizado nas
impressões da infância, guardando segredo absoluto das imperfeições que existem
no sertão mineiro, já deteriorado pelos males da modernidade.
Por estas razões, os pássaros voam permanentemente dentro do devaneio
criador do Artista, enquanto seu narrador faz longos questionamentos
verticalizantes. Os pássaros voando estão dentro do tempo psicológico e
perceptivo do tempo do pensamento, e as perguntas sem sentido narrativo são na
verdade palavras ocas, reveladoras de
"instantes poéticos", que "fazem calar a prosa e os trinados que
deixariam na alma do leitor uma continuidade de pensamento ou de murmúrio"35. Não há padrões
narrativos que impeçam o decalque no texto desse tempo interior e diferente. A
memória é insuficiente para resgatar velhos valores sertanejos, e há vazios imensos, necessitando de
preenchimentos que sustentem a verdade
das recordações. Os pássaros da casa-Sertão voam permanentemente dentro das
lembranças do Artista, fazem alaridos e brincadeiras, porque as sensações
felizes da infância impõem continuidade ao tempo imobilizado do passado,
incoerentemente móvel dentro da imobilidade do instante poético. Não há métodos e provas, porque o Artista
destruiu as ligações com a objetividade da História, para construir uma narrativa
poética e complexa, presa a um tempo que se encontra dentro de uma idealizada
subjetividade. Tempo detido, tempo que não segue a medida, tempo vertical, segundo as concepções
filosóficas bachelardianas, mas também tempo fluídico e abstrato e, paradoxalmente,
em permanente movimento.
As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim.
E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo,
descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não
conta.36
O Artista ficcional vive a aventura de vagar no infinito, dentro da
ilimitação da criatividade poética. Entre o mundo objetivo e seu universo
interiorizado, há a força da arte de escrever, exibindo palpavelmente o hiato
criador que se encontra entre a aparência e a essência de uma realidade
idealizada. Sua meta, unindo à narrativa linear o instante poético, é fixar a eternidade da arte num texto que, em
princípio, apenas reproduziria o sertão. Para um escritor que vive no infinito e o momento não conta é fácil transformar o
sertão em ficção poética. Quem vive no infinito são os Poetas.
O instante poético é, pois, necessariamente complexo:
emociona, prova — convida, consola —, é espantoso e familiar. O instante
poético é essencialmente uma relação harmônica entre dois contrários. No
instante apaixonado do poeta existe sempre um pouco de razão; na recusa
racional permanece sempre um pouco de paixão. As antíteses sucessivas já
agradam ao poeta. Mas para o arroubo, para o êxtase, é preciso que as antíteses
se contraiam em ambivalência. Surge então o instante poético... No mínimo, o
instante poético é a consciência de uma ambivalência. Porém é mais: é uma
ambivalência excitada, ativa, dinâmica. O instante poético obriga o ser a
valorizar ou a desvalorizar. No instante poético o ser sobe ou desce, sem
aceitar o tempo do mundo, que reduziria a ambivalência à antítese, o simultâneo
ao sucessivo.37
Os paradoxos expressam o instante
poético de quem narra, aquele que um dia disse ao crítico Lorenz:
Como romancista tento o impossível. Gostaria de ser
objetivo, e ao mesmo tempo me olhar a mim mesmo com os olhos de estranhos. Não
sei se isso é possível, mas odeio a intimidade.38
Os dois aspectos do romancista: os paradoxos que caracterizam o caráter
ambivalente do Poeta. Sua ficção poética
valoriza o sertão mineiro e desvaloriza a modernidade. O escritor não está
comprometido com seu momento histórico e, no entanto, é íntimo desse tempo, ao
vivenciá-lo em seu cotidiano; mesmo assim, não pensa ideologicamente, de acordo
com os padrões modernos, porque sua ideologia é autenticamente sertaneja.
O narrador, por exemplo, não enuncia mandamentos de vida, não emite
sentenças ideológicas, apenas sonha o Sertão que se encontra dentro do sonho
daquele o idealizou. O narrador de A hora e vez de Augusto Matraga
adota a ideologia dos contos infantis, ao punir seu personagem, fazendo-o
expiar seus pecados de homem rude e poderoso, mas, ao mesmo tempo, reserva para
ele um final que transcende os limites da realidade substancial. Submetido ao
sonho do artista, não pune Nhô Augusto com a severidade da justiça humana, ao
contrário, transporta-o para uma realidade idealizada, poetizando o desenlace e
redimindo-o por meio de uma morte glorificada. Portanto, é o Artista que
valoriza os instantes finais de Nhô Augusto, ao invés de puni-lo com a dureza
da razão.
No trecho narrativo que registra o retorno do personagem até o momento
de sua morte, há a paixão superior da matéria lírica, impedindo o domínio total
da razão ordenadora. Conseqüentemente, há o resgate de velhas frases
convencionais, insolitamente inseridas num contexto caótico; o arroubo do
narrador vivenciando cada pormenor narrativo na transmissão das minúcias de um
sertão poético; o êxtase final, ao narrar a morte de Nhô Augusto, transportando-o
para o plano da santificação. O narrador é, indiscutivelmente, representante do
Artista literário, ou seja, expressa os sentimentos de um indivíduo paradoxal:
sertanejo e moderno. Escrevendo sobre a vida e morte de Nhô Augusto das
Pindaíbas e do Saco-da-embira, escreve sobre si mesmo, narra as aventuras que
correm dentro de seu universo interiorizado e sertanejo, sem deixar de ser um
homem estabilizado dentro de seu núcleo social citadino.
O Artista é escritor e "pensa
em eternidades", pensa sobretudo "na ressurreição do homem"39. Nhô Augusto ganhou,
pelas mãos do narrador, sua hora e vez,
ganhou o privilégio de morrer redimido, porque, pensando na ressurreição do homem (do personagem), o
Artista pensa na sua própria ressurreição, consciente que está dos vários
estágios de ressurreição que existem no plano espiritual. Transformando o final
de sua narrativa, demonstra não aceitar o
tempo do mundo, produzindo um outro tempo, tempo verticalizante, tempo do
pensamento, que busca as profundezas da alma, a ascensão ao cogito(4),
por entre o devaneio e o infinito da realidade idealizada, por intermédio das
recordações poéticas da infância.
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